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sábado, 13 de janeiro de 2024

A obra de arte como acesso ao mundo do artista e ao artista-no-mundo (ou "Por que devemos comer com os pecadores?")

 


"…a arte se nutre de toda a civilização de seu tempo, refletida na irrepetível reação pessoal do artista e que nela estão presentes em ato os modos de pensar, viver, sentir de toda uma época, a interpretação da realidade, a atitude diante da vida, os ideais, as tradições, as esperanças e as lutas de um período histórico" - Luigi Pareyson.


    Em tempos pós-modernos, não há como negar que "alguma coisa" sempre será arte para alguém, assim como haverá alguém para quem uma verdadeira obra de arte será tida sempre como coisa alguma.

    A questão da arte é complexa e, sem dúvida, não pretendo esgotá-la e muito menos resolvê-la aqui, mas o que constato no Brasil, nestes últimos anos, é que a arte vem sendo discutida sob os mais diferentes pontos de vista, seja o ideológico, o sociológico e, até mesmo, o filosófico. Todas essas perspectivas podem ser encontradas nas discussões em praça pública. Então, apresento um pouco da minha abordagem nas aulas de Comunicação Transcultural e Contextualização para missionários que devem atentar a esse importantíssimo dado que o Campo lhes oferecerá para a sua compreensão do outro.

    Acredito que o missionário transcultural deve se valer de duas ferramentas fundamentais para o entendimento de qualquer cultura: a semiótica (que aqui a apresento como a ciência que estuda os signos nas linguagens humanas) e a religião (ancorando-se nos estudos da Antropologia Cultural).

    A partir da semiótica, é preciso que a obra de arte seja entendida, antes de tudo, como um elemento de comunicação, que, como tal, possui mensagem, seja esta consciente ou não por parte de quem a produz. Assim, a obra de arte, antes de ser julgada como arte ou não, exigirá tanto do leigo como do crítico uma aproximação antes de quaisquer avaliações. Ao lado da semiótica, a segunda ferramenta necessária ao missionário transcultural é a perspectiva da sempiterna religiosidade humana. Acrescento-a como elemento de reflexão, uma vez que aquilo que nossa sociedade hoje tem como arte, como referência histórica da arte, como algo já estabelecido no cânon da crítica, a arte greco-romana, por exemplo, são obras que, na maioria das vezes, refletiam a religião daquele tempo.

    Mesmo que possamos nos afastar da arte greco-romana e buscarmos outras referências como as pinturas rupestres da Austrália, o elemento religioso é preponderante ali. A crença expressada naquelas pinturas revela que a maioria delas foi feita com o objetivo de aumentar a população de caça da região. Mesmo a arte mesopotâmica não foge dessa representação espiritual, tanto em representações bélicas como na da vida cotidiana, uma vez que a sociedade era teocrática. Quem, um dia, se surpreenderia ao descobrirmos finalmente que os geoglifos de Nazca são expressões artísticas com finalidades espirituais de sociedades profundamente religiosas?

    Uma abordagem "clássica" ou "conservadora", denominada também de "tradicional", tende a não se aproximar de nada que não caiba de antemão num conceito pré-fabricado de Belo. Podemos entender isso também como uma estrutura apriorística e que dá a essa abordagem um aspecto filosófico normativo, mas que mais afasta do que permite acesso, uma vez que já avalia tudo o que não entra nesse esquema definido (ótimo para conservadores, mas que não é suficiente para cristãos que querem apresentar as Boas Novas do Evangelho). Do outro lado dessa discussão, temos a aproximação marxista, materialista e que, tantas vezes, opera um reducionismo pelo viés economicista, tornando esse, então, determinante para a avaliação da obra, eliminando a individualidade e pessoalidade do artista na obra. Uma terceira abordagem - new critics - pregada por tantos teóricos acerca da "impessoalidade" da obra artística, que retira dela qualquer traço de intenção sentimental, também não deverá ser levada em consideração para os objetivos deste texto.

    O acesso à obra, portanto, deve partir daquilo que ela é: um elemento da comunicação. E, como tal, há um artista, um obrador, um formador de um lado, e, do outro, há o interprete, seja leigo, seja acadêmico, aquele a quem se apresenta a obra como mensagem, seja uma obra considerada como artística ou não.

    E no estudo da história da arte é sempre natural que indaguemos: aquilo que se apresenta como "arte" nos dias atuais teria perdido sua expressão "religiosa" ou o que temos visto na mídia, nos museus, nas apresentações em praça pública e nas Universidades país afora são também a expressão da espiritualidade do nosso tempo? Quero apostar que sim! A arte, a expressão artística, ou, usando uma palavra que eu gosto muito, a artisticidade, ela está em certa medida presente em todos nós, em todo o ser humano: o germe, o potencial para obrar, formar, fazer. Enfim, o ser humano, em qualquer cultura, língua, sociedade, tempo e lugar está produzindo formas o tempo todo (ou ressignificando-as como ocorre com a proposta de Marcel Duchamps, "A fonte", na imagem que abre este ensaio). A questão aqui é diferenciarmos o que seja, em todas as formas que criamos, arte daquilo que consideraríamos, portanto, mero artesanato.

