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sábado, 4 de novembro de 2023

Palavra por palavra (IX/2023)

 

    Este livro não estava sequer na lista de desejados para 2023. Um livro que só fiquei sabendo da existência, porque fora citado em outro livro (este, sim, o livro do Powlison, um livro que estava na lista dos que TINHA que ler). Agora, feliz e infelizmente (rsrsrs), o livro de Anne Lamott está posto: por que fui atrás de satisfazer essa curiosidade adâmica em querer experimentar o que me fora apenas sugerido? Aliás, acredito que Powlison estava falando mal da Anne Lamott. Ou melhor, Powlison a usou para dizer que ela era "menos ruim" do que o Gary Chapman, das "5 linguagens do amor". Como eu já havia lido o livro do Chapman, fui fisgado a ler essa tal de Anne Lamott. Parece, dentre algumas informações que acabaram vindo à tona na minha pesquisa, que ela é também uma espécie de "líder espiritual" para alguns, uma espécie de "paulo coelho gospel" e também pareceu ter uma teologia bem flácida ao gosto dos tempos atuais que temos vivido. Foi assim que cheguei a este livro dela sem a menor pretensão sobre o que, de fato, encontraria. E qual não foi a surpresa? Havia lido apenas três páginas e elas já foram o suficiente para que eu me pegasse pensando: "Ferrou! Agora, fui fisgado! Como que alguém escreve assim?".

    Minha vida parece dividida entre livros que quero ler e livros que tenho que ler. Contudo, vez em quando, sou surpreendido por livros como o da Anne, que compõem uma terceira e toda maravilhosa lista: a dos livros que insistem em ler a mim, enquanto os leio! E aqui a autora também confidencia ter tido semelhante experiência a essa que acabei de narrar. Ela diz que a leitura do "Apanhador no campo de centeio" fez também isso com ela, de ver num livro os sentimentos que estão no nosso coração, mas que não sabemos bem como expressar. Várias reflexões que ela faz sobre a escrita e a leitura também as faço. Portanto, entendo bem quando ela diz que "escrever nos motiva a olhar a vida mais de perto". O escritor é alguém que, antes de tudo, tem que ter sua atenção aguçada ao que está a sua volta. E eu sou tão concentrado naquilo que estou lendo, que me vejo totalmente desconcentrado ao que está no meu universo periférico. Mas isso não acontece só enquanto estou lendo. O mundo pode estar despencando sobre a minha cabeça, mas eu continuo atento ao que você está me dizendo ou à paisagem que estou admirando. A gente foca nos detalhes. Por isso, como diz Lamott, a gente vira escritor, pois a alternativa seria nos tornarmos criminosos!

    Não há como negar que a literatura é uma busca (e a escrita também) de vermos o mundo de um modo criativo, espiritual e estético. "Passei a acreditar que, com um lápis na mão, talvez pudesse fazer algo mágico acontecer", confessa a autora, que se empenhou mesmo nisto de ser uma escritora profissional, a ponto de largar os estudos e se dedicar à tarefa! O pai de Lamott era um escritor também e a descoberta do mundo da leitura e da escrita se dá com ele. E a partir do enfrentamento do câncer, ela começa a escrever como foi a doença na vida do pai para sua família.

    Você quer escrever? Então, pare agora o que vc está fazendo e leia este livro! Comece dando pequenos passos, realizando pequenas tarefas, nada de escalar o Everest. Faça esboços ruins, mas faça! E jogue fora o perfeccionismo. Ele é um limitador da sua criatividade. E não duvide: fumaça e bagunça são fundamentais. Uma das razões que mais gostei desse livro é que ele é uma "oficina de escrita". A autora compartilha conosco o que ela compartilha com seus alunos em sala de aula sobre escrever.

    Um livro leve, cheio de citações, que me deu grandes ideias e me desafiou a pensar a escrever algo maior, talvez um romance. Anne Lamott escreve deliciosamente. Cheia de bom humor! Destaco a parte sobre termos pessoas junto a nós, andarmos juntamente com amigos escritores, para lermos os textos uns dos outros e nos ajudar quando os nós do desânimo, da falta de criatividade e do bloqueio mental chegarem. Também achei muito boa e engraçada toda a explicação que ela dá sobre difamação e como podemos evitá-la. Pois, afinal, escrevemos para contar a verdade, mas como fazer isso sem sermos condenados por difamação? Pois bem, ela dará ótimas dicas sobre como proceder (uma das dicas é inusitada e engraçadíssima).

    Escrevo para contar a minha versão da história. Aprendi isso com minha mãe. E sobre isso, certa vez escrevi:

    Aprendi com minha mãe, a Filósofa urbana, que a vida de cada um de nós é feita de verdades privadas e versões públicas. E aquele que não traz do privado ao público a sua própria verdade estará condenado a ver seus inimigos contarem sobre você as narrativas deles! Toda omissão é uma concessão à versão alheia. A verdade só virá a público se falarmos o que pensamos e o que vemos. O nome disso? Liberdade de expressão!

    É impressionante como a versão que prevalece é a de quem tem poder e amigos poderosos, infelizmente. Contudo, escrever e contar a sua versão talvez dê esperança a quem também já sofreu, foi traído e se viu numa situação de injustiça. O mundo é mau e os seres humanos somos pecadores! Sempre há o amigo íntimo que levanta o calcanhar contra a gente, ainda que tenhamos alimentado esse "amigo" na mesa da nossa casa e com o pão de nossa intimidade, como nos diz o salmista.

    É inevitável que haja tribulações no percurso, mas, quando escrevo, estou dizendo ao outro que ele não está sozinho e que é possível superar e perdoar, assim como é necessário aprendermos a nos proteger de vampiros emocionais e psicopatas (sim, eles existem e já os encontrei no meu caminho mais do que poderia imaginar!). Com o tempo, a gente vai descobrindo que há muitas pessoas aí fora que foram magoadas e se tornaram vingativas e que não querem se sentir magoadas sozinhas. Elas insistem em puxar outros para dentro de seus buracos-negros de solidão e miséria espiritual. E elas conseguem, porque muitas usam do poder que outros  -  ou nós mesmos   - deram a elas. Acredito que há muito de inveja por aí mundo afora, por isso é que certa vez eu brinquei (seriamente) dizendo: "Sim! É claro que eu perdoo. Não quero carregar mágoas e nem deixar que criem em meu coração raiz de amargura. Contudo, embora eu perdoe, eu não esqueço, pois todo escritor precisa de matéria prima para compor os vilões de suas histórias"! Deixo abaixo as palavras acertadas de Anne Lamott:

    Acho que este é nosso objetivo como escritores: ajudar os outros a ter essa sensação de deslumbramento, uma nova visão das coisas que podem nos pegar de surpresa, que invadem nosso mundo pequeno e isolado. Quando isso acontece, tudo parece mais espaçoso. Tente passear com uma criança que fica dizendo: "Uau! Olha aquele cachorro sujo! Olha aquela casa incendiada! Olha aquele céu vermelho!" A criança aponta e você olha, enxerga e começa a dizer: "Uau! Olha aquele jardim grande e maluco! Olha aquele bebezinho tão pequenininho! Olha aquela nuvem escura e assustadora!" Acho que é assim que deveríamos viver no mundo - presentes e perplexos.

    Minha oração de todo dia: "Deus, que eu nunca perca esse deslumbramento que o Senhor me deu"!

Fábio Ribas

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