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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Aingohegei e dedilhar

 

    Era a minha primeira semana de aula na aldeia com o povo.

    “Vem cá. Senta aqui”, disse, indicando com o dedo o novo lugar para Tali sentar. Contudo, quando acabei de dizer essas palavras, insistindo que ele saísse lá de trás e viesse sentar mais próximo de mim, todos na sala riram. Eu dizia o nome “Tali” e apontava para o seu novo lugar na sala de aula. Fazia gestos com a mão, chamando-o para frente e indicando ao lado de quem ele deveria se sentar agora. Assim, tinha certeza que meus alunos todos estavam me entendendo… Mas eles riam. “Venha, Tali, senta aqui ao lado da Kassi”, eu insistia, batendo com a palma da mão aberta sobre o banco vazio ao lado da Kassi.

    Comecei a perceber que alguma coisa constrangedora estava acontecendo. Tali passava a mão pela cabeça várias vezes e começou a tentar me dizer que não, não viria. Toda essa situação deve ter durado uns vinte segundos apenas, mas para mim já se estendia numa eternidade de risos nervosos.

    - Professor — finalmente socorria-me o Professor indígena que entrava para me ajudar nesses momentos, mas que até ali não se manifestara porque também estava rindo desse caraíba engraçado — Professor, o Tali não pode sentar aí. A Kassi é esposa dele…
      - Ah… Ele não pode sentar ao lado da esposa!? 
    - Não. Disse-me o Professor indígena. Então, diante desse irremediável fato cultural, lá se ia minha ideia de fazer um “trabalho em grupo”. Vi que não poderia simplesmente reunir os alunos uns aos outros, porque eles não sentariam, por exemplo, perto de suas esposas.

    Mas havia outras questões que fui descobrindo por causa da Escola. Uma delas é que ao tentar fazer um exercício oral de “esquerda, direita, atrás, na frente”, surgiu novo momento de risadas. Perguntei a um deles quem estava sentado à frente:

    - Professor, é esse aqui. Respondeu-me apontando para o colega da frente.
    - Sim, mas qual o nome dele?
    - Professor, não posso dizer. Ele é meu cunhado.
    - Ah…!

    A Escola sempre foi um momento mágico de aprendizado e creio que essas “gafes culturais” nos aproximaram muito uns dos outros. Ríamos e aprendi a rir com eles esse riso transcultural gostoso pelo estranhamento com o outro. O outro é outro mundo. Um mundo rico, bonito e cheio das suas coisinhas que precisam ser descobertas para que se possa alcançar uma comunicação efetiva. Assim, como não foi imensa minha alegria quando, ao terminar a aula um pouco mais cedo, vi que eles não saíam da escola. Disse a palavrinha de todos os dias na língua deles para o encerramento, mas meus alunos fecharam seus cadernos e ficaram ali, perto de mim, já mais à vontade: eles não queriam sair. Um dos alunos, Terri, se aproximou e disse uma palavra que eu havia ensinado naquele dia em português: “dedilhar”. E enquanto ele repetia aquela palavra, fazia o gesto de “dedilhar” os dedos sobre a minha mesa. Ele havia gostado daquela palavra. “Dedilhar”. Percebi que realmente era uma palavra gostosa de se dizer e fiquei encantado com o encantamento dele com uma palavra nova do português. Olhando nos olhos dele, eu disse sorrindo: “aingohegei”. Também repeti várias vezes para ele a palavra “aingohegei”, que era a segunda palavra que eu havia aprendido na língua (a primeira fora “saudade”). E ficamos assim por um tempo, um dizendo ao outro essas palavras novas e significativas para nós: “dedilhar” e “aingohegei”. Vi que, de maneira muito delicada, estávamos fazendo um encontro entre dois mundos que desejavam muito aprender um com o outro. Os outros alunos começaram também a dizer palavras na língua deles e apontavam para os objetos aos quais elas se referiam.

    Naquela tarde, minha primeira semana de aula na aldeia, ficamos ali, eu e meus professores, que riam de mim esse riso gostoso que aprendi tanto a amar: o riso da graça de um caraíba (homem branco) tentando acertar o passo com a língua deles. Por um momento, enquanto me ensinavam as cores do mundo deles, recostei na cadeira e fechei os olhos pelos segundos suficientes para dizer em oração a Deus: “Aingohegei”, que quer dizer “muito obrigado”.

Fábio Ribas

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