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domingo, 17 de março de 2024

A pedagogia da mentira

 

Você já parou para pensar que, para a maioria das pessoas, uma folha de papel cheia de palavras é igual a um painel de controle de avião? E que o mesmo ocorre diante de uma folha da Bíblia? E eu não estou falando sobre pessoas que não sabem ler.

Infelizmente, uma folha aberta de uma Bíblia, para muitos jovens e adultos de Ensino Médio e Universitários, continua a ser um painel de controle de avião. As palavras estão todas ali, mas e daí? Wittgenstein é quem faz essa comparação entre uma folha cheia de palavras e o painel de controle do avião. Ele faz isso para nos chamar a atenção sobre o problema da comunicação humana.

Assim, não é de admirar que as pessoas prefiram o caminho mais curto, a porta mais larga do argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit, que é a falácia de se apelar a uma autoridade humana. Isso tem levado muitos a se deixarem nas mãos de falsos pastores e igrejas manipuladoras e, quando perguntados sobre a razão deles se deixarem levar pelo abuso espiritual, a resposta é sempre a mesma: “o pastor disse”, “a profetisa falou”, o “ungido determinou”, etc. O apelo é sempre às pessoas que possuem uma pretensa “autoridade espiritual”. A partir disso, vemos uma multidão seguindo profetas, apóstolos e igrejas de “poder”, enquanto a ignorância bíblica e a inabilidade de aplicar suas verdades à prática diária se aprofundam cada vez mais.

Enquanto escrevo este texto, farei uma digressão, pois não posso deixar de pensar na minha filha mais velha, que vem estudando tenazmente para o vestibular, Enem e outras coisinhas semelhantes. O que tem me surpreendido é a orientação da escola dela, que adotou o método Anglo de Ensino, quanto à produção das redações: é preciso citações! Ainda que você não tenha lido o livro de Fulano e de Ciclano (e a maioria dos colegas de sala de aula da minha filha realmente nunca leu um livro sequer desses tais autores), é preciso, segundo a orientação dos “grandes mestres da redação”, que sua redação apele à autoridade desses filósofos, sociólogos, personagens históricos e tantos outros. Eu vejo os colegas da minha filha buscando na internet aqueles sites de páginas de citações, para rechear seus textos de frases de pessoas que eles sequer um dia tinham ouvido falar, mas que seus professores citam. O que me faz pensar que esses professores podem também estar apenas citando o que, um dia, citaram para eles num ciclo tenebroso de papagaismo educacional!

Há algo muito grave no que eu escrevi no parágrafo anterior. A escola é o lugar em que nossos filhos mais passam o tempo deles. Eles passam mais tempo na escola e nas universidades do que em casa ou nas igrejas. Assim, o poder de influência desses professores é enorme e os pais não podiam jamais ser negligentes, como muitos são. É uma pedagogia da mentira que a Escola ensine aos nossos filhos citarem autores que ela mesma nunca trabalhou em sala de aula e que eles nunca leram e nem lerão! Vou repetir: é uma pedagogia da mentira! Estão formando nossos filhos para mentirem, para que eles digam que conhecem o que esses autores estão dizendo, quando, na verdade, não sabem bulhufas! Estão citando frases soltas fora dos contextos dos livros de onde elas foram retiradas.

Quando eu leio frases como “Wittgenstein disse” ou “Aristóteles afirmava em sua obra “A Poética””, “Segundo Max Weber”, penso que, ao serem citadas, elas respeitam o corpus do pensamento dos seus autores originais. A questão é como confiar em meninos e meninas de 16 e 17 anos, que nunca leram um livro de Emile Durkheim, por exemplo, e saem citando com pomposa arrogância de quem domina aquelas obras? A pedagogia da mentira corrompe o caráter, danifica a moral e destrói a ética. Não é de se surpreender que estejamos tão perdidos em distinguir o que é certo e errado, o que é o bem e o mal, o que é verdade e o que é mentira. São anos e anos de uma escola ensinando nossos filhos a mentirem, a usarem o discurso, a retórica, a construção de uma estética falaciosa e a plagiarem a ideia dos outros que, evidentemente, isso devora a alma. E isso tudo para quê? Para que nossos filhos, a partir de mentiras bem construídas, possam conquistar uma vaga numa faculdade. O que as escolas estão ensinado? Que os fins justificam os meios. Que, se não ferir ninguém, que mal é que tem? Depois de anos e anos aprendendo a mentir para conquistar seus objetivos, que tipo de cidadão nós teremos? São pastores que apelam ao “dom de línguas” e ao grito, são profetizas que apelam ao “assim me disse deus”, são crentes pinçando frases bíblicas fora de seus contextos para apoiarem suas heresias e abusos espirituais contra as pessoas e muitos outros crimes de corrupção que vemos no nosso dia a dia. Temos visto profissionais adulterando o currículo vitae e lattes para dar um up na maquiagem, querendo ganhar capital político e econômico a partir de um capital cultural que nunca possuíram (Pierre Bourdieu). Esses profissionais foram construídos durante anos por uma escola doutrinadora! Sinceramente, você ainda não percebeu isso? Pronto, terminei minha digressão.

