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sábado, 21 de outubro de 2023

Descrições e prescrições (VII/2023)


    Este é o segundo livro de Michael R. Emlet que leio. O primeiro foi o "Conversa cruzada". Emlet é médico Doutor, além de ter seu MDiv. Exerceu a medicina por mais de 12 anos antes de se tornar Conselheiro Bíblico e membro do Corpo Docente da Christian Couseling & Educational Foudation (CCEF). Autor de vários artigos e livretos na área de Aconselhamento Bíblico.
    
    Especificamente, este livro trata de um ponto muito importante para o conhecimento dos conselheiros. Ao contrário do "Conversa Cruzada", que é um livro de hermenêutica, tanto da Bíblia como da vida do nosso aconselhado, Emlet agora vai ao ponto da questão sobre os diagnósticos e medicamentos psiquiátricos. O subtítulo diz "uma perspectiva bíblica sobre os diagnósticos e medicamentos psiquiátricos". Assim, o livro é uma proposta para sairmos de quaisquer posturas que sejam extremistas: nem entusiastas cegos e nem isolacionistas alienados. Afinal, o que queremos é ajudar as pessoas a "melhor conhecer e compreender suas lutas. E então, tendo-as compreendido, como providenciar-lhes auxílio de modo sábio e compassivo" (p. 15).
    
    De modo positivo, ele inicia dizendo que "diagnosticar" é algo que revela o nosso Deus Criador. Achei isso sensacional! "Todo mundo "faz" diagnósticos. Todo mundo. Interpretar  -  ou diagnosticar  - as  nossas experiências é inevitável. Parte disso que é ser humano é classificar, organizar e interpretar o mundo ao redor" (p.18). E é uma maneira bíblica e positiva para nos entendermos e compreendermos melhor, porque "diagnosticamos" tanto! Uma outra palavra ligada a isso, e que eu sempre tratei no meu ministério missionário, é "taxonomia". Precisamos chegar aos povos e culturas e "caracterizá-los", "organizá-los", categorizá-los" etc, dando "nome aos bois". Por tudo isso, tenho realmente me fascinado com o mundo do Aconselhamento, pois é a aplicação pessoal ao que estamos tão acostumados a fazer a grupos e coletividades nos campos missionários transculturais.

    A citação que ele faz do Peter Kramer é basilar para tudo o que ele vai discutir em seu livro: "O modo como vemos uma pessoa é uma das funções das categorias que reconhecemos - de nosso sistema particular de diagnóstico" (p. 19). O que eu gostei muito com essa introdução do Emlet é que ele já desmistifica o "diagnóstico" como algo que se dá entre iniciados e que, por isso, só poderia ser realizado por uma elite altamente especializada. Na verdade, queremos conhecer e entender o outro à nossa volta e, por isso, diagnosticamos o tempo todo.

    Ele começa falando sobre o que é, afinal, um diagnóstico. Basicamente, de um lado, você tem o paciente descrevendo o que ele está sentindo e, do outro, um médico com sua formação descritiva. Mas, em meio ao que está sendo descrito como isso ou aquilo, há um espectro de sintomas muito parecidos. Com isso, veja, Emlet nos dá a nós, meros leigos, uma oportunidade de ficar ombro a ombro com os médicos na hora do diagnóstico. No fim das contas, a não ser que se tenha um exame mais técnico, mas, mesmo assim, no fim de tudo, um diagnóstico é resultado de uma interpretação entre o que o médico ouve da subjetividade do paciente e aquilo que o próprio médico carrega como experiência. Ainda que se tenha um exame clínico (exame de sangue, tumografia etc), ainda assim, é um intérprete pegando todas essas informações e dando a sua interpretação. Até mesmo porque o médico não está tratando de ciência exata e também não somos robôs. Cada caso é um caso e há as nossas individualidades e pessoalidades, que não podem ser descartadas. 

    (Quero abrir um parênteses aqui, no momento em que você lê este parágrafo. Por estes dias, acaba de sair que sete em cada dez médicos não sabem aferir pressão arterial. Uma informação como essa serve para nos deixar alertas: médicos não são sacerdotes de uma religião infalível. Na verdade, sequer sabemos da qualidade da formação deles. Fecho os parênteses).

    O resultado não pode ser simplista, pois somos muito mais complexos e as variáveis atuam de uma maneira difícil de abarcarmos a todas elas. Digo isso com toda a tranquilidade, concordando com Emlet, uma vez que tenho acompanhado minha mãe, uma idosa de 90 anos de idade, e já vi um médico cortar pela metade os remédios que outro havia passado a ela. Vi também um terceiro médico ainda ter que voltar atrás de remédios que estavam fazendo mal a ela no tratamento. Enfim, como cada pessoa é uma pessoa, então o que temos, muitas vezes, é um método de tentativa e erro. Em outras palavras, Emlet abre as portas para a desmistificação do diagnóstico e do uso dos remédios.

