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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O mundo é a imagem de algo


ton kosmon eikona tinos — frase em O Timeu, de Platão

    “Aqui nesta ilha, o mar… Tanto mar! Ele transborda de tempo em tempo. Ele diz sim, então não, então não. No azul, na espuma, num galope, ele diz não, porque não. Não pode parar. Meu nome é mar, ele repete, batendo na pedra sem convencê-la. Então com sete línguas verdes, de sete tigres verdes, de sete mares verdes, ele acaricia, beija, molha e bate no peito, repetindo seu próprio nome”.

    Quando a personagem do poeta Pablo Neruda termina de recitar os versos acima, o carteiro Mário tenta dizer o que foi para ele ouvir aquelas palavras. Enjoado pelo ritmo do vai-e-vem do poema, o carteiro diz que, enquanto ouvia, sentiu-se como um “barco que se bate em meio ao movimento das palavras”!… Lindo, não?
    
    Realmente, o filme é de uma leveza, de uma sensibilidade e repleto de sentimentos bons e agradáveis… O amor! O amor é esta força que a tudo move e conduz. Os versos de Neruda são o instrumento para a transformação do carteiro, um homem simples e quase analfabeto, mas que descobre o poder das palavras. A tese do filme é que a poesia, a beleza, o amor são o que pode renovar, acender e fazer ascender o ser humano.

    Contudo, não sei se de propósito ou não, o filme revela também o que pode matar o amor, a beleza e a sensibilidade do ser humano: o comunismo! Intencional ou não, vi que o filme encaminhou-me a essa verdadeira conclusão. O engajamento político ideológico é uma deformação do amor. O comunismo como meio de transformação é a própria negação do Belo. A vida é silenciada pela morte. O amor, que começara no sorriso de Beatriz, um sorriso que se espalhava como as asas de uma borboleta, agora, termina, finda-se inapelavelmente sob as mentiras de Lenin e Marx. Assim, a verdade é morta pela mentira. A felicidade desfaz-se na tristeza. E a poesia é arrancada da terra fértil do coração humano pela foice e pelo martelo!

    Logo após os versos do personagem de Neruda que abriram este texto, antes que a fealdade se fizesse presente, dando fim a tudo o que o amor revelou e conquistou no filme, admirado por ter criado sua própria metáfora, o carteiro faz uma pergunta: “Quer dizer então que o mundo inteiro, o mundo inteiro como o céu, o mar, como a chuva, as nuvens, etc, etc, quer dizer, então, que o mundo inteiro é uma metáfora para alguma outra coisa qualquer?”.
    
    Este é o caminho da vida: a descoberta do Belo, da poesia, esse espanto diante de si mesmo e do mundo, leva-nos a indagar se não há, então, alguma outra coisa, algo do qual sejamos todos metáforas escritas por alguém. O mundo não seria uma mensagem, versos, imagens que estariam comunicando algo a todos nós (Rm 1: 20)? Esta é a pergunta que os místicos, os filósofos e os poetas fizeram tendo, em si mesmos, a mesma paixão que o carteiro demonstrava diante do mundo físico, como que se este mundo fosse uma cortina que nos escondesse algo por trás da ribalta.
    
    Neruda, o poeta lenista-marxista, obviamente, não possui nenhuma resposta. A resposta já percebida por tantos poetas gregos e pelos filósofos Platão e Aristóteles, essa resposta universal já intuída também por Filo de Alexadria, fora finalmente dada pelo advento de Jesus Cristo na história humana. Neruda não nos dá a resposta no filme, porque o comunismo é um materialismo que não supre a sede de beleza que há no homem, sede traduzida na busca histórica e humana pela metafísica. O comunismo não irá aceitar a resposta cristã que compreendeu que Jesus é a união de todo dualismo, de toda dicotomia e de toda separação entre a física e a metafísica — a encarnação de Jesus é a resposta de Deus aos homens.

    Encerro com as palavras de Basílio, o grande. Este pai da Igreja já havia percebido que a alegoria era o método hermenêutico preferível para se aplicar sobre a Natureza e que esta, portanto, era um texto poético escrito por Deus e repleto de ensinos aos seres humanos. Se Neruda não soube responder ao carteiro, termino com a resposta de Basílio:

    “[A lua] representa um notável exemplo da nossa natureza. Nada é estável na humanidade. …Assim, a vista da lua, fazendo-nos pensar nas velozes vicissitudes das coisas humanas, deve ensinar-nos a não nos orgulharmos sobre as coisas boas desta vida, nem gloriar-nos em nosso poder, nem sermos atraídos por riquezas incertas. …Se você não pode contemplar a lua sem tristeza quando ela perde seu esplendor por minguar-se gradual e imperceptivelmente, quanto mais abatido deveria ser à vista de uma alma, que, depois de ter possuído a virtude, perde sua beleza por negligência e não se mantém constante a suas afeições, mas é agitada e muda constantemente porque seus propósitos são instáveis”.

Fábio Ribas

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