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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Nos passos de Hannah Arendt (XLI/2024)

 


Nestes últimos anos, além de vários artigos e ensaios, tive a oportunidade de ler “Eichmann em Jerusalém”, “Homens em tempos sombrios”, “Origens do totalitarismo”, “O que é política” e, neste exato momento, tenho em mãos a última obra escrita por Arendt, lançada após sua morte, “A vida do espírito”, leitura que já estou tendo o prazer de fazer. Pretendo ler também sua obra inaugural “O conceito do amor em Santo Agostinho”. Aliás, descobri que essa primeira obra filosófica de Arendt recebeu críticas terríveis de Karl Jaspers, seu orientador e amigo de sempre. É muito interessante acompanhar não apenas o contexto histórico, mas, principalmente, as características da personalidade da jovem filósofa de apenas 22 anos de idade que contribuíram para as críticas recebidas sobre sua tese em Agostinho.

Por tudo isso, ler a biografia “Nos passos de Hannah Arendt” foi uma experiência apaixonante, particularmente por Laure Adler oferecer um roteiro bibliográfico de formação da Hannah Arendt. Assim, podemos acompanhar, durante cada etapa da vida da filósofa, os livros que ela lia, os autores que devorava, os poetas nos quais ela se refugiava nos tempos difíceis. Adler também vai marcando, passo a passo, o momento em que Hannah escrevia seus artigos, ensaios e livros. Resultado? Preciso reler o livro de Laure Adler, fazendo esse roteiro bibliográfico de Hannah, sobretudo agora que foi lançado o “Escritos judaicos”, obra que reúne os artigos de Hannah Arendt até os anos 60.

Acredito que meus primeiros contatos com Hannah Arendt se deram ainda na Faculdade de Letras, por causa de seus escritos na área de educação americana, nos quais ela criticava a postura vitimista da comunidade negra e o que ela considerava um uso errado das crianças negras por seus pais na luta pelos direitos de ir à escola dos brancos, colocando essas crianças em situação de risco. Hannah não acreditava que o racismo deveria ser combatido com criação de leis antirracistas, pois estas teriam um efeito contrário na sociedade. Obrigar por meio da lei as crianças negras a frequentarem escolas de brancos, lugares em que elas eram humilhadas, maltratadas e indesejadas levanta, para Arendt, a indagação se valeria a pena “forçar o real e deixar essas crianças viverem o inferno, em nome de uma luta contra a segregação, impor que elas se tornassem os heróis da luta antirracista”. Hannah foge sempre dos clichês politicamente corretos e denuncia que “há também uma derrota de autoridade dos adultos, que abdicam de sua responsabilidade ao delegar ao Estado a preocupação em se ocupar de seus próprios filhos”. Hannah pergunta: “Será que chegamos ao ponto de pedir às crianças para mudar o mundo ou melhorá-lo? Será que procuramos conduzir nossas batalhas políticas no pátio de recreação das escolas?”.

Esta é Hannah Arendt: uma filósofa que resolveu pensar em tempos sombrios e que, certamente, arcou com as consequências de fazer perguntas tão obscenas quanto “os judeus são responsáveis por seu extermínio?”. Para Hannah, o “mecanismo de apagamento voluntário do ser judeu precedeu e talvez tenha autorizado o Holocausto”. O livro de Adler, portanto, é uma imensa narrativa sobre os embates, guerras, tragédias, genocídios e assassinatos vividos e refletidos por essa judia nascida alemã em pleno século XX.

Adler nos dá o contexto dos judeus que, por tanto tempo, ainda no século XIX, lutaram pelo direito de serem recebidos como cidadãos na Alemanha, mas que, repentinamente, seus filhos veriam crescer no século seguinte o movimento do Nacional-Socialismo e sua política antissemita. Judeus ou alemães? Essa crise de identidade acompanhará aquela geração de judeus alemães que cresceram junto com Hannah Arendt.

