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sábado, 30 de setembro de 2023

Perto do coração selvagem (III/2023)

 


Afinal, quem é Clarice Lispector? Havia lido e estudado sua literatura há muitos e muitos anos, mas, neste retorno, muita coisa mudou na minha percepção sobre ela.

Mas por que esse retorno a ela agora? Parece que um ciclo na minha vida pessoal se fecha neste momento (nesta última frase, teria sido melhor se houvesse escrito "um quadro", "uma imagem", "um quebra-cabeça", e não um ciclo). Algumas peças vieram à mão e, agora encaixadas, permitem que eu veja com mais clareza por onde estava andando nestes últimos anos. Vejo em perspectiva, à distância, porém, de um modo em que me permito encontrar um sentido melhor e mais amarrado na trilha que estou seguindo. E é aqui que Clarice renasce. Vou me explicar.

Palavras como fenomenologia, filosofia, introspecção, percepção, sensação, diálogo, audição, o outro etc, estas palavras se juntam e são emolduradas por quatro linhas que as cercam e as colocam dentro de um espaço mais correto e correlato. Quais as quatro linhas que as emolduram? Ministério pastoral, aconselhamento, união com Cristo e missiologia. Todas aquelas peças (e muitas outras que as tenho em meu coração) se colocam dentro de um universo que, finalmente, se fecha dentro dessa moldura. É como aquela estratégia quase lúdica (ou lúdica mesmo) do "mapa mental". Mas, nessa analogia, qual deveria ser a palavra central, a palavra motivadora? Neste momento, enquanto escrevo este texto, a única palavra que me faz sentido e da qual todas as demais surgem é "coração".

"Coração", mas, assombrosamente, não saberia dizer se seria o seu, o meu ou um outro. A melhor resposta, então, a mais justa e que se encaixaria melhor em tudo o que estou tentando dizer, é que eu devo trabalhar numa perspectiva tridimensional, sendo que "coração" é o meu coração, mas diante ou perante o coração de Cristo! Portanto, veja que surpreendente, um coração nada selvagem. Ao contrário, um coração já domesticado, com suas lutas, saudades, falhas e pecados, mas, certamente, um coração em Cristo e não mais um "coração selvagem".

Um coração unido ao coração de Cristo, mas cercado por muitos outros corações, outros também em Cristo, entretanto, em pontos da caminhada nem sempre semelhantes ao meu. E há outros corações, há muitos outros ao meu redor, como um dia o meu também era, que ainda são corações selvagens. E andar com o meu coração perante Cristo é também colocar-me amorosamente perante o outro. O outro e seu coração selvagem. Assim, reaproximo-me de Clarice Lispector, pois, neste momento da minha vida, estou andando, proposital e intencionalmente, muito "perto do coração bravio da vida" (James Joyce).

O livro de estreia de Clarice Lispector, lançado no mês em que ela completava 23 anos de idade, em dezembro de 1943, é uma peça que envolve outras que ajudarão na leitura dessa filósofa precoce. Este primeiro livro de Clarice remete, indubitavelmente, não apenas ao "o lobo da estepe", de Herman Hesse, mas também é sustentado na filosofia de Spinoza. Embora, quando ela lançou seu livro, muitos disseram que ela mesma tinha sido influenciada por Virginia Wolf e James Joyce, mas ela sempre negou que os tivesse lido até o lançamento de "Perto do coração selvagem".

A estreia da Clarice foi estonteante, ainda que, durante muitos anos, ela fosse considerada uma "escritora para escritores". As próprias características de sua literatura a afastava, pois era algo inédito no Brasil. Havia poucas escritoras, mas nenhuma se apresentou nos moldes de Clarice. Um estilo introspectivo, personagens repletos de monólogos interiores e uma ausência de uma narrativa linear. O tempo cronológico não atua efetivamente, mas o tempo da reflexão, da divagação, o tempo do coração. Mas que coração selvagem é esse? A identificação com o coração selvagem é o da personagem "Joana". Ela é a que melhor representa esse coração: uma personagem amoral e que é identificada com a víbora. Ela não se entrega, parece sempre acuada e à espera do melhor momento para dar o bote. Contudo, a identificação com o mundo animal atinge um significado duplo: 1) contra um deus que não nos teria feito "melhor" do que as galinhas, o boi e a víbora. Somos animais como eles e, assim como eles, reagimos ao mundo que nos cerca; 2) reagimos racionalmente? Não, mas pelas sensações. Isto é, as pecepções em Clarice estão no mundo pré-teórico e não racional. Por isso, ela se demora em nos fazer sentir o que seus personagens sentem diante do mundo que se manifesta perante eles. A literatura de Clarice, portanto, é fenomenológica, mas não quer que avancemos para o racional. A nossa identificação com a Natureza se dá pela semelhança e não por nossa diferença.

Agora… Por que perto do coração selvagem e não dentro dele? Estamos perto, mas não a ponto de compreender e nos identificar com Joana? O livro nos mostra a personagem ainda criança, depois nos salta a ela mulher, até que, finalmente, ela estaria idosa naquele último e enigmático caminho? E, sinceramente, quem é o homem que a seguia? Otávio? O Professor? Clarice compartilha suas sensações. Todavia, permanecemos nelas sem que avancemos para reflexões mais definidas… A Natureza É!  -  eis o deus de Spinoza.

É debaixo de muitas indagações que quero seguir a literatura de Clarice com meus olhos de hoje. Quero caminhar ao lado dela, bem perto de seu coração selvagem e ver como ela desdobrará sua literatura fenomenológica. Sim, Clarice era uma bruxa.

Fábio Ribas

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