Como o próprio Apóstolo Pedro adverte, a Bíblia tem sim textos difíceis de entender (II Pe 3). Só essa advertência já deveria ser suficiente para animar todos os cristãos a frequentarem as Escolas Bíblicas Dominicais de suas Igrejas, mas, tristemente, não é isso o que ocorre. É preciso estudar a Palavra de Deus para que, como nos adverte o Espírito Santo por meio do Apóstolo Pedro, não caiamos nas armadilhas das pessoas ignorantes e instáveis que não querem aprender da Palavra de Deus!

Estude a sua Bíblia! Procure um grupo de pessoas comprometidas com o ensino sério da Palavra de Deus, para que você não caia nas mãos dos lobos que planejam dominar a sua vida. O mercenário não quer que você aprenda. Ele quer apenas que você obedeça cegamente, pois ele quer roubar, matar e destruir você e, para isso, ele precisa que você não conheça a Bíblia, nem estude a Palavra de Deus e, muito menos, viva sob o poder do Espírito Santo.

Assim como o piloto precisa aprender a ler um painel de controle de avião, a Bíblia também possui regras de interpretação para que seja lida corretamente. Do contrário, no caso do avião, ele sequer levantaria do chão. No caso da sua vida espiritual, também!

                                            Fábio Ribas

sábado, 2 de março de 2024

Verdades encobertas, pecados revelados (X/2024)


Quando a Elizabeth Rodrigues convidou-me para escrever um artigo, nem precisei pensar duas vezes. A caminhada missionária havia trazido bastante material nessa área e eu já me preocupava e, até mesmo, tratava de alguns casos de pessoas que haviam sido abusadas. Todavia, o que era diferente no meu caso é que eu precisei tratar disso em realidades transculturais. E é sobre isso que trata o meu artigo (segue abaixo). O diferencial do ebook de Elizabeth é a diversidade dos colaboradores. Ela convidou pessoas muito diferentes, com perspectivas diferentes, mas todas tratando o tema do abuso. Assim, temos a presença do Dr. Guido Palomba, profissionais que tratam diretamente com a realidade do abuso, psicólogos, assistentes sociais, líderes religiosos e testemunhos pessoais. Enfim, um livro que precisa ser lido por todo aquele que quer dar voz a tantas vítimas silenciadas pelo sistema e por interesses escusos. Adquira já o seu ebook clicando aqui.

Prevenção e resposta ao abuso infantil no contexto missionário transcultural

Já amávamos aquele casal e sua pequenina filha, quando, naquela tarde, eles vieram à nossa casa para conversar. Convidamos a que eles se sentassem no sofá da sala da casa missionária. Não sabíamos sobre o que se tratava a visita deles, até que, inesperadamente, diante da família, ela começou a chorar. O marido resolve assumir a condução da conversa do ponto em que sua esposa parara. Contudo, assim como ela, o domínio limitado da língua portuguesa era um imenso obstáculo para falar de coisas tão profundas. Enquanto ele falava, vez ou outra, ela o completava e esclarecia melhor o que eles tentavam nos dizer. Após quase uma hora de idas e vindas, tentativas e muitas lágrimas, conseguimos compreender o ponto central do que eles queriam compartilhar: o pai havia abusado dela.

Precisei dizer com minhas próprias palavras, para ter certeza do que iríamos conversar dali em diante: “o seu pai tentou fazer sexo com você?”. Era muito difícil para ela, mas, enxugando as lágrimas do rosto, ela nos disse que, há anos e por várias vezes, ele havia abusado dela. Quando ela disse isso, o marido dela começa a chorar bem na nossa frente. Na minha cabeça, passava um milhão de coisas, mas, principalmente, pensava em minhas duas filhas. Eu sou pai de duas meninas e, agora, uma menina estava diante de mim contando que seu pai abusara dela. Ela disse que, ainda criança, quando seu pai estudava para ser obreiro da Missão, ele a pegara no banheiro da casa da família (naquela cultura, o banheiro precisa ficar do lado de fora da casa). Na época, as pessoas ficaram sabendo, mas, mesmo assim, não fizeram nada. Seu pai se formou, voltou à aldeia, batia em sua mãe, vendia bebida ao povo, andava armado e provocando outros, mas ninguém fazia nada. Finalmente, casando, ela pode sair de casa. Entretanto, ela estava assustada, pois havia sua irmã e ela tinha medo que seu pai fizesse o mesmo com sua irmã lá na aldeia e não houvesse ninguém mais para protegê-la.