“Nos passos de Hannah Arendt” retrata muitíssimo bem toda a polêmica que acompanhou Hannah diante da publicação de “Eichmann em Jerusalém”, obra jornalística em que ela expõe a cooperação dos Conselhos Judaicos na confecção das listas dos que seriam mandados para a morte nos Campos de Extermínio dos nazistas. Embora essa cooperação já fosse do conhecimento dos tribunais e governos antes mesmo do próprio julgamento do nazista Eichmann, ela expõe o fato de uma maneira que a indispõe com muitos dos líderes e anciãos judeus da época ao ponto de vários rabinos escreverem às comunidades judaicas orientando-as para que, durante a comemoração do Ano Novo, elas pregassem contra Hannah Arendt. Laure Adler pinta com todas as graves cores a perseguição, o ódio, a difamação e injustiças sofridas por Hannah, que foi criticada muito mais pelo que disseram que ela disse (mas não disse) do que pelas coisas que, de fato, escreveu. Adler, porém, não esconde as falhas, os erros, as contradições e o orgulho de Hannah Arendt. O próprio fato de, como conselheira editorial, ela ter impedido a publicação, antes do lançamento de “Eichmann em Jerusalém”, do livro do historiador Raul Hilberg, que já apresentava toda a documentação sobre a cooperação dos Conselhos Judaicos ao regime nazista, demonstra estes traços negativos da filósofa.

É em “Eichmann em Jerusalém” que Hannah Arendt apresenta o seu famoso conceito de “banalidade do mal” ao defender que o ser humano não precisa ser “mau” para praticar a maldade, fugindo das caricaturas tão propagadas do louco nazista ou do sádico de suástica e também do funcionário público estúpido. Ela percebe que qualquer um de nós, “pessoas comuns”, podemos cometer as atrocidades que foram empreendidas por pessoas como Eichmann. Ao desenvolver essa tese, Hannah quer refletir sobre três coisas: 1) a natureza do mal; 2) como evitar que um novo genocídio ocorra de novo; e 3) o que leva pessoas comuns como Eichmann a se tornarem uma peça numa engrenagem assassina.

A partir desse conceito de “banalidade do mal”, Hannah demonstra que a origem das ações criminosas perpetradas por pessoas como Eichmann reside no momento em que elas abdicam do seu direito de pensar, entregando-se à moral fornecida pelo Estado por meio da lei. Elas abrem mão da própria consciência, abrem mão de refletir, de pensar, de julgar. Para Hannah Arendt, portanto, o ser humano, qualquer ser humano, torna-se agente do mal quando não reflete, não pensa, quando abre mão da própria consciência e adota, enfim, a moral do Estado ou do grupo.

Particularmente, entre as contradições da filósofa, a que mais me chamou a atenção foi que, na vida amorosa, Hannah Arendt aceitou a submissão a dois homens abertamente contrários à causa judaica: Heidegger e Heinrich. O primeiro, filósofo que aderiu ao Nazismo e fechou as portas da Universidade para professores judeus, foi amante de Hannah. O segundo foi seu marido e, como comunista, nunca apoiou as causas judaicas, sempre se apresentando avesso às lutas sobre o Estado de Israel.

Ainda por causa da sua experiência com Eichmann, ela escreverá sua última obra sobre o pensar, sobre a vida do espírito. O ato de pensar é a única saída para que o ser humano não repita mais os crimes terríveis perpetrados por regimes totalitaristas. É preciso, então, que o homem reflita, pense, julgue, não abra mão da sua consciência. Assim, a própria vida de Hannah Arendt é um testemunho sobre sua lealdade ao que pensava, refletia, julgava. Contra tudo e contra todos, ela teve coragem de tocar em temas polêmicos que a Europa se recusava a refletir, a pensar.

Em determinado momento do livro, a autora Laure Adler indaga: “Visivelmente impregnada de um cristianismo primitivo, influenciada pelas Confissões de Santo Agostinho, fazendo do amor pelo bem uma qualidade política, será que Hannah se tornou crente?”.

