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sábado, 20 de janeiro de 2024

A arte não precisa de justificativa (III/2024)

    


    Afinal, o que é arte? Neste livro, não encontraremos o que seja “arte” para Rookmaker. Talvez isso já nos mostre a dificuldade que traria qualquer delimitação ao termo. Entretanto, uma coisa é certa para o autor: “precisamos muito de uma arte que seja saudável e boa, e que as pessoas entendam” (p.10). Este pequenino livro de apenas 76 páginas, apresenta-se como uma chamada à responsabilidade para artistas cristãos. “É uma leitura para todos os cristãos que desejam usar os talentos que receberam de Deus para a glória daquele que os presenteou”, dizem os editores no prefácio. “É uma chamada profética aos artistas, artesãos e músicos cristãos para que pranteiem, orem, pensem e trabalhem antes que seja tarde demais”, arrematam. Da minha parte, eu pergunto: será que já não estaríamos no “tarde demais”?

    Não nego que, quando entrei em contato com este livro pela primeira vez, em 2020, num curso de “Artes para a glória de Deus”, houve um incidente que logo me afastou de continuar a seguir a leitura. Num dos capítulos do livro, que fora traduzido pelo professor do curso, inexistia um parágrafo inteiro no original, mas que havia sido inserido na nossa versão em português. Eu tinha a tradução em português da edição oferecida pela Editora Ultimato, assim pude chamar a atenção da turma de alunos que, na minha tradução em português da Ed. Ultimato, havia um parágrafo que não existia no original que ele estava lendo. Para todos, professor e alunos, aquilo era uma surpresa, principalmente pelo parágrafo a mais da versão em português endossar uma interpretação ideológica que não havia no livro. Com essa má introdução a Rookmaaker, só ano passado retornei aos seus livros (2023).

    Embora não defina o termo “arte”, Rookmaaker lembra que,

“em muitas culturas, incluindo a nossa, antes do novo período que começou entre 1500 e 1800, os artistas eram principalmente artesãos. Fazer arte significava fazer as coisas de acordo com certas regras — as regras da classe dos artesãos” (p.11).

    Rookmaaker também afirma que nossa relação com a arte mudou. Antigamente, a arte era parte de um serviço, estava subordinada a algo. Hoje, porém, vemos o produto artístico como “obra de arte”, algo em si mesmo, destacado de qualquer contexto ao qual a obra devesse estar servindo. Portanto, não havia discussões sobre as obras de arte, debates ou interpretações. Se havia crítica, não era em função da beleza ou da habilidade do artista, mas era sobre sua impropriedade ou falta de adequação ao contexto em que ela se manifestara. Para exemplificar isso, o autor lembra das críticas de São Bernardo de Claraval, no século 12, que “fez objeção às estranhas criaturas, monstros e animais fantásticos encontrados nos capitéis dos claustros” (p.13). O que se observava, naquele tempo, era a habilidade, qualidade e adequação como diretrizes do artista (p.13).

    O quadro acima começou a mudar, segundo Rookmaaker, no Renascimento. Todavia, foi no Iluminismo do Século XVIII — a “Idade da Razão” — que surgiu o conceito de “obra de arte” como o entendemos hoje.

    Abrirei parênteses aqui só para dizer que nós, protestantes, temos forte responsabilidade nessa mudança de paradigma, embora Rookmaaker não veja isso. Pense comigo: quem bancava os artistas até a Reforma Protestante? Os mecenas. E entre esses se encontravam muitos religiosos católicos — até mesmo Papas. Veja a inversão — estamos falando de clientes que contratavam os artistas e solicitavam seus trabalhos. Veio a Reforma Protestante e suas igrejas se espalharam pela Europa só que com um detalhe que, talvez, não tenha sido pensado pelos Estados Nacionais que assumiram a nova Fé. Qual detalhe? Ao contrário do Romanismo, as igrejas provenientes da Reforma não possuíam imagens de santos e santas dentro delas. A igreja protestante não mais contratava os artistas — ou, pelo menos, diminuiu muito essa relação. Agora, sem ter quem me contratar, eu deveria produzir a obra de arte e “sair vendendo no mercado”. Você já pensou no impacto disso? Que mudança de paradigma! Mas a coisa não para por aí. Pensa comigo: agora, quem é que tem dinheiro? Os burgueses. No caso, os burgueses protestantes. Eles começaram a pagar para ter seus próprios retratos… Eu acho que isso é mais uma mudança radical! Surge o Artista e sua obra de arte! Para uma avaliação de tudo isso que estou falando neste parágrafo, acredito que vale a pena estudar Rembrandt e a Holanda do seu tempo. Mas isso é só hipótese. Fecho o parênteses.

