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sábado, 25 de maio de 2024

Gente pobre (XX/2024)


Eles se conheciam pessoalmente antes? Ela esteve doente e ele a visitava em seu apartamento. Mas parou, pois a vizinhança começara a fazer perguntas. Ele espera que ela se reestabeleça por completo, para que, então, eles se encontrem fora do apartamento dela. Ele, Makar, envia vários presentes, mimos, a ela. A origem da pobreza de Bárbara, apresentada no diário, foi em função de dívidas contraídas pelo pai dela. Bárbara tem ótimas recordações de sua infância no interior da Rússia. Contudo, durante a leitura do diário que ela envia a Makar, o leitor descobre a grande mudança ocorrida na vida da personagem principal e, até mesmo, quando já estava em São Petesburgo, seu envolvimento afetuoso com Pokroski. Que cena linda descrita naquele parágrafo, quando Pokrovski se dá conta de que Bárbara já não era mais uma menininha, mas sim uma mulher! A vida de Bárbara vai se constituir de inúmeras perdas e dores, assim como a vida de Makar, com quem ela troca correspondências.

Não ficou claro, para mim, se os dois — Bárbara e Makar — se conheciam pessoalmente antes do início dessas cartas. Ou, pelo menos, o quanto os dois se conheciam antes das trocas de cartas. Por causa da doença dela, só bem adiante no livro, eles puderam ter um passeio juntos. Quantos anos teria a Bárbara? O Makar tem uns 47 e a minha impressão é que ela seja uns 20 anos mais nova do que ele! Afinal, o que existia entre os dois? Que tipo de amizade é aquela? Makar sempre dizendo que a amava com afetos paternos e, por sua vez, Bárbara o respeitava como um protetor. O que impediu que houvesse uma relação amorosa entre os dois? A diferença de idade? A pobreza de ambos? Makar era um viúvo…

Às vezes, questões culturais daquele tempo e daquela sociedade, que fogem da minha leitura brasileira e de quase 200 anos depois da sua primeira publicação, fornecessem um quadro não escrito que pudesse explicar algo mais de detalhes que podem estar me escapando. Por isso, talvez, para mim, foi muito difícil imaginar que mundo era este: a pobreza da Rússia do século XIX. Verdadeiramente, um outro mundo. O lugar em que aqueles personagens de Dostoiévski viviam fez-me toda vez pensar no “O cortiço”, de Aluísio Azevedo. Não pelas características da Escola Literária do Naturalismo, mas por uma tentativa minha de imaginar como seria o lugar descrito por Dostoiévski. Todo mundo morando próximo. Eram apartamentos. Todo mundo sabia da vida de todo mundo. Mas o que era, afinal, essa pobreza da Rússia do século XIX? Makar era um funcionário público e, pelo que pude perceber, sua função era o que havia de mais baixo na hierarquia social. Ele era um copista, sem quaisquer perspectivas realistas de ascensão. Para piorar, Makar se envolve com jogos, bebidas, seus vícios. Todavia, uma coisa salta aos olhos, a pobreza do Cortiço revela a miséria de um povo erotizado e animalizado, que é apresentado totalmente descaracterizado de sua humanidade. O Cortiço em que moram possui mais características humanas do que seus próprios habitantes. “Gente pobre”, de Dostoiévski, é um romance epistolar social que revela gente muito mais digna do que os seres humanos de Aluísio Azevedo. Em outras palavras, o pobre do século XIX, na Rússia, era diametralmente oposto ao pobre do século XIX do Brasil retratado em “O Cortiço”. Os pobres de Dostoiévski são respeitadores, cordiais, preocupados com suas reputações e — pasmem! — procuram livros para ler. Eles conversam sobre literatura no livro “Gente pobre”!

Eu não lembrei apenas do “O Cortiço”, mas parece que, intencionalmente, Dostoiévski dialoga com escritores russos contemporâneos a eles, como Gogol e Pushkin, recriando situações e personagens que vemos em textos desses escritores. Escritores que, cada qual a sua maneira, retrataram personagens da população pobre russa. Em determinado momento do livro, vemos Makar se desculpando por sua escrita em suas cartas, dizendo à Bárbara que ele ainda estava tentando achar o seu próprio estilo. Isto me fez lembrar de Orhan Pamuk, que sempre discute muito sobre este tema em seus romances. Isso fez-me pensar também que “Gente pobre” foi o primeiro romance de Dostoiévski. Será que Makar reverbera o própria busca de Dostoiévski por um estilo, um lugar ao sol em meio a grandes obras e escritores russos que já existiam? “Gente pobre” foi publicado quando Dostoiévski tinha apenas 25 anos e a recepção a esse livro foi muito positiva. Dostoiévski se encaixava no que fica conhecido como o Realismo russo.

Enfim, gostei muito. Todos os temas que veremos nos grandes romances do autor já se encontram presentes aqui: os dramas pessoais, a pobreza dos personagens, os vícios, a jogatina, as tragédias etc. Quero ler toda a obra em ordem cronológica lançada em português. Seu segundo livro foi “O duplo”.

            Fábio Ribas

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