Perguntei sobre o que a mãe sabia sobre tudo aquilo e ela me disse que já tentara dizer várias vezes para sua mãe, mas essa parecia não entender, não aceitar, não ouvir. Então, ao nos contar isso, ela pediu ajuda para minha esposa, pois, se ela chamasse a mãe e conversassem juntas, as três, seria mais fácil. Houve essa conversa entre as três em outro dia mais adiante. Quando, porém, o pai dela também foi chamado para conversar, a mãe ficou contra a filha por algum tempo. Depois cedeu, quando o marido bateu nela mais uma vez. Demoraram muito a afastar esse pai de suas funções e retardaram para levar a mãe à delegacia, para que pudesse haver a denúncia. Demoraram tempo suficiente para que a mãe, finalmente, desistisse de prestar a queixa. O marido fugiu da aldeia, mas depois reapareceu, indo na casa deles na Missão, ali bem perto da minha casa. Foi nessa vinda inesperada do pai que ela nos enviou uma mensagem de whatsapp: “Meu pai está andando por aqui… E ele está armado”.

Aprendi muito vivendo experiências assim. Aprendi sobre legislação, o que podemos e o que não devemos fazer, aprendi também outras coisas muito difíceis sobre as inúmeras instâncias de poder que impedem que o mal seja punido e o bem protegido. Todavia, a pergunta que importa para o início deste artigo é: você realmente se importa?

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A verdadeira tragédia é que ela rouba a criança do seu potencial, colocando em movimento uma cadeia de eventos e decisões que as afetam por toda a vida.

Darkness to Light: Sexual Abuse Statistics

Inicio este artigo expressando o que quero alcançar com ele. Na verdade, estou indo ao encontro dos mesmos desejos expressos por Deepack Reju, na seção de “agradecimentos” do seu inestimável livro “Sempre alerta”, da editora Peregrino. Porém, aqueles desejos que Reju expõe devem ser contextualizados para o ambiente específico que quero discutir aqui, o ambiente missionário transcultural. Assim, meu primeiro desejo é que, como resultado deste artigo, crianças que vivem em contextos culturais e linguísticos diferentes do meu possam ser protegidas dos horrores do abuso infantil, aonde quer que haja um missionário plantando uma Igreja.

Meu segundo desejo é o de preencher uma lacuna. Há muito pouco material de qualidade e verdadeiramente preocupado com a proteção da criança e do adolescente, quando olhamos a realidade transcultural. Para melhor introduzir esse tema, vamos dar um passo atrás. Compreenda que sequer há um levantamento rigoroso de casos de abuso dentro das igrejas e das famílias evangélicas no Brasil. Estou falando do contexto de igrejas urbanas e rurais, igrejas em grandes centros urbanos e em pequeninas cidades do interior, enfim, não há dados estatísticos ou pesquisas realizadas que nos deem um quadro seguro do que ocorre dentro das igrejas evangélicas brasileiras. Agora, sabendo disso, imagine a realidade transcultural? Alguns autores que li mostraram que, durante muitos anos, os evangélicos acreditaram que o abuso infantil na igreja era um “problema católico”, julgando até mesmo que o número dos escândalos se devia à exigência do celibato, que acobertaria e incentivaria os crimes que, então, ocorrem por trás da fumaça do incensário clerical romano. Isso não apenas é uma visão falsa, mas serve para ocultar a triste realidade que pode ser encontrada (e é) também nas igrejas evangélicas. Essa visão equivocada também vem atrapalhando a luta em defesa da criança no meio evangélico, pois, até como uma necessária resposta ao problema do abuso cometido por religiosos católicos, a Igreja Católica saiu na frente da discussão da prevenção ao abuso em seu meio. Nós, ao contrário, ainda estamos tateando em assumir a responsabilidade de protegermos nossas crianças. Portanto, há uma lacuna no meio evangélico e, indubitavelmente, essa lacuna é ainda mais grave no meio missionário transcultural.