“A arte tornou-se “belas artes” e as artes manuais foram postas de lado, como algo inferior. O artista tornou-se um gênio, alguém com dons especiais, que poderiam ser usados para dar à humanidade algo de uma importância quase religiosa — a obra de arte. De certa forma, a arte tomou lugar da religião” (p.14).

    Rookmaaker escreverá um parágrafo que me remete ao papel da cultura e da cosmovisão, contudo aplicado à arte (o que me fez lembrar das minhas aulas de Comunicação Transcultural). Diz ele que, a partir de Kant, Schelling e Hegel, “a arte passou a ser vista como a solução final para as contradições internas dos sistemas filosóficos elaborados para formar um entendimento integrado da realidade” (p. 14). “A humanidade é livre e, ainda assim, presa a um universo mecanicista; a arte pode revelar a unidade interna e contornar as tensões racionais”, entenderam os filósofos da Razão (p.14–15). Isto faz todo o sentido, uma vez que, na Modernidade, os aspectos afetivos foram lançados para a vida privada e ao subjetivismo. Entendeu-se que dentro do escopo da afetividade estava a religião. Contudo, saindo a religião, o que pode atender ao homem no espaço público: a arte. Realmente, no areópago moderno, a arte substitui a religião. A fé fica para o privado e o subjetivo. A arte é trazida para a praça pública, porque, acredito eu, a arte moderna será cada vez mais uma “obra aberta”, não se entregando como uma única proposta ou interpretação. Há uma abertura para a recepção do público tornando esse mais um interlocutor do que um destinatário passivo. A arte é um meio para que o público possa transcender como queira. Quais as consequências disso? A arte se torna uma religião irreligiosa, diz Rookmaaker.

    Os artistas ou são vistos como sacerdotes da cultura ou como pessoas supérfluas. Acredito nessa interpretação do Rookmaaker. Mas como eram vistos os artistas antigamente? O que significa ser artista? Arte, cultura, cosmovisão são termos que precisam ser definidos. O artista era um artesão que seguia as regras de sua escola? Na página 16, o autor toca num tema interessantíssimo para mim: o homem retira a providência divina de sua equação-para-compreender-o-mundo! A crise nas artes é a crise do próprio homem que retirou Deus de sua equação. A arte, por se tornar uma busca religiosa de um homem irreligioso, não encontrou nada no fosso depravado do coração do artista (nem do seu interlocutor). Tudo isso trouxe uma crise para as artes.

“A arte tornou-se uma busca individualista de sua própria identidade, revelada em seu trabalho e por meio dele. São como alguém que se olha no espelho — tudo é uma expressão do eu; o resto, torna-se irreal. A arte deve ser uma expressão do que há de mais profundo em nós. Mas e se encontrarmos pouco?” (p. 17)

    Rookmaaker faz coro com os que criticam o pietismo, que se preocupou demais com uma vida pessoal de devocionais, enquanto não vivia essa vida diariamente no mundo. A ideia é que o secularismo e o paganismo foram tomando conta da sociedade e os cristãos deixaram. Os cristãos não assumiram uma postura na política, nas ciências, na filosofia, nas artes. Acredito que o cristianismo é um chamado muito maior do que “uma entrada para o Céu”. O cristianismo é um chamado para viver aqui e agora para a glória de Deus em todas as esferas em que estamos inseridos na sociedade. Por outro lado, esse otimismo pós-milenista que sinto no livro me incomoda. Nem 8, nem 80, por favor!

    Mas a pergunta fica: o que o cristianismo tem a ver com a cultura? E qual a resposta da Igreja a essa pergunta? Segundo Rookmaaker, o Pietismo foi lançando cada vez mais a beleza para fora do Cristianismo. Preocupado apenas com as devocionais pessoais, o Pietismo não teria expressado para fora da Igreja a beleza do Evangelho. E mesmo dentro da Igreja não temos nos importado com a Beleza, insiste Rookmaaker. A clareza, a lógica e a ordem de um sermão não deveria expressar beleza? A música que será tocada no Culto, em muitas igrejas, parece ser “qualquer coisa vale”. E se ela contradisser o sermão? E o que falar da beleza na arquitetura das nossas igrejas? Por que confundiríamos simplicidade com simplismo? Com essas perguntas, Rookmaaker nos lembra que, até hoje, as catedrais são visitadas mostrando que o Cristianismo, um dia, fez questão de deixar sinais de que algo maravilhosamente belo aconteceu em Israel.

