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sexta-feira, 19 de abril de 2024

O sagrado nosso de cada dia (ou "O símbolo negligenciado) - última parte


 

Quero aqui ampliar os conceitos de “sincretismo” e “esquerdismo”. 
Assim como “sincretismo” pode ser um termo usado para expressar tanto a promiscuidade entre ideias religiosas como não religiosas, não deve passar despercebido que o que fundamenta o esquerdismo é uma estrutura religiosa ateia e anticristã também.

O sincretismo não vitima apenas o cristianismo romano com suas cruzes e crucifixos como vimos no episódio da “cruz comunista” (veja aqui). Na verdade, a maioria dos cristãos sente-se ofendida quando a simbologia de sua fé é deturpada. Um bom exemplo de sincretismo esquerdista é o relatado por Norma Braga em seu post “A ceia agridoce”. 

Como disse no ensaio anterior, o sagrado tem uma linguagem que precisa ser corretamente interpretada. As diferentes instâncias dessa linguagem (símbolo, mito, rito, dogma e dessacralização) possuem regras de hermenêutica próprias, assim como os diversos gêneros literários da Bíblia exigem também abordagens específicas.

Nossa hermenêutica do sagrado não pode se confundir, pois, do contrário, não apenas o sincretismo deturpará a mensagem evangélica, mas o paganismo, a idolatria, o nominalismo e o materialismo se assentarão no lugar onde não devem estar (Mc 13:14).

Gostaria de chamar a sua atenção para duas leituras possíveis sobre o símbolo do “Crucifixo comunista”, presente do Presidente Evo Morales ao Papa Francisco.

A primeira é a ironia de ser a cruz um instrumento do tribunal romano, logo um mecanismo da “justiça dos homens”, ao que Jesus prevaleceu contra tal mecanismo na ressurreição. A ironia está na profética “simbologia pela culatra”, ocorrida de maneira não intencional pelo artista que confeccionou o presente dado ao Papa, pois o crucificado na cruz da “justiça do marxismo” também irá prevalecer sobre o comunismo, assim como ocorreu com o Império Romano.

A segunda leitura é que, embora o protestantismo histórico e o movimento evangélico moderno tenham se apegado à imagem da cruz vazia como um contraponto à mensagem mórbida do crucifixo católico, “um Jesus derrotado”, a verdade é que a cruz vazia nada fala sobre o que ocorreu no terceiro dia.

Vazar a cruz ou deixá-la vazia (e agora respondo à pergunta feita no ensaio anterior) é apenas apontar para o fato de que o corpo de Jesus não está mais ali. A exposição somente de uma cruz vazia ou vazada é incompleta. Portanto, um símbolo incompleto.

Vazar a cruz ou deixá-la vazia é fazê-la sempre apontar numa direção equivocada, esvaziando-a da tragédia cósmica do sacrifício do cordeiro por causa dos nossos pecados. Para fugir à idolatria de uma imagem sobre a cruz e evitar a quebra do 2º mandamento, as cruzes vazias ou vazadas são, ainda assim, meramente iguais às cruzes dos bandidos que morreram ao lado de Jesus ou àquela usada na Parada Gay em São Paulo. Elas estão vazias (ou vazadas), sendo, então, passíveis de serem preenchidas por outros mitos, outras narrativas.

Nas palavras do próprio Cristo, a mensagem da cruz é validada, tão somente, por QUEM foi crucificado nela e não por ela mesma (Mt 23:16–22). É sempre Deus quem toma um elemento ordinário e o transforma em extraordinário. E sabemos disso! A nossa cultura judaico-cristã está sobrecarregada dessa mensagem e é por isso que mesmo descrentes se ofendem ou estranham quando veem a cruz sendo corrompida de seu significado original e histórico cristão. Em outras palavras, mesmo que não haja nada ali, nossa mente sabe que há um referente.

Assim, a cruz está sobrecarregadíssima da mensagem da paixão e da morte, pois essa é a mensagem de Deus que será sempre escândalo para os judeus e loucura para os gregos (I Cor 1:23). E na cruz, como símbolo, deve sobejar impetuosamente a morte, a dor, a morbidez, a tragédia, o abandono, a aparente falta de sentido, enfim, a agonia de Cristo em seu sacrifício por causa dos meus pecados, gritando: “Ó Deus, ó Deus, por que me desamparaste”! (Mt 27:46).

O que quero chamar sua atenção é que a mensagem evangélica total não será dada numa cruz vazia e nem vazada, mas no terceiro dia, num túmulo esvaziado sob o poder do Espírito Santo. É o túmulo esvaziado pelo poder do amor de Deus o que se levanta contra a cruz sobrecarregada não apenas pelos pecados dos homens, mas, principalmente, pela Ira divina.

O sepulcro, cuja pedra foi removida, é um símbolo que não pode (e não deve) ser substituído por uma cruz vazia e nem vazada, mas apresentado como a resposta divina às indagações suspensas no ar daquela tenebrosa sexta-feira.

Só o sepulcro vazio, ornado apenas pelos lençóis de linho que envolviam Jesus, é o símbolo que completa a mensagem evangélica, apresentando-se como um símbolo contra o outro, não para substituir a cruz, mas como a resposta retumbante e poderosa do Evangelho Total de Deus para o drama da história humana.

É assombroso refletir que o que está vazio, o que foi vazado para Deus e por Deus foi o túmulo daquele domingo e não a cruz daquela sexta-feira (não se esqueça que foram os homens que tiraram Jesus do madeiro). Não há nada ali naquele sepulcro, além de lençóis dobrados, e é essa ausência que se impõe repleta de significado de um plano arquitetado e decretado na eternidade pelo próprio Deus para a salvação da Igreja, a noiva do seu Filho.

            Fábio Ribas

Publicado em 27/10/2015

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