Meu terceiro desejo é declarar o que eu penso ser uma abordagem mais abrangente para evitar e responder ao abuso infantil no contexto missionário transcultural. Assim como deseja Reju com seu livro, também desejo trazer algumas instruções práticas gerais, mas que deveriam ser adequadas a cada contexto transcultural nos quais missionários trabalham, seja dentro ou fora do Brasil. Gostaria de dizer que, antes de tudo, escrevo como pai de duas meninas, que hoje estão com 17 e 15 anos de idade, mas que saíram conosco para realizar a Grande Comissão em uma aldeia indígena com três e um ano de idade. Neste artigo, falo como pai, como missionário entre os povos indígenas do Brasil, como Pastor que já atuou também entre comunidades carentes e de periferia, além do pastoreio que realizei em área rural. Conheci etnias indígenas diferentes umas das outras no Brasil; fui professor de Língua Portuguesa no Parque Indígena do Xingu; desenvolvi um trabalho multiétnico com um grupo de quase 20 missionários junto a diversos povos indígenas, para a plantação de uma igreja multicultural no MT. Depois, trabalhei na área de educação bíblico-teológica no Ami, um Centro de Treinamento para obreiros indígenas. E, finalmente, conheci de perto a realidade diversa da Missão Caiuá, no MS.

Gostaria de dizer ainda que escrevo para um leitor ideal, formado na minha mente a partir de todos os alunos que passaram pelo CFM (Curso de Formação Missionária) da APMT e pelo CLM (Curso de Linguística e Missiologia) da Missão ALEM, buscando aprimorar sua formação missionária transcultural. Acredito que escrevo também a esses alunos, a essa nova geração de missionários. Sei que muitos se encontram trabalhando com povos de outras culturas mundo afora, enquanto outros estão aqui no Brasil mesmo, exercendo seus ministérios entre indígenas, ciganos, quilombolas, japoneses, chineses, árabes etc. Não apenas escrevo, mas dedico este artigo a cada um desses alunos que, eu sei, podem estar enfrentando situações como as que eu trarei aqui e que, por isso mesmo, precisam de orientação e apoio para prevenir e responder aos casos de abuso infantil em seus contextos de ministério. Escrevo e oro por eles.

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Trouxeram-lhe, então, algumas crianças, para que lhes impusesse as mãos e orasse; mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, disse: Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim, porque dos tais é o reino dos céus. Mateus 19:13,14

Sempre oriento meus alunos a que visitem seu campo missionário e o conheçam um pouco melhor, antes de se mudarem definitivamente. Foi assim que fizemos em 2006 e 2007, eu e minha esposa. Essas primeiras visitas foram suficientes para nos dar conta que um dos nossos obstáculos transculturais era a precoce sexualização das crianças na cultura em que iríamos trabalhar. As casas muito escuras tinham apenas duas “portas”, cada uma ficava de frente para outra, de modo que um corredor de luz atravessava o centro da moradia, onde também havia um espaço para queimar a lenha e moquear o peixe e o macaco. Entretanto, fora esse corredor de luz que atravessava o centro da casa, o que havia, tanto à esquerda como à direita, era uma escuridão sólida de se tocar com os dedos. Percebemos que nossas filhas se perderiam dentro daquelas casas extremamente escuras e precisaríamos, então, nos adequar àquela nova realidade cultural. Decidimos ali, naquela visita, que apenas eu entraria como professor da comunidade, enquanto minha esposa ficaria exclusivamente por conta de cuidar de nossas filhas.

No ano seguinte a essa visita, enquanto conhecíamos outro povo de outra cultura indígena, no Pará, sentou-se à nossa frente uma linda menina de olhos grandes e arredondados de apenas cinco anos de idade, era a filha de um ribeirinho da região. Perguntei a ela por que o povo indígena não estava presente ali conosco no Centro, como esteve na noite anterior. Aquela menina olhou para trás e me respondeu: “É que todo mundo foi para casa de fulano. Fulano, quando vem da cidade, todo mundo sabe que ele traz filme de SE-XO. Aí está todo mundo lá”. Eu olhei aquela filha de ribeirinho, que tinha quase a mesma idade de uma das minhas filhas e fiquei revendo várias vezes na minha mente a imagem inusitada dela dizendo a palavra “SE-XO”, escancarando a boca em cada sílaba. Descobri que os jovens indígenas estavam em intercâmbio intenso com a cidade e já pouco se interessavam pelas atividades culturais do próprio povo, quando havia a possibilidade de trocar a programação por “algo mais interessante”. Conosco, naquela noite, estavam apenas os mais velhos.