“Portanto, ser cristão significa que temos humanidade — a liberdade de trabalhar na criação de Deus e usar os talentos que Ele deu a cada um de nós para sua glória e para o benefício do próximo. Assim, se tivermos talentos artísticos, eles devem ser usados” (p. 27).

    Todavia, Rookmaaker tem uma visão pós-milenista e, por isso, uma expectativa ingênua de “reforma” da sociedade que certamente teria que começar pelo cristianismo. Ainda que ele diga que não acredita na solução marxista e nem na solução tecnológica, para mim, a expectativa que a sociedade seja reformada e com isso a cultura seja resgatada está mais para uma perspectiva de Cristandade do que de Cristianismo. Rookmaaker viveria num ideal de “era de ouro”? Às vezes, ele me soa como um católico conservador monarquista sonhando com o retorno ao século XVII. Como a minha pretensão não é pós-milenista, meu voo aéreo é mais baixo. De qualquer modo, vejo com bons olhos o método de Rookmaaker de retorno à Palavra, especialmente à palavra profética de Miqueias: “prantear, orar, pensar e trabalhar” (p.30).

⁷ Eu, porém, olharei para o Senhor e esperarei no Deus da minha salvação; o meu Deus me ouvirá.

⁸ Ó inimiga minha, não te alegres a meu respeito; ainda que eu tenha caído, levantar-me-ei; se morar nas trevas, o Senhor será a minha luz.

⁹ Sofrerei a ira do Senhor, porque pequei contra ele, até que julgue a minha causa e execute o meu direito; ele me tirará para a luz, e eu verei a sua justiça.

¹⁰ A minha inimiga verá isso, e a ela cobrirá a vergonha, a ela que me diz: Onde está o Senhor, teu Deus? Os meus olhos a contemplarão; agora, será pisada aos pés como a lama das ruas.

¹¹ No dia da reedificação dos teus muros, nesse dia, serão os teus limites removidos para mais longe.

                                                        Miquéias 7:7–11


    “Prantear” pela nossa atual situação. “Orar” para que Deus mude nossa disposição. “Refletir” sobre o que é o cristianismo e o que queremos. E, só então, seguros de nossas renovadas bases teológicas, “trabalharmos” para o resgate.

    Ser um artista cristão não significa realizar um trabalho e acrescentar o nome “jesus” a ele. Não podemos usar a arte para justificar o cristianismo. É o contrário, nosso cristianismo transborda em nossa arte, porque extravasa de nós o fruto do ES. O artista cristão não é aquele que usa da arte para evangelizar. O propósito da vida não é o evangelismo, mas vivermos para a glória de Deus.

“Como diz CS Lewis de maneira tão bela, já temos livretos e panfletos cristãos suficientes; porém, se quisermos a recristianização da Europa e dos Estados Unidos, isso não acontecerá se as pessoas não conseguirem encontrar um bom livro em certa área do conhecimento e descobrir que ele foi escrito por cristãos” (p. 35).

    Só numa segunda leitura, eu pude compreender a tese de Rookmaaker de que a “arte se tornou Arte no século 18” (p.45), pois tive certa resistência a essa ideia num primeiro momento. E essa tese foi relembrada no último e melhor capítulo do livro. Este último capítulo foi o mais importante. Ajudou-me a esclarecer alguns pontos para seguir adiante nos meus estudos. Vi frases que confirmam o que ensino no meu curso de comunicação e no meu artigo “comendo junto com pecadores”. O capítulo “Arte e sociedade” atende demais a tudo o que eu estava procurando. “Normas e artes” também. Achei minha justificativa (p. 59). Gostei das abordagens sobre decoro, estilo de vida, entendimento, emoção e gosto. Ele também deu dois critérios ótimos para avaliarmos a boa arte: a força descritiva e a carga de significado (então, não precisaríamos estar submetidos ao escopo da “beleza”? Algo a se responder). Quero aprofundar nessa questão do estilo (ver minhas leituras de Pamuk). E, por fim, atentar às qualidades do artista. Livro pequeno, mas fundamental.

            Fábio Ribas

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