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sábado, 17 de fevereiro de 2024

A casa da sabedoria (VIII/2024)

 


O tom belicoso do livro estraga a proposta. A intolerância e a antipatia com os cristãos europeus mostram um historiador totalmente comprometido com um dos lados. Mas Lyons não é historiador. Ele é um repórter. Por isso sua escrita flui clara ao leitor, mas o revanchismo transborda cada vez que adentramos mais e mais em sua obra.

A intolerância do autor se revela na medida em que ele faz com o Ocidente o que ele o acusa de fazer com os árabes: uma caricatura intolerante e desonesta. A hora em que Lyons começa a citar Agostinho e Paulo e distorce seus textos para atribuir ideias que eles nunca defenderam, então, vemos do que Lyons é capaz. O livro começa promissor, uma vez que já nos apresenta uma linha do tempo e também uma lista dos personagens históricos. Pensei que o livro seria uma apologética da influência inegável que a ciência árabe teve sobre o Cristianismo Medieval. Contudo, o tom do livro é bem outro.

Desde a reclusão da pandemia, aproveitei para estudar a língua e a cultura de vários países árabes. Li livros de autores egípcios, libaneses e palestinos. Saí dessa esfera e passeei entre persas e turcos. Li prosa e muita poesia. Entre “mocinhos e bandidos”, posso afirmar que somos todos pecadores. Ouvi discursos atravessados, magoados e feridos. Sei que há uma “direita” que defende uma Palestina para palestinos, assim como há uma onda de judeus que não defendem o sionismo. E há muita ficção revolucionária com grupos do Ocidente defendendo partidos religiosos que, uma vez no poder, já mostraram que iriam para cima desses mesmos grupos que os defendem por aqui. Enfim, a situação é complexa e há de todos os lados quem defenda suas bandeiras, justas ou não, da pior maneira possível. Lyons é um desses. Talvez tenha sido, para mim, mais forte a postura agressiva dele, depois de ler tantos bons autores que souberam colocar seus argumentos com muito mais lucidez e equilíbrio, ainda que com muita paixão. 

Lyons está fazendo um desserviço ao diálogo entre o Ocidente e o Oriente. Suas inúmeras notas de rodapé se perdem na intolerância e no ódio que ele revela tanto no deboche como nas distorções do seu livro. Uma pena. Como disse, tenho lido livros muito bons sobre a história e a cultura árabes, mas este de Jonathan Lyons é um retrocesso no entendimento entre as civilizações. O adjetivo mais usado no livro para descrever o mundo não árabe é a palavra “tosco”: o Ocidente é tosco; a Europa é tosca; os cristão são toscos; nossa educação, filosofia e religião são toscas. Um desperdício de pesquisa nas mãos de um adepto ideológico, para quem os cristãos são uma horda de ignorantes bárbaros e atrasados. Seu livro parece sair da pena do mais radical e anticatólico pensador iluminista da Revolução Francesa. Para Lyons, assim como para o Iluminismo, prevalece a mesma distorção de ver a Idade Média como uma “tosca” Idade das Trevas. 

Um ponto positivo do livro é vermos como que o “capitalismo”, o comércio entre os povos, é capaz de neutralizar as inimizades. Os laços econômicos entre árabes e cristãos, que só puderam acontecer por causa das Cruzadas, é também mencionado no livro. Assim, a troca entre culturas é sempre bem-vinda. Todavia, interesses obscuros atuam hoje, assim como atuaram no passado e, se o espírito revanchista de Lyons é o que impera no Oriente contra o Ocidente, então devemos todos orar e nos preparar para a ira que espera por se derramar nos próximos anos. 

                                Fábio Ribas

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