    Todavia, como já disse, antes de quaisquer avaliações simplistas e abruptas, ou, no caso do missionário transcultural, qualquer avaliação sob o "meu gosto pessoal e sob a minha formação estrangeira" deverá ser evitada, caso queiramos aprender o que o outro tem a nos ensinar. Como devo me postar diante de uma obra de arte e o que ela teria a me ensinar sobre si mesma, o artista e a cultura - deve ser o esforço da nossa formação que, sem sombra de dúvida, passa pelo enfrentamento de todo etnocentrismo que carregamos.

    Precisamos de um ponto de partida em meio a tantas opiniões leigas e teorias acadêmicas para não cair na mera questão do "gosto" e do "sentimento". Por isso, rejeitei, pelo menos no primeiro momento, o esquema normativo e dogmático da abordagem clássica e tradicional, uma vez que essa tende a me afastar daquilo eu quero, como cristão, que é compreender o outro; também desconsiderei a abordagem reducionista e econômica do marxismo, uma vez que essa apresenta um esquema que se torna ambíguo na relação da individualidade do artista e da sociedade da qual ele faz parte; e, finalmente, pela mesma razão, a de não entender a obra de arte como elemento da comunicação, não opto pela abordagem do new critics e quaisquer outras semelhantes.

    Os meus pontos de acesso são abertos pelas ferramentas da semiótica e da religiosidade. Esta me é dada pelo próprio testemunho da História e aquela me permite acessar a mensagem do artista na obra, acesso não apenas à pessoa dele, mas à sociedade, ao grupo, ao tempo e lugar em que ele se insere.

    Olhemos para a obra. Então há um obrador, um formador, alguém que operou sobre aquilo para dar forma, seja uma pintura, escultura, música, etc. Quem é esse que dá forma? É um individuo que se dobra sobre o seu material com fins de um resultado e esse "formador" se envolve em seu ofício, ou melhor, se entrega por completo no processo formador. Em toda obra de arte se encontra seu artista, do mesmo modo que encontramos nos filhos algo de seus pais. Mas a marca, a especificidade do artista, que denominamos "estilo", é aquilo que define a ação dada à obra e que nenhum outro faria da mesma maneira, é o que garante discernirmos esse artista individual e sua pessoa. O estilo é o corte, o jeito, a personalidade do artista, que recai sobre sua obra e que dá a ela características singulares advindas da própria pessoa do artista, esteja ele consciente disso ou não.

    Olhemos para a obra como elemento de comunicação do artista. Ela revela seu artista, mas também traz, além da individualidade do artista ("pensamento, moralidade e artisticidade", como nos dizia Luigi Pareyson), a impressão da História e da sociedade das quais participa esse artista e sua obra.

    Em outras palavras, obra alguma é neutra.

    Ela é um elemento da comunicação e nela encontramos o emissor e sua formação no mundo. A obra, como diria Pareyson, surge-no-mundo, resume-o-mundo, e, às vezes, julga-o-mundo. A arte é o acesso ao mundo do artista no mundo. E é muito interessante quando notamos que Jesus e seus discípulos, para ficar apenas no universo do Novo Testamento, compreendiam isso que está sendo exposto aqui, uma vez que observamos o recurso das parábolas escolhido por Jesus em sua comunicação; a escolha feita pelo gênero literário "evangelho", tão acessível ao mundo helênico; a relação de Paulo com a arte do mundo pagão; e a escolha de João pelo gênero "apocalíptico", comum não apenas no seu tempo, mas também na história recente da cultura judaica daquele período.

    Do outro lado da obra de arte está o interpretante, que será sempre muito mais do que um mero receptor, do que um simples passivo diante de uma obra e seu artista. Assim como o artista carrega em si sua própria pessoa e o mundo, o interpretante também. Todavia, o missionário deve escapar, pelo menos num primeiro momento, de uma abordagem política, econômica ou ideológica quando o seu alvo é a evangelização, a apresentação da mensagem da salvação, o Evangelho que é Cristo. A música, a pintura, a escultura, o artesanato, a literatura, a dança, entre tantas outras expressões devem ser tratadas pelo missionário como acesso ao outro, como revelação do outro e seu mundo, pois a obra humana é também uma mensagem do mundo para a Igreja. É na obra que o mundo está falando conosco. Semelhantemente, Jesus é a mensagem de Deus à Igreja e ao mundo perdido! A pessoa de Jesus revela o Artista. Jesus é a mensagem do Pai, é a Palavra de Deus, obrada, formada eternamente, mas que, de uma maneira muito especial, foi engendrada na forma humana de modo a não se perder a Pessoa do Cristo na humanidade adotada em sua carne. O Artista divino lutou contra Si desde o mistério da encarnação - como o artista se lança incansável sobre a matéria a que pretende dar forma (forma que já existe antes de sua concretude na obra) - para que a carne que Ele assumiria fosse uma expressão humana da divindade sem deixar de ser humana e sem que Jesus deixasse de ser divino também.

