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quarta-feira, 7 de agosto de 2024

A senhoria (XXXV/2024)


Ordínov, uma “criança” despertando para o mundo, mas que não discerne o mal, a manipulação alheia e nem seus próprios sentimentos e os dos outros. Ele está saindo de uma bolha e “nascendo” para o mundo a sua volta. Katierina, a “santa” profanada e profanadora. Uma jovem bela, mas atemorizante aos olhos apaixonados de Ordínov. Ela é submissa e controladora. Múrin, o “bruxo”. Certamente, a sombra do “velho bruxo” é que paira sobre os personagens de Ordínov e Katierina. Ele é a quem se refere o título do livro. Eis, portanto, os três personagens centrais da novela de Dostoiévski, “A senhoria”. 

Desta vez, quis dar uma descrição dos personagens principais, pois isso me ajudaria a falar de um texto tão denso, embora curto, que é este livro. Pensei também em começar já dizendo que gostei DEMAIS desta história. Há razões literárias, mas há também uma razão pessoal, para que eu goste tanto de uma novela que, na época de seu lançamento, foi tão criticada e mal recebida. Aliás, até agora, são três Dostoiévskis diferentes. “Gente pobre”, seu primeiro romance, caiu no gosto do público e da crítica por ser o que os russos estavam produzindo naquele momento, que eram os chamados romances de cunho social. “Gente pobre” é um romance epistolar, que me agradou muitíssimo. O segundo romance já foi muito mal visto pela crítica e pelo público, que foi “O duplo”. Contudo, eu amei! Um romance intrigante, fascinante e fantástico. Agora, “A senhoria” é um terceiro Dostoiévski, romântico, elaborado, rebuscado e profundamente mergulhado na psique confusa de seus personagens. Tanta gente critica este, mas, para mim, um dos melhores livros que já li. Por quê? Vamos lá!

Primeiramente, os personagens são muito bem construídos. A narrativa é sufocante e onírica. A história é contada em terceira pessoa, mas nos é dada apenas uma única perspectiva, que é a de Ordínov, sendo, então, uma narrativa de terceira pessoa cujo narrador é onisciente de um único personagem. Só os pensamentos dele nos são revelados, assim, os demais vão nos envolvendo numa imensa incógnita. E pior: será que o que recebemos de Ordínov é aquilo mesmo? Mas quem é Ordínov? Um personagem recluso por toda infância e adolescência e que, agora, sai do seu casulo estudantil e, portanto, conhece quase nada da vida e dos relacionamentos humanos. Por isso, a interpretação do personagem em relação ao que está acontecendo a sua volta pode estar equivocada. Mas como saber?

Depois, a jovem Katierina é ambígua e oscilante. Em determinado momento da leitura, eu pensei, “ela é louca”! Mas é nessa personagem que reside a razão pessoal para que eu tenha gostado tanto da história. Ela me lembra alguém. Toda aquela narrativa, todo aquele delírio, lembrou-me alguém do meu passado. Alguém com quem eu tive diálogos muito, mas muito parecidos mesmo com os que ela e Ordínov têm um com o outro. E a loucura e o sonhos, as alucinações, enfim, tudo o que não nos deixa discernir bem o que de fato ocorreu (quem matou quem? Quem é Múrin? Qual a natureza daquela relação? O que é verdade e o que é mentira ali? O que seria, talvez, apenas confusão de um jovem doente e imaturo emocionalmente?), tudo isso pode ser uma linguagem propositadamente oblíqua, velada, para se esconder um fato do qual não queremos enfrentar. Quando algo chocante ocorre, quando ultrapassamos os limites do “civilizado”, do aceitável, quando a loucura se instaura na vida real, tendemos a usar a linguagem como um instrumento de obliteração. Fugimos de “dar nomes aos bois”, uma vez que nomear é trazer à existência e trazer à tona pode ser doloroso e absurdo demais. Ninguém quer ver a própria feiura pecaminosa. E eu e essa pessoa de um passado longínquo tínhamos diálogos assim, exatamente por ser doloroso, tenebroso e terrível para ela tratar de seu trauma de maneira clara. Essa pessoa conversava comigo, contava sua história e o que ocorria, porém, sempre recorrendo a metáforas. E é isso o que vemos em Katierina. Mas, assim como essa pessoa, a personagem de Katierina é doente.

Múrin, no fim de tudo, é mesmo um bruxo. Um ilusionista das palavras, um manipulador de todas as pessoas a sua volta. E a pior coisa que pode acontecer com Ordínovs da vida (e com Katierinas também) é encontrarem com psicopatas assim. Os Múrins que nos assaltam são vampiros, monstros mesmo, que tiram toda nossa sanidade e, por fim, convencem suas vítimas de que a culpa é delas e elas são imperdoáveis pelos pecados que cometeram (e cometem). Katierinas e Ordínovs não sobrevivem diante de Múrins (“Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”, I João 5:21). E o pior é sairmos sendo vistos como vilões (nós, os que fomos usados, sugados e cuspidos), enquanto nossos Múrins são aplaudidos pela sociedade.

Enfim, que livro! Que história! Que mergulho na natureza humana totalmente depravada. Leitura imprescindível!

            Fábio Ribas

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