Artigos

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Cosmovisão, animismo e Cassirer (ou "O filósofo e o pajé: anotações para sala de aula")

 

         Ao estudarmos certas formas primitivas do pensamento religioso e mítico ...“o que aí encontramos não é, em absoluto, falta de ordem; é outrossim, uma certa hipertrofia, uma preponderância e exuberância do “instinto de classificação”.
Ernst Cassirer


Durante a disciplina de “Comunicação transcultural e contextualização”, sempre chega o momento no qual é preciso tratar do tema das cosmovisões.

Dentre todas as definições sobre cosmovisão a que eu mais gosto é a de Phillip E. Johnson: “Uma cosmovisão é, talvez, uma coletânea de preconceitos. Neste caso, eles são necessários, porque não podemos começar de uma folha em branco, e, sozinhos, investigar tudo do nada”.

Mas há muitas outras definições interessantes sobre o que é uma cosmovisão. Desde “é tudo sobre tudo”, passando por “um conjunto de intuições”, até mesmo a que apresenta a cosmovisão como “um organismo”. As possibilidades de se entender o que seja cosmovisão são diversas, dependendo de qual seu ponto de partida, ou melhor, dependendo da própria cosmovisão do investigador (materialista, espiritualista ou idealista, por exemplo). Kant foi quem introduziu a palavra Weltanschauung (“perspectiva do mundo e das coisas, um modo de observar o cosmo de um determinado ponto de vista”, segundo a explicação sobre a palavra feita por Albert Wolters) e que, posteriormente, foi usada na filosofia da cultura.

Para outras definições, deixo o slide abaixo com o qual sempre discuto sobre o tema com meus alunos:



Há ainda uma outra ligação que gostaria de fazer. É a ligação entre a palavra “cosmovisão” e “cosmologia”, ou melhor, com o adjetivo “cosmológico”. Estamos tratando de categorias semânticas que organizam o universo, assim, introduzimos com essa ligação – cosmovisão-cosmológico – uma perspectiva não apenas linguística, mas, principalmente, mítica ao tema. Por “mítico” entendo todos os discursos mais profundos, figurativos e abstratos, que tratam do ser humano e da cultura em que o homem se insere.

E é aqui, após apresentar pelo menos 7 tipos de “cosmovisões” aos meus alunos em sala de aula, que indago a eles: e o animismo? No meu quadro das cosmovisões, não aparece o animismo. O animismo, de modo introdutório, é a maneira de ver o mundo como uma realidade espiritual. No animismo, não há uma dicotomia espiritual-material: tudo é “ânima”, alma. Assim, de propósito, retirei o animismo (sempre atribuído às realidades tribais africanas e ameríndias, entre outras) do quadro das cosmovisões. Por quê?

Ainda que pudéssemos abrir as possibilidades das cosmovisões em 7 (ou em mais ou menos, dependendo da “cosmovisão do organizador das cosmovisões"), compreendo que o animismo, muito mais do que uma mera cosmovisão, é um tema transversal que perpassa a todas elas. Assim, “teísmo”, “deísmo”, “ateísmo”, “panteísmo”, “panenteísmo”, “teísmo finito” ou “politeísmo” são sistemas, cosmovisões, que guardam em si o animismo em maior ou menor grau.

O que estou querendo dizer é que a história da civilização é a história da tentativa de sairmos da “caixinha” do animismo. Embora isso que eu afirmei pareça ser uma visão cientificista do século XIX, não é. Como já disse, o animismo impregna a todos em menor ou em maior grau, até mesmo ao filósofo ou ao cientista materialista.

Quando estudamos as culturas por todo o mundo, podemos agrupá-las das mais diversas maneiras possíveis, aproximando-as ou distanciando-as, procurando suas semelhanças e suas diferenças, suas homogeneidades e heterogeneidades ou, como dizia Kant, segundo o interesse da unidade ou o interesse da diversidade.

Não há cultura no mundo que não tenha se valido do mito, da linguagem mítica, para expressar o seu ponto de vista. Porém, a diferença entre o pajé que pratica seus rituais e o cientista que manipula seus elementos químicos não é “evolutivo”. A diferença entre ambos não está em que um esteja no início de uma trajetória enquanto o outro já se encontra no ápice da civilização, que é a suposição de autores como Lévy-Bruhl. A diferença entre eles, muito menos, é uma mera diferença de grau como se o selvagem fosse um “filósofo selvagem”, perspectiva de autores como Tylor. Ambos caminhos, citados por Cassirer em seus estudos, representam interpretações “aparentemente opostas”.

Para Cassirer, o nosso erro no estudo das culturas humanas está em não levar em conta a presença de ambos – o filósofo e o pajé. O erro está em sempre olharmos as culturas agrupando-as por suas semelhanças e diferenças, por suas homogeneidades e heterogeneidades, quando, na verdade, subjaz a toda cultura um mesmo “animismo”, por um lado, e um mesmo “cientificismo”, por outro. Ou, nas palavras de Sir J. O. Frazer, o que subjaz ao pajé e ao filósofo é esta “fé implícita, mas real e firme, na ordem e uniformidade da natureza”.

O motivo deste texto (um mero registro das minhas reflexões para sala de aula) – é que, nestes anos todos em que li estudos sobre as culturas do mundo (além das culturas ameríndias com as quais tenho contato), as ideias de estudiosos como Frazer e Tylor sempre me foram conscientes e orientadoras para os rumos que tenho dado aos meus estudos e às aulas dadas aos meus alunos: “O primitivo atua e pensa como um filósofo autêntico. Combina os dados que lhe são fornecidos por sua experiência sensorial e procura concatena-los numa ordem coerente e sistemática”, confirma Frazer.

Todavia, assim como Cassirer, eu renego a ideia extrema do “filósofo selvagem”, que seria a figura de um dialético, de um escolástico primitivo organizando o mundo por meio de categorias aristotélicas, tanto quanto renego o outro extremo que nos leva a rejeitar qualquer acesso, qualquer ponto de contato com a mentalidade mítica, como se fosse uma mentalidade incompreensível, irracional e pré-lógica. Assim, como já disse, é preciso combinar essas duas vertentes dos estudos antropológicos em seus extremos, encontrando o meio do caminho, para que possamos discernir de maneira justa a mentalidade mítica e animista.

A conclusão é que o método que devemos usar para a abordagem de quaisquer culturas é o de buscarmos não seus conteúdos e conclusões díspares, mas antes suas formas, esse mecanismo comum às mentalidades do filósofo e do pajé que expressa em ambos, principalmente diante da experiência comum da morte, “o mesmo desejo da natureza humana de compreender a realidade, de viver num universo ordenado e de superar o estado caótico em que as coisas e as ideias ainda não assumiram forma e estruturas definidas” (Cassirer).

A tese de Cassirer, conforme apresentada em seu livro “O mito do Estado”, é que o desastre ocorrido durante o século XX por meio dos regimes totalitaristas (Comunismo, Nazismo e Fascismo) deve-se ao fato de não compreendermos corretamente a natureza da linguagem mítica. Como consequência disso, vimos e permitimos na história política moderna o surgimento de um novo poder: o “poder do pensamento mítico”, que suplantou o pensamento racional.  Portanto, é este o preço que se paga por não se compreender em sua justa medida o pensamento do pajé. 

Fábio Ribas

Texto publicado originalmente em 06/08/2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu? Clarice Lispector.

Nos passos de Hannah Arendt (XLI/2024)

  Nestes últimos anos, além de vários artigos e ensaios, tive a oportunidade de ler “Eichmann em Jerusalém”, “Homens em tempos sombrios”, “O...