Essas duas histórias sempre foram contadas por mim aos candidatos ao trabalho transcultural, porque sempre soube que era preciso abrir diálogo com solteiros e casados, meus alunos em sala de aula, que, certamente, enfrentariam questões como essas que narrei aqui. Às vezes, seremos mandados por Deus a culturas que nos confrontarão e precisamos nos prevenir e preparar nossos próprios filhos também. E, infelizmente, eu já vi missionários colocando seus filhos em risco, crianças ainda, por falta de orientação, sem uma palavra e regras que os preparasse para determinadas realidades. Serei mais claro. Certa vez, entrei na casa de uma família missionária e uma criança de apenas oito anos de idade veio me receber à porta. Era a filha do missionário. Seu pai e sua mãe haviam recém-chegado àquele campo, mas, à semelhança de muitos outros missionários que trabalhavam ali, não haviam recebido nenhuma orientação sobre aquelas culturas e nem como deveriam se portar e relacionar com eles, uma vez que estavam ali em nome da Missão. Simplesmente não havia nenhum protocolo de segurança. Notei que os pais daquela criança haviam saído e a deixado em companhia de um adulto estranho à família deles.

Protocolos de segurança não servem apenas para proteger os filhos de missionários que trabalham em Agências ou Missões, mas terminam por ser mecanismos de blindagem a essas próprias instituições, uma vez que evitam situações em que elas possam ser acusadas de algo que nunca fizeram. O que eu quero trazer neste artigo, então, é que missionários e suas famílias precisam também ser protegidos. Agências e Missões também. Os povos indígenas, quilombolas, ciganos, árabes etc, semelhantemente, necessitam de um conjunto de normas reguladoras de proteção à infância, para que tomemos o cuidado necessário em nossas relações com eles. Missionários são enviados por suas igrejas locais, muitos estão atuando em projetos de Missões e Agências, que não os preparam para se prevenir e responder ao abuso infantil no contexto de outra cultura. A verdade é que muitas igrejas, pastores, lideranças e famílias sequer sabem prevenir e responder a essa questão dentro do seu próprio contexto cultural, imagine preparar os que são chamados “a passar à Macedônia”? Por tudo isso, é que acredito ser de suma importância para todos, igrejas locais, suas lideranças, Missões e Agências que possamos abrir uma discussão que nos leve às orientações necessárias e à criação de regras contextualizadas às realidades culturais em que nossos missionários se encontram.

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Porque aquilo que eles fazem em oculto, até mencionar é vergonhoso. Mas, tudo o que é exposto pela luz torna-se visível, pois a luz torna visíveis todas as coisas. Efésios 5.12 NVI

Depois de anos trabalhando em uma aldeia indígena, certa família se dirige à cidade mais próxima do povo com o qual ela trabalhava, com o intuito de começarem a tradução da Bíblia para a língua daquela etnia. Recebidos pela Congregação de sua denominação naquela cidade, passaram a frequentar os trabalhos da mesma e levar seus filhos às reuniões de sábado. Era uma reunião com o intuito evangelístico e de comunhão com aquelas crianças, o pastor dali e sua esposa lideravam o momento. Todavia, com apenas um mês que a família missionária já se encontrava morando na cidade e frequentando aquela Congregação, começam as denúncias de uma das mães daquelas crianças que participavam dos encontros nos sábados. As suas filhas haviam dito que o pastor, durante as brincadeiras, sempre tocava em suas partes íntimas. Evidentemente, a mãe daquelas crianças envolvidas ameaçou denunciar à polícia, mas o caso foi abafado e o pastor abusador foi transferido de cidade.

A narrativa acima lembra-me de outra situação vivida em uma escola pública do Distrito Federal, na qual o Diretor reúne os professores de alunos entre 10 e 14 anos para anunciar a chegada, na semana seguinte, de um novo professor ao quadro. Perguntado sobre quem era e de onde vinha o tal professor, o Diretor disse ao grupo ali presente que aquele “vinha fugido de outra escola”, porque pais o haviam denunciado por se envolver com as alunas de lá, menores de 14 anos. Os professores olharam uns para os outros e disseram que a Escola não deveria aceitá-lo ali, ao que o Diretor respondeu: “É que esse professor foi ameaçado de morte lá e…”. O fato é que o grupo fez um abaixo assinado e pressão junto aos pais para que aquele professor não fosse transferido para a Escola. E conseguiram.