    Uma vez que Freud foi superado, pois ele dizia que todos éramos doentes, uns mais e outros menos… Mas, o que é ser "são" e o que é ser "doente"? Quem é normal e quem não é normal? Como proceder nessa interpretação? O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) surgirá (1952) para tentar, veja bem, tentar, tornar mais clara a linha que separa a doença da saúde. Mas, em suas já cinco edições (a última de 2013), o DSM se transformou numa lista de sintomas para cada rótulo (nome que a doença recebe). Muitos desses sintomas se repetem em muitos rótulos diferentes:
    
    Embora algumas doenças mentais possam ter seus limites bem definidos em torno de um conjunto de sintomas específicos, a evidência científica atual localiza muitos, quiçá todos, os transtornos em um espectro de transtornos de relação muito próxima e que compartilham sintomas, fatores de risco genéticos e ambientais, e possivelmente substratos neurais (i.e. alicerces neurológicos) […] Resumindo, precisamos reconhecer que os limites entre os transtornos são mais permeáveis do que percebemos originalmente" (esta frase está escrita no DSM-5, p. 6).

    O diagnóstico psiquiátrico é descritivo e, às vezes, não nos damos conta disso. Por exemplo, eu digo que você está irado, porque há uma soma de vários sintomas em você que descrevem a ira. Pronto: diagnóstico, ira! Mas saber nomear, rotular a que se refere o grupo de seus sinais e sintomas não me responde o que realmente importa: por que você está irado? Por que você está ansioso? Por que você está depressivo?

    Entendamos, a descrição dos sintomas levará o médico a receitar tais e tais remédios para a solução daqueles sintomas, que, perceba, são comuns a muitas doenças diferentes. Os remédios podem tratar ou não, podem até mascarar aqueles sintomas, contudo, a causa da doença não é tratada pelo remédio.

    Neste ponto quero contar o que aconteceu comigo. Tive um sério problema no campo missionário. Alguém estava tomando atitudes que não apenas eram totalmente contra o esperado por  missionários num campo extremamente delicado e fechado ao evangelho, mas, principalmente, colocava o nosso trabalho (e de outros missionários em risco). Nossas lideranças nunca resolviam os problemas que estavam surgindo (que, na verdade, deveriam ser resolvidos na esfera das instituições) e, aqui no "andar de baixo", nós missionários sofríamos muito com tudo o que estava ocorrendo. Um dia, todo esse stress, essa agonia e angústia cobrou seu preço. Eu estava fazendo esteira numa academia e meu peito doeu horrores como se uma faca estivesse me rasgando de dentro para fora. Foi horrível! Mãos e pés suando, minha vista escurecendo etc. Tive que sair do campo (era no interior do MT) e vir às pressas me tratar em Brasília. Um milhão de exames, consultas, médicos, até que, finalmente, uma médica ouvindo e acompanhando tudo o que eu narrara disse: "Fábio, está aqui a caixa de seus remédios. Certamente, você irá tomá-los e isso irá fazer muito bem para você. Contudo, esse remédio tem um efeito colateral possível. Ele irá diminuir a sua libido, afetando sua vida sexual com sua esposa. Assim, há uma outra alternativa, caso você não queira tomar esse remédio. Você pode voltar para o seu campo missionário, resolver a causa dos seus problemas e buscar, então, trabalhar de um outro jeito, cuidando-se melhor". Enquanto conto isso, claro que estou rindo, pois não era só a minha vida sexual que estava em jogo, mas a da minha esposa também! Assim, retornei ao campo, mudei o meu ministério, fui para uma outra área na qual as ações daqueles missionários não me atingiam e, enfim, enfrentei a causa. Chamei o casal de missionários e disse tudo o que estava acontecendo comigo (e com outros), por causa daquela atitude deles. Porém, pelo bem da minha saúde mental (e sexual rsrsrs), e também porque eu queria continuar a ser uma bênção no campo, disse a eles que eu estava saindo daquele ministério e indo para um outro que não me afetaria daquele jeito. Com essa minha atitude, tudo se resolveu e eu guardo a caixinha de remédios, que a médica tinha me dado, até hoje comigo, fechada (rsrs). Os sintomas ajudam na identificação, mas só isso não resolve. Concordo, inteiramente, com Emlet.

    Outro problema tratado pelo autor é que há o risco do normal ser transformado em anormal por meio do exagero. Isso me levou o tempo todo a pensar no "O alienista", conto do Machado de Assis. Quem é que decide o que é normal e anormal? Qual a referência? "Dor e sofrimento" são critérios? Perigoso, principalmente por termos aqui o choque entre duas visões antagônicas: de um lado, uma indústria farmacêutica que promete felicidade em drágeas e, do outro, a cosmovisão cristã, que sabe que dor e sofrimento são parte da vida humana e que podem ser usadas por Deus na santificação do seu povo.
    
    A busca pela felicidade e o fim da tristeza e dor devem ser os únicos ou principais critérios que regem os diagnósticos? Quem está triste ou sentindo alguma dor não está bem, não está "normal"? Como disse, tudo isso é muito perigoso, porque é algo que pode ser fortemente subjetivo, tanto da parte do paciente como da parte do médico. A questão da dor e da tristeza também são culturais  -  e é importantíssimo levar todas essas variáveis em consideração na hora de um diagnóstico final.
    
