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terça-feira, 7 de maio de 2024

Armas de fogo e legítima defesa (XV/2024)


O prefácio, escrito por Stanley da Silva Braga, Desembargador TJSC Florianópolis, (outono/2016), é surpreendente pelo poder de síntese ao direito à legítima defesa. Mostrando que, desde o Código de Hamurabi, e passando pelos romanos, nossa legislação mantém esse direito. Portanto, 

verifica-se que há mais de dois mil anos torna-se lícito repelir a agressão injusta, atual ou iminente, com a morte do agressor sem ser imputado ao que se defende a condição de homicida, por não se tratar de delinquência defender a própria vida ou a vida de terceiro. 

Uma vez demonstrado que na história esse direito sempre foi garantido, com poucas variações, o autor do prefácio encerra seu golpe final: 

Feitas essas observações iniciais sobre o instituto jurídico da Legítima Defesa impõe acrescentar que não encontramos na legislação brasileira qualquer especificação e/ou limitação sobre os instrumentos a serem utilizados pelo ofendido, quando do exercício legítimo da defesa de interesses próprios ou de terceiros, mediante o uso da força. 

Logo… O que se precisa, e este é o ponto central do livro, é desfazer mitos que impedem que o cidadão de bem usufrua desse direito com liberdade.

Lendo e aprendendo, não vou negar, fiquei surpreso em descobrir esta Portaria Interministerial nº 4226, de 31 de dezembro de 2010, que afirma que os chamados “disparos de advertência” não são considerados prática aceitável, […] em razão da imprevisibilidade de seus efeitos. E a pergunta segue: “Quando se é legítimo usar armas de fogo contra pessoas?” Pergunta fundamental. E há duas respostas: em caso de legítima defesa e em estado de guerra. Mas, uma vez dito isso, precisamos seguir para a próxima indagação: o que é legítima defesa? 

A legítima defesa, um dos institutos jurídicos melhor elaborados através dos tempos, representa uma forma abreviada de realização da justiça penal e da sua sumária execução. Afirma-se que a legítima defesa representa uma verdade imanente à consciência jurídica universal, que paira acima dos códigos, como conquista da civilização — Bittencourt. 
Na realidade, o fundamento da legítima defesa é único, por que se baseia no princípio de que ninguém pode ser obrigado a suportar o injusto. Trata-se de uma situação conflitiva, na qual o sujeito pode agir legitimamente, porque o direito não tem outra forma de garantir o exercício de seus direitos, ou melhor, a proteção de seus bens jurídicos — Zaffaroni. 
[…] quem por uma injusta agressão é colocado na estrita necessidade de se defender, não mostra com isso um caráter pernicioso e, portanto, não deve ser punido, mas pelo contrário, deve ser louvado pela intimidação que sua vigorosa reação pode exercer sobre os mal — intencionados”— Fioretti. 

Outro ponto que eu não sabia: 

…muitos ainda creem que um policial agiria em estrito cumprimento do dever legal ao efetuar disparos contra um agressor. Trata-se de um equívoco recorrente, pois o policial não tem o dever legal de atirar em ninguém. A ele é facultado, como a qualquer pessoa, o direito de defender-se legitimamente caso sofra uma agressão injusta (legítima defesa própria). Já na hipótese de legítima defesa de terceiro, há uma imposição legal que atribui ao policial o dever de agir em defesa desse terceiro injustamente agredido, enquanto para o particular isso é uma opção.

O problema da mídia como o novo tribunal popular que já condena de antemão por meio de seus “especialistas” é um fato tratado no livro. Todavia, mais um questionamento surge neste ponto: Como tratar sobre temas tão importantes como o direito à legítima defesa e o porte de armas numa sociedade cuja imprensa exerce uma pressão e cria narrativas das mais fantasiosas distorcendo fatos? Isto tudo aparece como consequência de uma geração hollywoodiana de séries policiais que é instigada por essa mídia, que vende ao povo a ilusão de que a vida real seria da mesma maneira como eles assistem na série policial da TV ou nos filmes. Vamos, então, aos mitos.