Veja que todas as histórias acima ilustram uma mesma realidade diante da qual não podemos fechar nossos olhos: a sociedade humana expõe suas crianças e adolescentes a situações de risco, tornando-os vulneráveis ao abuso. Em todas as histórias reais narradas até aqui, o elemento comum é que, por trás delas, temos instituições responsáveis por gerir aqueles ambientes. São Secretarias de Educação, FUNAI, Missões religiosas, Igrejas, Denominações e Escolas locais, por exemplo. Muitos indivíduos se sentem incapazes de reagir diante da letargia das ações dessas instituições. Elas são acionadas, mas, em muitos casos, não há a devida investigação e punição ao abusador. E, como bem sabemos, a impunidade é uma moeda de duas faces: de um lado, incentiva novos crimes, do outro, intimida as vítimas. Não há quaisquer políticas de proteção à infância oferecidas por muitas instituições no Brasil, não há orientações, ouvidorias e nem protocolos. Mesmo havendo, o resultado visto é o abafamento dos fatos, transferência dos envolvidos e responsabilização das vítimas. A conclusão a que chego é que o indivíduo tem sido, muitas vezes, sacrificado para que a honra e o bom nome da Instituição seja preservado. Logo, a primeira orientação dada é que o indivíduo é quem tem que tomar a iniciativa de criar mecanismos que o irão proteger, quando ele percebe que está em situações nas quais a instituição se mostra morosa ou incapaz de resolver o caso. E, indubitavelmente, a primeira e melhor ação é a prevenção.

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“Para uma criança abusada em um contexto missionário, o abuso se agrava pelo sentimento de traição na violação explícita de confiança que existe nessas comunidades onde as crianças são encorajadas a se dirigirem aos pais de seus colegas e amigos como “tias” e “tios”, em um gesto de respeito e proximidade”.

Adultos que Foram Sexualmente Abusados na Infância

Livros como “Sempre alerta”, de Deepack Reju, e também o “Hora do banho”, de Neide Lunas, são aliados do indivíduo, ensinando-o como criar protocolos de segurança e códigos para uma prevenção segura. Mesmo o livro de Reju, que é sobre a questão do abuso infantil dentro da Igreja, é num contexto norte-americano e de legislação diferente da brasileira. O de Lunas, após uma ótima apresentação sobre o tema, volta-se para pais e responsáveis, em geral, numa linguagem que prevê a nossa cultura majoritária. Todavia, como tratar desse tema em contextos missionários transculturais em que esbarramos na blindagem cultural? Vou citar um exemplo: o infanticídio indígena. O infanticídio indígena é uma prática realizada em algumas culturas no Brasil em que se enterram vivas as crianças que nasçam com alguma deficiência física ou mental, gêmeos e filhos de mães solteiras. Até hoje, mesmo com todas as denúncias, com tantos pais indígenas se levantando contra a prática, com toda a rede de apoio feita para que não se pratique o infanticídio, ainda assim a barreira no meio acadêmico e o silêncio das autoridades governamentais são enormes. Para oferecer a dimensão da dificuldade, nem precisamos ir tão longe, pois, se encontramos enormes obstáculos na nossa própria cultura (sequer a pedofilia possui uma legislação que a descreva como crime até hoje), como definir o que é e o que não é abuso sexual em outra cultura? Indubitavelmente, assim com acontece nas nossas discussões, as alegações de “cultura” e “consentimento” serão ainda mais fortes, quando usadas para se esconder ou não enfrentar o problema. Até o argumento do “colonialismo” será usado, uma vez que os defensores da infância serão acusados de impor seu conceito cultural de abuso sexual sobre outra cultura, em que “a nudez e os jogos sexuais entre adultos e crianças são culturais”! Se este artigo se propõe a abrir uma discussão, devemos estar cientes de que estamos entrando num ambiente espinhoso e delicado.

Há missionários que trabalham com culturas no Brasil em que, quando a esposa sai de casa, o marido abandonado tem relações sexuais com os próprios filhos como uma forma de punir a esposa que deixou o lar. “É assim na cultura”, muitos dirão. Porém, ou o pecado é um conceito e uma realidade humana, que perpassa todas as culturas, ou em nosso trabalho de evangelização e discipulado nunca poderemos confrontar as mazelas que muitas culturas abrigam em si. Numa escola missionária, muitos vieram conversar sobre os dramas de seus alunos, crianças indígenas com menos de 14 anos de idade que sofriam abuso em casa. Essas crianças eram identificadas por seus professores, mas, antes mesmo de dar queixa, esses professores sofriam com a ameaça de morte àquelas crianças denunciantes feitas pelos seus abusadores. Assim, essa barreira transcultural precisava ser quebrada de alguma maneira e uma das formas que encontrei foi de instrumentalizar os indígenas que já eram cristãos. Ao invés de abordar essas situações por meio de missionários “estrangeiros”, um cristão do próprio povo foi preparado para que ele mesmo fizesse o contato e o apoio aos seus parentes.

