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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Antropologia da amizade

 

Shrek: Pra sua informação, há mais do se imagina nos ogros.

Burro: Exemplo?

Shrek: Exemplo? Ok… Ah… Nós somos como cebolas.

Burro: Fedem?

Shrek: Sim. Não!

Burro: Oh. Fazem você chorar.

Shrek: Não.

Burro: Oh, deixa eles no sol e eles ficam marrons e soltam aqueles cabelinhos…

Shrek: Não! Camadas! As cebolas têm camadas, os ogros têm camadas. A cebola tem camadas, entendeu? Nós dois temos camadas.

Burro: Oh, vocês dois têm camadas. Oh. Sabe, nem todo mundo gosta de cebolas. Bolo! Todo mundo adora bolo! E tem camadas.

Shrek: Eu não ligo pro que todo mundo gosta! Ogros não são como bolos.

Burro: Sabe do que todo mundo gosta? Pavê! já conheceu alguém que você falasse: "Ei, vamos comer pavê?" e ele dissesse: "Céus, não gosto de pavê"? Pavê é delicioso!

Shrek: Não! Sua besta ambulante de irritação constante! Os ogros são como cebola! Fim da história, bye bye, tchauzinho."

Do filme Shrek 1
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    Inevitavelmente, avaliamos o outro pela mesma régua de nossa cultura. Entretanto, nesta trajetória a que chamamos "vida", as minhas descobertas mais fascinantes nunca se deram propriamente por essa régua (que, indubitavelmente, também carrego na mochila de minhas experiências), mas, antes, minhas mais maravilhosas descobertas se deram pelo que descobri a partir do olhar do outro.

    Explico-me. Por exemplo, frequento uma igreja pequenininha de uma cidadezinha do interior do Brasil. Nesta igrejinha, embora de poucos membros, há nela estrangeiros, brasileiros e indígenas. Há pobres e ricos. Há bêbados e sóbrios também. Entre os brasileiros, há os mato-grossenses, goianos e sulistas (pelo menos). Entre os indígenas, há pelo menos três culturas de línguas diferentes. Na cidade, esbarramos sempre com pessoas do mundo todo: franceses, alemães, japoneses (pelo menos). Há indígenas de mais de dez povos de línguas e culturas diferentes passeando pela cidade. Assim, estar com pessoas e comunidades tão diversas da sua própria cultura nativa é uma aventura que se desenvolve em algumas etapas (ou "camadas" nas palavras do Shrek). Vejamos.

    A primeira camada dessa cebola, como já disse, é quando descobrimos o outro medindo-o por nós mesmos. Você avalia, enquadra, supõe, inquire o outro pela régua que você trouxe dentro da sua própria bagagem. E é tola presunção iluminista quem não assume isto: que, primeiramente, sempre olhamos o outro com os nossos próprios olhos.
    
    Corta-se um pouco mais a cebola e há a troca, camada mais profunda na construção de qualquer conhecimento sobre o outro. O outro, então, passa a perceber a si mesmo e à própria cultura como algo interessantíssimo, uma vez que ele percebe que há alguém tão interessado nas opiniões e crenças dele acerca de quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Nesta altura do encontro, revelamos ao outro os detalhes maravilhosos que ele mesmo nunca antes se dera conta sobre si mesmo. Ao nos encontrarmos com alguém, levamos esse alguém a encontrar-se consigo mesmo, esta é a grande e maravilhosa verdade. O mais intrigante nessa segunda etapa é que ela nos coloca diante da próxima camada e é aqui, neste ponto de decisão, que a maioria de nós volta atrás, desiste, fecha-se novamente. É que aquilo que vemos acontecer com o outro acontece conosco também, pois revelar ao outro os detalhes da cultura dele nos chama a atenção para a nossa própria cultura. Assim, encontramo-nos conosco. É uma auto-descoberta. Uma auto-avaliação.
    
    Mas há ainda uma camada mais profunda. É quando o outro passa a avaliar a minha cultura! Então, nos vemos como objetos da pesquisa do outro, do olhar do outro. Poucos se deram a oportunidade de alcançar e saborear este momento de encontro, porque é exatamente neste estágio que ferimos a nossa egocentricidade e nos colocamos à deriva, à mercê do outro. É aqui que, finalmente, entrega-mo-nos e nos deixamos inverter os papéis: o pesquisador-pesquisado, o "olheiro-olhado". A despeito das ferramentas técnicas que o outro não possua, desde a nossa chegada, ele já estava ali nos observando e aprendendo como nos observar também. Todavia, agora, ele somará o que aprendeu do nosso jeito de ver com a sua própria maneira de observar o outro (veja, agora já me apresento como o outro de alguém!). Aqui, e somente aqui, neste encontro entre outros, é que finalmente se dá o ambiente propício para trocarmos nossos corações: a amizade. A amizade é e será sempre só aos que se permitem um ao outro. A amizade é um contrato, um rito, uma promessa, uma aliança, mas, antes de tudo, é a decisão de se expor ao outro, de ser cortado desde a camada mais superficial até o centro dessa nossa cebola.
    
    Ouso chamar tudo isso que estou escrevendo de antropologia da amizade. É a trajetória persistente do amor e da paixão, sentimentos inevitáveis aos que se permitem "coletar, elicitar, organizar e se analisar" pelo olhar do outro. Evidentemente, sei que tudo isso é uma experiência que poucos, muito poucos, viverão plenamente. A verdadeira amizade é um exercício diário, uma decisão constante, uma perseverança insistida entre um burro e um ogro. Sim, no fim da última camada, a conclusão é que o outro, o amigo, será aquele que me amará sabendo quem verdadeiramente eu sou: burro ou ogro (ou um pouquinho dos dois!). E eu a ele o amarei também, seja ele um burro ou um ogro. Não esquecendo que burros podem ser "uma besta ambulante de irritação constante" e ogros podem ser mesmo, em todos os sentidos, como cebolas. E, sim, cebolas fedem! E, cedo ou tarde, por algum descuido nosso ou simplesmente pelo fato de serem cebolas, é inevitável que nossos amigos nos façam chorar (e nós a eles).

    Assim, nesta antropologia da amizade, preciso compreender que descascar cebolas é uma arte e ter amigos burros também. O problema é que somos todos muito impacientes uns com os outros. Vivemos tempos em que o amor de muitos já se esfria. Mas, como eu disse acima, fugimos do outro, porque não queremos nos encontrar com nós mesmos. Contudo, ainda há uns poucos que ficam e que insistem em nos ver umas duas ou três camadas a mais por dentro. Acho que é a estes que o tempo, enfim, nos leva a chamar de amigos.

PS - Um dos textos que, há muitos anos, sempre apresento aos meus alunos de Comunicação. Escrevi a partir dessa vida maravilhosa que Deus nos levou para viver. Obrigado, Jesus!

Fábio Ribas

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