“Mito 01 — “Disparo de advertência”. Interessante que, para mim, era óbvio ser necessário o disparo de advertência (sou fruto de uma doutrinação massiva hollywoodiana que me fez confundir ficção e realidade). Jamais imaginei que haveria uma Portaria que diz que essa ação não é uma prática aceitável! Advertência por advertência, de fato, bastaria uma verbal diante do criminoso. 

“Mito 2 — “Um disparo é o suficiente” (“poder de parada”). Está é outra ideia muito disseminada pelos filmes. O autor demonstra que você só consegue parar alguém com um tiro, na verdade, só no caso dela ser atingida na cabeça ou na coluna. Duas possibilidades muito difíceis, pois exigem do atirador uma precisão enorme. E é uma interessante pensar que a gente vê muito em filme isso. Mas, dependendo de como esteja a pessoa (drogada, por exemplo), ela nem se dá conta do disparo que recebeu e vai continuar avançando contra a vítima. 

“Mito 3 — Double tap”. É o mito que leva a pessoa a tentar dar dois disparos, com o menor tempo entre um e outro, na expectativa de derrubar o seu agressor. Sobre essa questão, seguem as colocações de Oliveira: 

[…] não há nenhuma garantia de que um ou dois disparos sejam suficientes para incapacitar um criminoso. Cada indivíduo responderá de modo particular durante um confronto armado. Alguns irão correr ou cair ao ouvirem o disparo, outros serão incapacitados com um ou dois tiros, e outros simplesmente resistirão mais tempo, não importando a quantidade de ferimentos. Assim, o único indicativo de que a incapacitação talvez tenha tido efeito ocorrerá com a queda do criminoso no chão. O problema está no bandido que consegue resistir aos ferimentos, o que implica a necessidade de continuar atirando. Infelizmente, à medida que a quantidade de tiros aumenta, crescem as chances de morte. Então, a morte do criminoso pode até ocorrer, mas por azar. O fato é que pode ser necessário disparar mais vezes porque o agressor simplesmente pode não cair incapacitado imediatamente. Desse modo, com relação à quantidade necessária de disparos para incapacitar um alvo humano, ressalta-se, não há um número determinado. Devem ser efetuados múltiplos disparos até cessar a agressão.”

“Mito 4 — Deveria ter atirado no braço/perna ou mão”. 

Discute-se bastante no meio policial sobre o uso da força letal na autodefesa, mas uma ideia surge quase universalmente. É o conceito chamado Síndrome do Tiro na Perna. Essa síndrome é expressa pelas opiniões do tipo: Eu não vou atirar para matar, mas vou mirar na perna do bandido!?. ? Precisava matar com três tiros no peito? Por que não atiraram na perna?? […] a crença equivocada daquelas pessoas que sequer estão presentes quando a violência ocorre, mas que não deixam de emitir um parecer baseado em considerações pessoais baseadas em filmes de ação, e não nas circunstâncias que envolvem o horror de um confronto armado real. Assim, o que acontece é que aquele criminoso que momentos antes apontava uma arma engatilhada para uma pessoa honesta, agora que está morto é transformado ? num passe de mágica ? em vítima por aqueles que acreditam que o policial deveria ter atirado na perna. Os papéis se invertem: o bandido vira mocinho, e o policial vira executor. 

Além do citado acima, os defensores dessa ideia sequer percebem que, ainda que se consiga acertar um braço ou uma perna, estas são regiões tão irrigadas de vasos sanguíneos grandes, que podem ser tão fatais quanto um tiro no coração. 

“Mito 5 — Lâminas X armas de fogo”. 