Dando continuidade ao programa acima, enviamos um pequeno grupo de mulheres indígenas e não indígenas para uma formação continuada em Curitiba, no Encontro da PHILLOS da AMTB. Os objetivos do curso eram claros e quero trazê-los como proposta para que nossas Agências, Missões e Igrejas se empenhem, intencionalmente, em alcançar esses mesmos objetivos para suas próprias realidades: 1) Conscientizar as organizações representadas sobre a necessidade de trabalhar em prol da prevenção do abuso de crianças e adolescentes dentro da sua organização; 2) Orientar sobre como desenvolver uma política de proteção a criança para que a organização seja um lugar seguro. O curso proporcionado pelo PHILLOS trouxe uma série de casos que, recentemente, apareceram na mídia. Um desses, o do Dr. Donn Ketcham, ocorrido em Bangladesh, na Índia, lembrou-me a série documental da Netflix, “The keepers”, pois em ambos os casos relata-se uma rede de outras pessoas que, ao longo dos anos, protegeram os abusadores com mentiras, enganos, falsa culpa e humilhação das vítimas, tratamento preferencial e encobrimento de provas. No caso do Dr. Ketcham, o abusador se valeu de sua posição médica na comunidade missionária para abusar de meninas e mulheres missionárias. No caso do documentário da Netflix, chocou-me a rede de proteção criada numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos, envolvendo desde o prefeito, políticos, polícia e o padre que organizava um esquema de prostituição das alunas de uma escola para meninas naquela cidade.

Outro caso trazido no curso da PHILLOS foi o tratado pela organização independente G.R.A.C.E. numa escola para filhos de missionários e que revela o legado de sofrimento das vítimas de abuso, que eram filhos de missionários, mas que só começaram a falar sobre o que sofreram quando eram adultos:

“Qual é o impacto que essas formas de abuso sexual, físico, emocional e espiritual causaram nas vidas dos estudantes da Fanda? O catálogo de mágoa e dor não é curto: negação, perda de memória, depressão, culpa, sentimentos de impotência, ataques de pânico, incapacidade de cantar na igreja, raiva, medo, desconfiança dos adultos, pensamentos e ações suicidas, autoagressão, distúrbios alimentares, abuso de substâncias, experimentação sexual, confusão sexual, repressão sexual, fugindo, se voltando para o oculto, comportamento criminoso, prisão e morte.”

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Abre a boca a favor do mudo, pelo direito de todos os que se acham desamparados. Provérbios 31:8

O que fazer para prevenir e responder ao abuso infantil no contexto transcultural? Acredito que cada Igreja local, cada Agência e Missão deve responder a essa pergunta de acordo com as realidades em que elas estão inseridas e devem refletir adequando-se às culturas com as quais seus missionários trabalham. Quando eu digo “adequando-se”, não pretendo que os abusos sejam ocultados sob a blindagem cultural, de modo algum. O que eu quero dizer é que precisamos compreender, estudar, analisar como a própria cultura trata essas questões, pois, em muitos casos, teremos que dar uma resposta contrária às práticas culturais, ensinando-os e, se for necessário, confrontando-os, como foi o caso da circuncisão feminina na África e o infanticídio indígena no Brasil. Ainda assim, é preciso que se aborde a pergunta feita em duas frentes: a da instituição e a da pessoa. Tanto Deepack Reju como o Curso da PHILLOS trouxeram orientações para as duas situações, até mesmo explicando o porquê de instituições cristãs e os próprios cristãos serem tão vulneráveis aos predadores sexuais. No caso das instituições, a triagem deficiente de obreiros voluntários, a impunidade e o isolamento e acesso ao campo são algumas das razões que tornam nossas Igrejas, Escolas e Missões um alvo para abusadores. No caso das pessoas cristãs, a falta de informação sobre o assunto e essa realidade, achar que isso nunca irá acontecer com ela ou com alguém próximo, a manipulação da fé por líderes abusivos, que usam do “não pode julgar”, do “falso arrependimento” e do “perdão” para que o caso não vá adiante são algumas das razões dos abusadores procurarem pessoas cristãs preferencialmente.

Então, mais uma vez, “o que podemos fazer a respeito?”. Lembro-me que, quando casamos, eu e minha esposa tranquilamente criamos regras simples, mas necessárias para que pudéssemos nos afastar de toda forma de mal (I Tess 5.22). Uma dessas regras era a de não dar carona para o sexo oposto. Eu era professor de Escola Pública no turno da noite e não apenas professoras, mas mesmo alunas, eram insistentes em pegar carona com professores do sexo oposto. Durante anos, vi muitos ingênuos mestres caírem na cilada da maledicência, da fofoca, pois não se afastaram de toda forma do mal. Quando minhas filhas começaram a transitar pela internet e frequentar as mídias sociais, estabelecemos regras de uso e de conduta (não aceitar amizades de desconhecidos e, ao fim do dia, mostrar o celular para que verificássemos. Estas foram apenas duas de muitas regras que impusemos a elas).