    O mundo criado é a obra de arte da Santíssima Trindade, todavia, por causa do pecado que entrou no mundo e do pecado na natureza dos interpretantes, que somos nós, a Criação é insuficiente para nos revelar o pensamento, a moralidade e artisticidade do Ser divino. Podemos apreender pela Criação a existência de um Criador, uma inteligência por trás, um Obrador, um Formador, o Figurador que torna possível que criemos também nossas formas. O Ser de Deus, porém, seu Caráter, sua Salvação e Santidade é possível a nós tão somente por meio de Jesus, o Filho, a obra de arte máxima de Deus e que nos é oferecida em amor pelo Espírito Santo, que é o único capaz de nos dar as condições necessárias para admirar a beleza que há no Filho e na Sua mensagem. Não há como negar que Jesus, como obra de arte, é a interpretação eterna de Deus sobre Si mesmo oferecida a nós.

    Por tudo isso, quando nos postamos diante de uma obra de arte, precisamos entende-la como um elemento da comunicação: a obra é um livro que devemos abrir para compreender o mundo e sua cosmovisão. Há uma narrativa em toda obra - é a história de como o artista deu forma a ela. E o esforço missionário para compreendê-la, manifestará a personalidade do próprio missionário - uma personalidade santa e compassiva diante do mundo perdido.

    A arte, ou melhor, a obra de arte, concordemos com ela ou não, encaixe-se ela ou não em nossos esquemas estéticos, é o acesso que temos para o mundo-do-artista-no-mundo, seja em nossa própria cultura ou em outra cultura. Muito ouvimos falar no papel da língua como "chave para a compreensão da cultura", mas, evidentemente, a linguagem é muito maior do que a língua. E o que temos é que a língua, que também possui os elementos de pensamento, moralidade e artisticidade a ponto de, nas mãos do artista pode ser trabalhada na forma de uma verdadeira obra de arte, mas que no seu uso ordinário pouco ou quase nada nos revela da cultura profunda de uma sociedade. E nada disso tem a ver com escolarização ou não dos envolvidos no processo de comunicação, pois tenho em mente tanto poetas como Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, como também os artistas de circo mambembe e os músicos "iletrados" da literatura de cordel.

    O nosso plano missionário imediato não pode ser o de irmos de encontro ao mundo, mas de irmos ao encontro dele para, compreendendo-o no seu contexto cultural diverso do nosso, podermos não apenas explicar as razões do Evangelho, mas também as incoerências do mundo em que o artista está inserido - sua pessoa, obra, sociedade e história. Só podemos nos posicionar assim se for a partir de uma aproximação sincera e cautelosa, porque a obra de arte é um elemento de comunicação e também uma expressão religiosa da espiritualidade do nosso tempo. O missionário precisa ser sensível para identificar na cultura - em toda e qualquer cultura - tanto a beleza de Deus como a feiura do nosso pecado!

    Precisamos ser mais específicos na apresentação da nossa arte, que é Jesus Cristo que nos foi dado pelo Pai, pois o mundo que nos cerca não pertence ao universo bíblico e também não está inserido em nossa cultura judaico-cristã. Precisamos compreender que o trabalho de evangelização e discipulado da Igreja, que avança na História sobre culturas cada vez mais diversas dos tradicionais pontos de contato como a língua, a cosmovisão teísta e a cultura judaico-cristã, enfim, esse trabalho da Igreja sempre foi muito mais complexo do que o realizado por Jesus diante da cultura à qual ele se identificou. Na maioria das vezes, Jesus pregou a pessoas que falavam a sua língua e que conheciam as histórias do Antigo Testamento! Daí Jesus dizer que faríamos coisas muito maiores do que as que Ele fez, pois, uma vez fora do contexto histórico-cultural da Palestina, a Igreja sempre precisou criar acessos, pontos de partida e contatos que Jesus e os discípulos não precisaram fazer, na maioria das vezes, em sua geração.

    Quando Jesus e Paulo fizeram suas incursões em terras estrangeiras, ainda assim compartilhavam com seus interpretantes a cultura comum do helenismo. Paulo passeou entre as formas, esta organicidade da espiritualização de Éfeso, fazendo o dever de casa de perceber as vozes daquela cultura estranha ao mundo judaico, para, então, responder aos anseios propostos pela própria arte dos gregos espalhada na cidade. Nossa crítica e nossa resposta ao outro, primeiramente, deve se fundar não na reação, mas em nossa aproximação, afinal de contas, é isso o que significa dizer que "Jesus comia com os pecadores"!

    Imagens usadas neste post:

1 - "A fonte", Marcel Duchamps;

2 - "Friso do Partenon", artistas desconhecidos;

3 - "Pinturas rupestres de Ubirr", Parque Nacional Kakadu, Austrália;

4 - "Estatueta de cordeiro num bosque", artista desconhecido, British Museum, Londres, Reino Unido;

5 - "Linhas de Nazca (Beija-flor)", artista desconhecido, Peru.

                                                                    Fábio Ribas


Publicado também em 31 de março de 2020.

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