Um agressor armado com uma faca pode percorrer uma distância de pelo menos 21 pés, talvez mais, antes de uma pessoa armada com uma arma de fogo poder reagir, sacar, disparar. Verifica-se essa possibilidade para uma pessoa comum armada com uma faca, não há necessidade de ser um lutador marcial treinado. Portanto, praticamente qualquer pessoa segurando uma faca dentro de 21 pés representa uma ameaça potencialmente letal. […] muitos comentaristas da mídia sabem pouco ou nada sobre armas e táticas. Armas de fogo não são máquinas mágicas de morte. Ou seja, no período de tempo em que um atirador médio saca sua arma e dispara no centro de massa do alvo, um sujeito comum com uma faca pode percorrer uma distância de 21 pés (6,4 metros) e desferir golpes. Importante frisar que Tueller considerou como mínima essa distância e que há outros posicionamentos que relativizam essa realidade, não no sentido de considerar uma distância menor, mas sim no sentido de aumentar essa distância de segurança para, por exemplo, cerca de 30 pés (9,1 metros). Assim, Hontz esclarece que se a arma do policial está no coldre e ele objetiva atingir a massa corporal (grande alvo), o suspeito será capaz de percorrer cerca de 30 pés. Sobre esses dados, MacDaniel instrui que nessas hipóteses parte-se da premissa de que o atirador que será agredido por uma faca já visualizou o instrumento nas mãos do agressor. Logo, o mesmo autor complementa o raciocínio dizendo que na rua, na vida real, você poderia muito provavelmente ser surpreendido e não esperar por isso, o que influenciaria no tempo de reação. No mesmo sentido, Hontz explica que, se a arma não é aparente, não é claro na mente do policial se o suspeito é realmente uma ameaça, ou seja, se ele é surpreendido pelo ataque, os tempos de resposta provavelmente serão mais longos. 

A conclusão que eu chego é que a gente confundiu a vida real com a ficção. Este livro mostra ciência e nos confronta com nossas opiniões leigas hollywoodianas.”

“Mito 6 — “Tiro nas costas ou tiro pelas costas””. Será que todo tiro dado nas costas é execução como a mídia sempre apresenta? As cenas que o autor descreve e a ciência que ele traz para vermos o que ocorre na vida real são suficientes para analisarmos caso a caso responsavelmente, sem nos deixar levar pela imaginação ficcional. O tempo que uma pessoa se vira para fugir é totalmente dentro do tempo que um atirador pode dar o tiro, assim, ainda que ambos, atirador e bandido, estivessem frente à frente, uma vez ameaçado, o bandido pode virar para a fuga e levar um tiro nas costas. Outra cena importante é a do agressor dando disparos enquanto foge. O que, obviamente, o levaria a receber um tiro nas costas. 

“Mito 7 — foi excesso. 

 Ademais, é importante frisar que a pessoa agredida injustamente realizará o número disparos necessários para garantir sua sobrevivência e, nessa dinâmica peculiar, pode sequer perceber que se encerrou a agressão que estava colocando sua vida em risco. Nesse caso, ocorreria o instituto da legítima defesa subjetiva. Sobre o tema, explica Salim que essa espécie de legítima defesa: É o excesso na repulsa de uma agressão decorrente de erro de apreciação fática (art. 20, §1º, 1ª parte, CP). Logo depois de cessada a agressão que justificou a reação (houve legítima defesa real até dado momento), o agente, por erro plenamente justificável, supõe persistir a agressão inicial, e, por isso, acaba excedendo-se em sua reação (repulsa). Nota-se que o estudo do mito em questão (Foi excesso!?) amolda-se a essa modalidade de legítima defesa, pois na legítima defesa subjetiva realmente há uma agressão injusta que posteriormente se encerra sem que o inicialmente agredido perceba o término, continuando, assim, a reação a uma agressão agora inexistente.

“Mito 8 — Nem esperou o agressor atirar primeiro!?”. 

Esperar que alguém seja atingido por um tiro para que só então possa reagir a uma agressão injusta é uma ideia que beira a imbecilidade. Todavia, pelo fato de haver pessoas que acreditam nessa piada de mau gosto, faz-se necessário enfrentar essa lógica irracional.

O que mais me assusta neste último mito é saber que nossas polícias foram coibidas de usarem suas armas antes que o agressor use a sua. Como chegamos a essa situação jurídica, diante de uma ciência tão bem exposta no livro em questão. Só posso concluir que, a despeito da ciência e da lei, vivemos numa cultura contra o cidadão de bem e contra o policial.

            Fábio Ribas

Série armamentista:

1) Armas de fogo - elas não são as culpadas;

 2) Hitler e o desarmamento;

3) Articulando em seguranças.


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