Hannah, aluna de Bultmann e fiel leitora de Kant, Heideggeriana, busca uma filosofia que ultrapasse seu professor de fenomenologia, Husserl: ela crê que o nascimento é o fundamento da vida e faz da vida a razão da sua filosofia. Cada nascimento é um novo começo, é a vida retornando, dando uma nova chance ao homem. A biógrafa de Hannah relata que, assistindo ao Messias de Handel, a filósofa teria tido uma iluminação: “Tivemos um filho. (…) O cristianismo é de qualquer maneira alguma coisa”. Leitora atenta dos Evangelhos, especialmente o de São João, Arendt vê de maneira especial o nascimento de Jesus como uma cisão na história da humanidade. “Todo começo é salvação, é em nome do começo, em nome dessa salvação, que Deus criou os homens no mundo. Cada novo nascimento é como uma garantia de salvação no mundo, como uma promessa de redenção para aqueles que não são mais um começo”. Diante dessas palavras de Hannah Arendt, recordo os versos do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, os quais podem ser apresentados como síntese poética da filosofia proposta por Arendt:

Severino, retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, Severina
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.

Diante da indagação se teria Hannah se tornado crente, Adler menciona uma enigmática e insistente homenagem que Hannah presta a Jesus: “O milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios humanos, de sua ruína normal e natural é, em última análise, o fato do nascimento, no qual a faculdade de agir se radica ontologicamente. (…) Esta fé e esta esperança no mundo talvez nunca tenham sido expressas de modo tão sucinto e tão glorioso como nas breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram a boa nova: ‘Nasceu uma criança entre nós’…”.

                Fábio Ribas

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Carl Jung, sincronicidade e a barata (XL/2024)


Há muitos anos, eu li dois livros que impressionaram profundamente minha psiquê, deixando marcas indeléveis. São eles “Freud e Jung — sobre a religião” e “Resposta a Jó”. Este causou-me escândalo pela forma como abordou a Bíblia e o cristianismo e aquele me chamou a atenção pela exposição didática com que tratou o tema que dividiu Freud e Jung.

Dois livros que, obviamente, são frutos do seu tempo, ou melhor, que representam a racionalidade iluminista do homem europeu e sua posterior derrocada. Freud representa o homem moderno na sua escolha pela razão e em sua preocupação científica em delimitar suas pesquisas fazendo um recorte na tez do mundo físico: um homem marcado pela filosofia de Descartes, Hegel e Spinoza. Essa mentalidade do Idealismo forjou perenemente o perfil de Freud e seus estudos, além de explicar a gênese da ruptura entre ele e Carl Jung. Por sua vez, a Psicanálise desenvolvida por Jung trouxe ao divã aquilo que os racionalistas rejeitaram: o poder da religiosidade do ser humano. Todavia, não posso me furtar a dizer que a cena mais impactante do livro “Freud e Jung — sobre a religião” foi a narrativa ali feita sobre um sonho que Jung tivera. Ele sonhara que Deus vinha caminhando num campo, um Deus gigante e que se depara com uma basílica, uma igreja cristã e, então, Deus se posiciona sobre a igreja, desce as calças que vestia, coloca-se de cócoras e defeca sobre ela…

Freud defendia que a causa das neuroses encontrava sua gênese na sexualidade, ou melhor, na repressão da libido humana. Insatisfeito em limitar todas as explicações a este campo, Jung começa a questionar seu professor se não poderia haver outras razões escondidas no campo das religiões, dos mitos e da parapsicologia, por exemplo (Carl Jung buscava orientar suas pesquisas na direção do Oculto, interessava-se por sessões mediúnicas e por precognição). Tudo isso, entretanto, era um verdadeiro absurdo para Freud. Enfim, enquanto Freud permaneceu no campo do provável, coube a Jung abrir as portas da percepção da ciência psicanalítica rumo ao improvável. Em “Resposta a Jó”, Jung nos apresenta um Deus — Javé — destituído de consciência, um Deus amoral! Um Deus que, na verdade, aprende com Jó e com os sofrimentos humanos, um Deus construído, um símbolo. Javé é analisado como um Deus que, junto com os homens, “quer fugir da injustiça cega”. E a grande epifania de Deus, para Jung, foi quando a Igreja Católica Romana decreta o dogma da Imaculada Conceição, elevando Maria à semelhança de um deus e entregando a Javé aquilo que lhe faltava: Maria era a Sofia do AT, a peça fundamental para equilibrar a masculinidade e o patriarcalismo da Santíssima Trindade. Diante desta pequena amostra das ideias desenvolvidas no livro de Jung, não é mera coincidência que a Europa apresente hoje um pós-cristianismo que, na verdade, é muito mais um renascer do antigo panteísmo. A decadência da modernidade freudiana é o advento de um panenteísmo pós-moderno revelado pela psicanálise de Jung no inconsciente de todos nós. Eis, então, dois livros que nos servem de ilustração para compreendermos os eventos ocorridos nos últimos dois séculos na Europa e que se estendeu ao Ocidente: a Modernidade e a Pós-modernidade!