Se dentro de nossas casas há regras, por que não pode haver regras de proteção à infância dentro de nossas Igrejas, Missões e Escolas confessionais? Um professor ou capelão ter determinados toques no corpo de meninas adolescentes deveria ser algo impensável a uma escola confessional cristã. É preciso regras! É preciso protocolos gerais! Não apenas para a defesa e proteção de nossas crianças e adolescentes, mas tudo o que fizermos nessa direção estará protegendo também essas instituições de falsas denúncias. Nenhum missionário poderia ser recebido numa Missão sem que houvesse um período probatório para que ele conhecesse não apenas a visão, filosofia, histórico e protocolos da Missão, mas do público com o qual aquela Missão se envolve. Estamos em ambientes transculturais e, em muitos casos, os missionários são lançados em campos de complexidade cultural, em que há várias culturas se envolvendo umas com as outras. E esse missionário, trabalhando para aquela Missão ou Agência (e até mesmo tendo sido meramente enviado pela sua Igreja local) é visto pelo povo(s) como embaixador, representante daquela Missão. Brasileiros atuando em trabalhos missionários na Índia, na China ou na África precisam de protocolos, regras de atuação e conduta, políticas de proteção à infância, porque estarão sendo representantes dos grupos dos quais fazem parte.

Muitos autores cristãos alertam: num mundo caído como o nosso, sabemos que não conseguiremos evitar a total erradicação do abuso infantil no meio da Igreja (e do trabalho missionário transcultural). Todavia, é responsabilidade nossa que, verdadeiramente, nos importemos em reduzir os riscos de abuso infantil. Precisamos criar políticas de proteção à infância nos lugares onde estamos, precisamos prevenir e também saber como responder quando essas situações ocorrem. Como Igreja do Senhor Jesus, queremos ver nossas crianças se tornarem adultos saudáveis e apaixonados em assumir a Grande Comissão. As consequências na vida de um adulto que foi abusado na infância podem ser danosas, trágicas e mesmo levar ao suicídio. Por outro lado, o nosso Evangelho pode evitar, tratar e curar tanto as vítimas como certos tipos de abusadores.

Encerro fazendo o meu alerta: há uma guerra, mas ela é espiritual. O exército inimigo é perverso, estrategista e demoníaco. Essa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra instituições que foram dominadas por demônios dominadores deste mundo tenebroso. A linguagem deles é sutil, embora as estratégias sejam de guerrilha. A bandeira da vez não é meramente desvencilhar o homossexualismo da pedofilia, nem mais insistir apenas na legalização da pedofilia. O front de guerra apresenta algo muito mais difícil de lidarmos. E eu explicarei aqui. A luta pela proteção à infância está minada por ciladas de Satanás (Ef 6.1). Você já leu documentos oficiais e artigos em favor da proteção da criança contra abusos? A linguagem que tem sido usada é uma linguagem hegeliana, marxista, não mais de lutas de classes, nem de gêneros, mas uma luta etária de “adultos X crianças”, em que estas devem ter garantidos seus direitos e cidadania por meio, preste atenção, de uma autonomia infantil. Todos os documentos e artigos que venho lendo tratam a infância como uma construção social e, portanto, relativa. Cada sociedade, cedo ou tarde, é esta a proposta que virá, poderá estabelecer o que é a infância de acordo com sua cultura. Não apenas isso, mas a criança deve alcançar alteridade em relação ao adulto, conquistando seu protagonismo e sendo o sujeito de si mesmo, papel que lhe é garantido na sociedade por meio da democracia. Tudo isso, que deveria garantir a proteção da criança e o direito dela de ser ouvida em suas denúncias ou como testemunha de abusos, servirá também para garantir a ela o direito a própria autonomia sexual. Este é o mais novo caminho de luta que o exército inimigo já está empenhado em abrir.

Documentos e artigos de tal natureza só conseguem a exposição e legalidade, porque os cristãos verdadeiros não ocupam os espaços necessários para barrar e atuar nessa redações. Se você não ocupar o espaço, o exército inimigo ocupará e irá impor sua agenda, sua cosmovisão e espiritualidade. Este artigo é também um apelo! Eu e você precisamos estar presentes na esfera Federal, Estadual e Municipal dos Governos, temos que estar nos clubes, associações, ONG’s, reuniões de condomínios etc. A Igreja missionária, que se faz presente nas culturas mundo afora, precisa prevenir e dar uma resposta evangélica ao abuso infantil. Do contrário, a resposta deles prevalecerá.

Rev Fábio Ribas — líder da base indígena da APMT*

*Na época da publicação do ebook, em 29 de maio de 2022, eu ainda era líder da base. 

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)

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