    Outro problema: diagnósticos psiquiátricos que redefinem (e com isso mascaram ou minimizam a responsabilidade do paciente), rotulando o que as Escrituras chamam de pecado. Hoje, todos somos vítimas, estamos todos doentes: não há mais gula, responsabilidade pessoal, descontrole emocional etc. "Tudo é culpa do cérebro"! Tudo é culpa dos meus pais, da cultura, do outro! Estamos em tempos de extremos, fujamos de todas essas pressões. É este o alerta do autor: nem mascarar pecados como meras doenças mentais e nem tratar doenças mentais reduzindo-as como pecado.
    
    Particularmente, como missionário em povos diferentes de nós, o tema da influência da cultura nos diagnósticos culturais é muitíssimo interessante e importante para mim. Gostaria mesmo de aprofundar isso com mais estudo da minha parte.

    Enfim, você realmente quer ajudar o outro? Então, algumas questões precisam ficar claras a partir da leitura desse livro: 1) o diagnóstico psiquiátrico não pode impedir você de se aproximar e ajudar o outro; 2) o diagnóstico não é a identidade do paciente; 3) o diagnóstico não é destino; 4) o diagnóstico pode ser usado como ponto de partida, mas jamais será o ponto final.

    Além do autor nos mostrar como ajudar os pacientes que chegam com um diagnóstico, de modo que esses diagnósticos não sejam um obstáculo à nossa ajuda, ele mostra também como levar em conta o diagnóstico: 1) os diagnósticos nos ajudam a identificar padrões de experiências; 2) os diagnósticos nos ajudam a lembrar que essa experiência do nosso paciente é diferente da nossa; 3) eles nos alertam para padrões particulares de severidade e perigo; 4) os diagnósticos nos apontam para o corpo do paciente, que possui história hereditária e, além disso, o corpo também carrega forte influência cultural. Aqui, o autor encerra a primeira parte do livro e, na segunda, irá tratar sobre os medicamentos.

    Na segunda parte, o autor discute sobre o que, afinal, realmente sabemos em relação à eficácia dos medicamentos psicoativos. Ele mostra os resultados desses medicamentos comparados com placebos, demonstrando que a propaganda é mais eficiente do que o produto, de fato, oferece. O autor trata de como equilibrar um tratamento com remédios e aconselhamento, lembrando que nem todo sofrimento deverá ser tratado com medicação. A medicação pode estar mascarando ansiedades e problemas que podem (e devem) ser enfrentados biblicamente. Cabe, então, a sondagem das razões que levam alguém àqueles remédios específicos. Um conselheiro sábio deve dosar e ter sabedoria de "andar na corda bamba". Não podemos dizer: "pare de tomar esses remédios"! Todavia, podemos (e devemos) auxiliar o paciente numa sondagem crítica em relação ao uso desordenado de remédios. Precisamos nos comprometer em pesquisar a bula dos remédios; ver se os tantos remédios usados pelo paciente não estão afetando uns aos outros; observar se o aconselhado não está desenvolvendo alguns dos efeitos colaterais narrados nas bulas etc. Enfim, é nossa responsabilidade ajudar o nosso aconselhado.
    
    Foi o último parágrafo que mais me chamou a atenção. Estamos muito acostumados na nossa cultura com a farta literatura que encontramos tratando dos nossos próprios problemas. Literatura de autoajuda e de como sobrevivermos ao caos de nós mesmos. Contudo, este livro foi escrito para me ajudar a ajudar o outro da melhor maneira possível. Não é um livro sobre como resolver os meus problemas, mas como me preparar para ajudar o outro. Assim, como conselheiro, espero ter todos esses cuidados com meus aconselhados.

    Fui desafiado, nesta disciplina, a ajudar lideranças nativas no campo. Se a coisa já é difícil para nós, imagine as pressões que outras pessoas convertidas, mas de outras culturas, não sofrem nesses embates? Na aldeia, por exemplo, com a chegada do "agente de saúde" e do enfermeiro, da farmácia e dos remédios, lembro que os indígenas faziam uma bifurcação, que era o jeito que a cultura achou de "se resolver": o pajé vinha e fazia a pajelança  -  a cura espiritual. Mas, caso acontecesse das curas não funcionarem, então, o próprio pajé dava o diagnóstico: "é doença do branco"! A cultura sempre dará um jeito de sobreviver. São retificações na cosmovisão para se adequar à mudança dos ventos. O pajé dá conta da "doença do índio", entretanto, para eles, a chegada dos "brancos" com seus remédios é porque eles chegaram e trouxeram suas próprias doenças e, por isso, doença de branco, que o índio pega, precisa ser tratada com remédio de branco.

    Esses remédios ficam nas aldeias, sob a supervisão de um "farmacêutico indígena"… Comparando a formação recebida dos professores indígenas  -  que só são preparados no conhecimento da própria cultura, para ofereceram aos seus alunos mais do mesmo  -  fico, então, pensando que a gente também não pode esperar coisa muito diferente na formação desses farmacêuticos nativos. Portanto, sigamos que há muito trabalho a ser feito!

Fábio Ribas

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