Por estes dias, assisti ao filme “Um método perigoso”, que narra exatamente este período de encontro e desencontro entre Freud e Jung e também a paixão intempestiva entre Jung e uma paciente sua, Sabina Spielrein, que se tornará mais tarde psicanalista, especializada em psicologia infantil. Há uma cena nesse filme que ilustra bem o que eu expliquei no parágrafo anterior. Jung questiona Freud se tudo teria que se restringir à sexualidade e se eles não poderiam, então, pesquisar a metafísica, a parapsicologia, etc. Freud reage frontalmente a essa posição, mas, precisamente naquele momento da discussão entre os dois, o móvel da Biblioteca da casa de Freud dá um grande estalo. Jung diz ao seu professor que sabia que isso iria ocorrer, porque, nas palavras de Jung, enquanto Freud estava reagindo às suas ideias, ele sentira um fogo, uma queimação em seu estômago. Freud, compreendendo que tudo não passara de mera coincidência, ficou escandalizado com as ideias de seu pupilo, Jung, contudo, insistiu dizendo que o estalo iria acontecer de novo. Dito e feito! Mal terminara de falar, um novo estalo ocorre diante de Freud em sua estante de livros. Posteriormente, numa carta a Jung, Freud atribui o ocorrido a uma enganação, uma farsa forjada por Jung para desmoralizá-lo.

Para Freud, tudo não passava de meras coincidências. Para Jung, coincidências não existiam. As coisas estão todas ligadas; os fatos que não tem conexão aparente estão conectados, assim como havia pessoas que se percebiam convergir em direção a outras por “coincidências” que denunciavam uma unidade espiritual entre elas e a isso Jung dá o nome de sincronicidade. E é com uma ilustração deste conceito junguiano que encerro este meu texto. Após assistir ao filme “Um método perigoso”, fui à biblioteca da minha casa rever os dois livros que abordei aqui. Ao sair da biblioteca, passei pelo quarto das minhas filhas e vi que, encostada à porta, havia uma enorme barata. Peguei a sandália e aproximei-me bem devagarinho. Num gesto típico dos que tem ódio desses seres nojentos, desferi contra ela uma pesadíssima sandaliada. Depois, ergui a sandália e pude ver a famigerada totalmente destruída, esmagada e com seus líquidos viscosos e brancos espalhados pelo chão. Fui ao banheiro pegar o papel higiênico e retirá-la dali, lançando-a à privada. Porém, para minha surpresa, ao retornar alguns segundos após ter saído da cena de meu crime, aquela barata enorme havia simplesmente… sumido! Procurei atrás da porta, pelo quarto, debaixo das camas, ainda que eu soubesse que aquela busca era em vão, porque vira aquele bicho ser totalmente destruído pela violência do meu golpe. A barata desaparecera… ou, talvez, nunca existira. Teria sido precognição ou sincronicidade? Simples coincidência? Tudo isso acontecendo logo naquela manhã em que eu acabara de ler que Jung costumava sentar à mesa da sua sala, passando longas horas conversando com fantasmas…

Fábio Ribas

Nos passos de Hannah Arendt (XLI/2024)

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