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sábado, 11 de novembro de 2023

A família que devorou seus homens (X/2023)

 



"Minha mãe tem medo de perder a memória, e eu tenho medo da loucura".

    Eu preciso de memórias! São elas que me dão identidade. As memórias não apenas me dão uma identidade pessoal, mas também elas me unem com quem tem as mesmas memórias que eu tenho. Uma família tem memórias comuns. Quando os indígenas se reúnem em suas casas, eles ouvem os mais velhos contarem as histórias dos antigos. Memórias de tempos imemoriais. Porém, é isso o que nos une a todos: histórias que nós mesmos vivemos; histórias que vivemos com outros; histórias de outros que viveram com pessoas que nunca vimos; enfim, uma memória social e coletiva que passa a ser nossa história também.

    Mas as memórias podem também ser um fardo. Lembro-me que, certa vez, assisti a um programa médico sobre doenças do cérebro e havia dois casos opostos: um paciente, assim que acordava, nada se lembrava do seu dia anterior, da sua identidade, de sua vida; já o outro não conseguia esquecer nada. Este, então, depois de tudo, enlouquece, porque suas memórias são um fardo ininterrupto que lhe entulha a mente sem tréguas. O esquecimento - assim como o medo  -  são benéficos quando em certa medida (ou seja, na medida certa). O medo nos protege. Quando ultrapassa o limite, o medo se torna uma fobia que nos escraviza. O esquecimento também nos protege. Há dores, mágoas, lembranças que, caso não sejam jamais superadas, tratadas e curadas, ficariam ali nos martelando ininterruptamente: memórias que nos aterrorizariam e nos paralisariam eternamente. Sim, as memórias  -  assim como o medo, a culpa e a vergonha  -  podem nos aniquilar aos poucos até nos levar à morte  -  seja esta espiritual, psíquica, emocional ou, até mesmo, física. Esquecemos, pois há dores que não conseguimos tratar. Todavia, o esquecimento parece ser uma tênue camada de polimento que, diante do calor de algum evento inesperado, pode trazer do fundo de cada um de nós uma sacola de memórias esquecidas, cuja força incontrolável mais se parece com um vulcão em erupção. As memórias, tê-las escondidas num mar de esquecimento pode ser inesperadamente fatal. Já assistiu à minissérie "amor e traição"? Assista e você entenderá melhor o que estou falando. Este texto não é sobre essa maravilhosa série, mas deixo aqui a dica. Uma série sobre memória, esquecimento e os lapsos de nossas incongruências.


    Hoje, meu texto é sobre o encantador livro "A família que devorou seus homens". Dima Wannus presenteia o leitor brasileiro com sua narrativa de memórias. Mãe e filha reunidas nas fugas, nas saídas, nas retiradas, nas trajetórias para longe da revolução na Síria, que se apresenta como uma verdadeira loucura de interesses envolvendo pelo menos três grupos que disputam o poder, além das intervenções americanas e russas. Difícil discernir os mocinhos dos bandidos nessa tragédia que originou uma imensa diáspora e uma terrível crise humanitária. Os estudiosos desse mapa geopolítico chamam a atenção para quem seriam, então, os refugiados sírios. Como o pobre não tem como fugir do país, não tem como financiar uma fuga até um lugar seguro e, muito menos, manter-se em uma nova terra e se reestabelecer e começar tudo de novo, a maior parte dos refugiados sírios são, portanto, classe média e classe média alta. A autora de "A família que devorou seus homens" mora hoje na Inglaterra. Conheci um sírio em São Paulo, motorista de Uber, e seus familiares todos se espalharam pela Europa, enquanto somente sua mãe permaneceu na Síria. É um dado muito diferente do que estamos acostumados a pensar sobre os refugiados.

    Assisti a uma entrevista online de uma jornalista brasileira com a Dima Wannus e, durante as perguntas, e entristeceu-me profundamente, na verdade eu fiquei foi com vergonha alheia da jornalista, que, além de fazer uma leitura tão ideologizada do livro, faz o pior comentário possível com a Dima Wannus. A jornalista diz à autora que o fato de o livro ser o retrato de uma família de mulheres sem a presença dos homens, que ela, a jornalista, via nisso a semelhança com muitas famílias brasileiras, cujas mulheres levavam suas famílias sozinhas. Uma percepção infeliz, que resultou num comentário necessário da autora que não via que a situação seria a mesma, pois a falta dos homens no livro dela era resultado da guerra civil e não de abandono do lar ou de suas responsabilidades. Muito triste a situação de quem insiste em encaixar o mundo na sua teoria ideológica. A autora, que estava bem cansada durante a entrevista por causa da diferença do fuso horário entre o Brasil e a Inglaterra, chega mesmo, nesse ponto, a pedir que pulassem para outra pergunta.

    Se eu gostei do livro de Dima Wannus? Amei! Um livro de mulheres. Um livro que mostra uma família de pessoas com religiões diferentes. Um livro de memórias, mas não são apenas nossas memórias que nos unem como família, nossas casas também. Veja como construímos nossas identidades coletivas e familiares: são nossas memórias, nossas casas, a terra e os perfumes também: todos estes elementos estão presentes no livro. As casas que nos abrigam e nos reúnem. Volta e meia, penso nas casas da minha infância, as casas em que nossa família se reunia: a casa da praia, a casa de Niterói, a casa do Rio (na Tijuca e em Grajaú), a casa de tia Cecília, em São Paulo. Casas também nos reúnem, as casas por que passamos e vivemos tantas experiências, tantas vivências juntos. Minha família era espalhada. Nós em Brasília, outros em São Paulo, outros no Rio de Janeiro, havia ainda quem estivesse no Espírito Santo e no Acre. E o que nos unia? Casamentos e velórios (muito mais do que aniversários). Houve um tempo, em que começou a haver mais velórios que casamentos. Eram encontros recheados de muitas e muitas lembranças.

    Há capítulos maravilhosos, reflexões maravilhosas sobre as memórias no livro de Dima Wannus. Contudo, um dia, tudo se desfaz. Num gesto, numa atitude, numa decisão rápida e tudo o que registramos em nossa câmera também se perde, virando apenas memória. As memórias são grãos de areia se perdendo entre nossos dedos na passagem do nosso tempo. Todavia, se a câmera se vai com todas as nossas imagens, fica-nos o registro da palavra escrita. Estaria a autora dizendo que, nesta era da imagem, o que realmente prevalecerá é a palavra sobre a imagem?

    A vida em trânsito devora homens e mulheres. No fim de tudo, num olhar mais amplo, a chamada primavera árabe se tornou, para muitos países do Oriente Médio, um longo e tenebroso inverno. Eu queria não esquecer disso, apesar de correr o risco da loucura.

Fábio Ribas

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