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sábado, 27 de janeiro de 2024

Conhecimento unívoco e conhecimento analógico (IV/2024)

 

    Ótimo livro de Daniel Gomide esclarecendo a controvérsia ocorrida no século passado entre dois gigantes da Teologia: Gordon Clark e Cornelius Van Til. Controvérsia que expõe duas linhas inconciliáveis de epistemologia da Tradição Reformada. O que Gomide irá mostrar é que a posição de Cornelius Van Til é menos coerente com a Reforma Protestante que a posição de Clark. Na verdade, Van Til termina por dar continuidade à linha aberta por Tomás de Aquino, enquanto Clark não dá margem para qualquer concessão a qualquer espécie que seja de autonomia da razão. Para compreender melhor, é preciso esclarecer a discussão que logo aparece no título do livro.

    Há 3 tipos de conhecimento: unívoco, equivoco e analógico. O conhecimento unívoco é aquele que estabelece que o termo apresenta um único significado; o equívoco é aquele em que o termo tem significados diferentes; e, finalmente, o analógico será o conhecimento derivativo por comparação. Neste último é que se origina o famoso postulado de Van Til que diz que pensamos os pensamentos após Deus. Aqui, cabe esclarecer, Clark também concorda com Van Til que só é possível um conhecimento que Deus o já tenha conhecido. Então, qual é a controvérsia? Para Clark, o conhecimento analógico só é possível se ele tem por base o conhecimento unívoco. Por isso, precisamos compreender e dominar esses conceitos. Pois, toda a controvérsia surgiu de uma interpretação errada de Van Til sobre o que seria "unívoco" para Clark. Van Til (e vantilianos) achavam que Clark defendia uma razão humana autônoma de Deus e, sendo assim, vantilianos acreditam que o conhecimento analógico e unívoco são inconciliáveis.

    Darei mais exemplos:

    1) Conhecimento unívoco: "Jesus ressuscitou". Não pode haver margem para quaisquer outras interpretações aqui. "Ressurreição" é volta dos mortos na frase acima. Assim, para Clark, o termo usado não pode ser ambíguo, pois custará um problema na nossa comunicação. E mais: o conhecimento unívoco nos permite conhecer o conhecimento do próprio Deus. Para Clark, a regeneração é habilitar a mente a compreender a lógica divina, pois agora temos a mente de Cristo (daí, a Bíblia afirmar que o nosso culto é racional - Deus é lógica!).

    2) Conhecimento equívoco: "Jesus ressuscitou". Se o termo ressuscitar pode se referir a mais de um significado (polissemias e metáforas), então o que Deus quer dizer com essa frase "Jesus ressuscitou" é uma incógnita, pois eu posso entender que ele aparentemente retornou dos mortos ou que os discípulos tiveram uma experiência de loucura coletiva (ou que, culturalmente, Jesus estaria dormindo). Se os termos possuem vários significados que eu possa atribuir, nunca saberíamos com exatidão o que Deus quer nos comunicar.

    3) Conhecimento analógico: "Jesus ressuscitou" é como a borboleta que morre lagarta e ressurge borboleta. Será? A analogia, se é feita em base equívoca, pode trazer muita confusão e nenhum conhecimento sobre a que se refere os pensamentos de Deus!

    Por tudo o que foi explicado acima, vemos a importância dessa discussão para a apologética e a epistemologia. Exatamente por Tomás de Aquino advogar o conhecimento analógico, é que ele defendeu que a razão e a fé caminhavam juntas até que a razão se colocasse contra a fé. Neste ponto de confronto, a fé iria seguir seu próprio caminho. Ora, isso nada mais e nada menos significa que, por seu lado, a razão chegaria às suas próprias conclusões. Olha a autonomia da razão de Aquino na tangente aí. E, sendo assim, não podemos afirmar ou confirmar que a fé está conhecendo os pensamentos de Deus, porque tivemos que largar a razão no seu próprio outro caminho. Mais à frente, uma alternativa a esse conhecimento analógico tomista, que separa razão e fé, será postulado por Kierkegaard. Este filósofo vê que o cristianismo é uma religião de paradoxos mesmo, incompreensíveis pela razão. Assim, só é possível saltarmos na fé os abismos incompreendidos pela nossa razão. Clark refuta o conhecimento analógico de Aquino e de Van Till e, obviamente, a fé desesperada de Kierkegaard.

                        Fábio Ribas

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