Trabalho com culturas que praticam o infanticídio — o assassinato de crianças logo após seu nascimento.
As justificativas são as mais variadas para tal prática: 1) o medo dos espíritos (pois, quando gêmeos, crê-se que um deles pode ser um espírito maligno, e por não saberem qual, então, enterram vivos os dois); 2) o peso do machismo que irá fazer da mãe solteira, que insistir em preservar sua criança, uma “mulher de todo mundo” naquela sociedade; 3) evitar também o estigma daquela criança sem pai de ser um pária na tribo e ser tratado como um pulha por todos ao seu redor; 4) livrar-se do estorvo de criar uma criança com deficiência física ou mental, etc.
O mais surpreendente, porém, é que as justificativas apresentadas no parágrafo acima são quase as mesmas para aqueles que justificam o aborto na nossa sociedade dita “civilizada”.
Ontem, junto com minhas filhas, assisti a um antigo episódio da família Dinossauro em que se comemorava “o dia do lançamento” — um ritual no qual os idosos eram lançados no poço de piche ao completarem 72 anos de idade. A justificativa daquela prática, que já durava milhares de anos, era que os idosos atrasavam a manada quando essa precisava fugir dos seus predadores.
Contudo, o jovem neto, cuja avó iria ser arremessada, questionou essa prática: “Mas hoje somos urbanos! Não vivemos mais na mata, fugindo e se escondendo de predadores… Então, porque ainda temos que matar nossos idosos?”!
Surpreendi-me novamente pois algumas culturas indígenas também abandonam seus idosos, ou na mata ou dentro de uma casa sozinho, sem comida e sem água até que, obviamente, morram. Qual a justificativa? Antigamente, estes povos indígenas eram nômades e seus idosos eram um peso para eles, contudo, hoje, além desses povos já serem sedentários, há a presença de um profissional da saúde muito próximo, senão, até mesmo dentro da própria aldeia.
O Governo tenta esconder, mas nós também abandonamos nossos idosos (e eu não estou referindo-me aos asilos). Nossos hospitais públicos, as políticas mercenárias dos planos de saúde e a escandalosa realidade do SUS demonstram que há uma cultura de eliminação do idoso acobertada pelo Estado. O idoso em nossa sociedade também é um estorvo, ele custa aos cofres públicos uma grande quantia de dinheiro e o Brasil precisa eliminar suas despesas desnecessárias.
O Brasil está envelhecendo e daqui 40 anos 30% da população será composta de idosos. E esses idosos, que serão “aposentados improdutivos”, estarão também vivendo mais — e o Estado sabe disso. Aqui, os “teóricos da conspiração” nos colocam a questão de uma pandemia planejada, controlada e arquitetada para um controle populacional, uma reengenharia social.
Ou você ainda acha que o interesse estatal em temas como aborto, eutanásia e a negação do caos da falta de infraestrutura da saúde pública se devem simplesmente à incompetência e corrupção? Ledo engano, meu caro cidadão. Um dia vão jogar você e a mim no poço de piche como já o fazem com tantos milhares de idosos Brasil afora.
Aborto, eutanásia, limpezas étnicas, etárias e socioculturais continuam a fazer parte do plano de governo de vários países e, muitas vezes, tudo está sendo incentivado por politicas públicas que colocam o valor coletivo, “cultural”, acima do indivíduo.
Aqui chegamos à questão ética que envolve nossa sociedade Star Trek. Afinal, “a necessidade de muitos sobrepõe a de poucos ou mesmo de um só” (posição defendida pelo personagem Spock — que se sacrifica pelo bem de todos) ou “a necessidade de um, às vezes, supera a necessidade de muitos” (posição defendida pelo personagem do capitão Kirk — que sacrifica a tudo e a todos para salvar Spock)*?
A primeira posição apresenta-se mais como uma lei geral e é dita pela boca de um personagem alienígena preso à lógica de seu universo. A segunda apresenta-se como a humanização daquela lógica extraterrestre, quando intuímos pela experiência da vida diária que nada é, tão claramente e só, “preto ou branco”, nada pode ser reduzido a um simplismo dualista. “Às vezes” é uma expressão que também faz parte do discurso conservador.
Em outras palavras, não somos apenas a lógica cartesiana, mas nossos sentimentos — tanto os inatos quanto aqueles que a vida ensina a cada um — auxiliam nossa razão a escolher o melhor caminho que, naquele momento, precisamos trilhar. E Spock aprendeu esta lição tão humana.
Depois destes anos todos trabalhando com o outro, aprendi a trazê-lo para perto de mim e desfiz esse mito da antropologia do observador distante e o troquei por uma “antropologia do muito próximo” e passei a tratá-lo como “tu”. O “outro” é uma criação da ciência social cientificista que influenciou a sociologia, a antropologia e a até mesmo a religião. Não é à toa que muitos teólogos do século XX se acostumaram a tratar Deus como “O Outro”, “O totalmente Outro” (Karl Barth). Todavia, o outro ou o Outro são entidades, criações, caricaturas para livros, para teses, mestrados e doutorados de pessoas que são lógicas demais. E a lógica, desculpe-me Descartes, não abarca tudo e, principalmente, não vê aquilo que é essencial (Saint-Exupéry).
Portanto, a vida vai ensinando-nos a tratar o outro por tu e, caminhando juntos um pouco mais, vemos que o tu será um você, um amigo, um irmão, dependendo do nosso esforço e interesse para que isso ocorra de fato. Assim como aprendi também a chamar “o totalmente Outro” de Aba Pai, paizinho — porque essa é que deve ser a caminhada espiritual de cada um de nós.
*Estou tendo em mente os antigos episódios II, III e o Star Trek — Além da escuridão, nos quais encontramos essas frases.
Link para o episódio da “Família dinossauro”: https://www.dailymotion.com/video/x26i2pf
Link para a morte de Spock: https://www.youtube.com/watch?v=hJHcIUbiKfo
Fábio Ribas
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Quem és tu que me lês? És o meu segredo ou sou eu o teu? Clarice Lispector.