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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Armas de fogo - elas não as culpadas (V/2024)


    Estreando com este livro a minha leitura de 2024 sobre “armas e lei”. Logo na orelha do livro, deparo-me com três perguntas essenciais: 1) “São as armas registradas aquelas que são apreendidas pela polícia, nas mãos dos criminosos?”; 2) “São fuzis e metralhadoras as armas entregues em campanhas de desarmamento?”; e 3) “As restrições, cada vez maiores, para compra de uma arma de fogo, reduziram a violência no Brasil?”.


    O livro “Armas de fogo — elas não são as culpadas”, do advogado e estudioso de segurança pública e criminalidade há mais de 20 anos, João Luís Vieira Teixeira, é fruto que vem sendo maturado desde sua pesquisa para a monografia de conclusão do curso de Direito, na PUC — PR. O presente livro já está em sua segunda edição. Esgotada, diga-se. E o que vem sendo tratado por ele é se “a proibição da venda de armas de fogo irá ou não resolver a preocupante questão da violência em nosso país”.


    Na apresentação, já somos lançados a um fato óbvio:


“…os criminosos não compram armas em lojas autorizadas, não têm licença para porte de armas e utilizam armas de fogo de calibre de uso proibido à população em geral. Um cidadão de bem não pode comprar fuzis e granadas, muito menos armas antiaéreas e lança-rojões de uso exclusivo do exército. Mas os criminosos utilizam. Como eles conseguem esse armamento? Então seria justo impedir um cidadão honesto de comprar uma arma para defender sua família do ataque de indivíduos violentos e mais bem armados que a própria polícia?”.


    O homem sempre utilizou armas para se proteger e proteger sua família e posses, diz o autor, desde tempos imemoriais. E eu digo mais: em todas as culturas da face da terra, o homem protege-se do ataque de animais e de outros homens. No capítulo 2, o autor traça um histórico do desenvolvimento das armas, desde paus e pedras até as armas nucleares.


    No capítulo 3, o autor já começa mostrando como que estatísticas podem servir para mascarar a complexidade de um problema em prol de um simplismo, como é o que ocorre na relação armas de fogo e violência. Ele destaca a estatística que mostra que,


“no Brasil, 89% dos homicídios são cometidos com o uso de armas de fogo. Ao mesmo tempo, no Japão, onde são proibidos a compra e o porte de armas de fogo, esse índice cai para 5%”.


    Pronto! A partir de uma informação como essa já se começa a defesa para o desarmamento. Todavia, uma pesquisa mais séria e comparativa entre o Brasil e o Japão rapidamente demonstra que nossas realidades sociais são incomparáveis: o desemprego, a inflação, nossa vergonhosa qualidade do ensino público etc, tudo isso são apenas alguns outros fatores que inexistem no Japão e que, no nosso caso, lançam muitos jovens sem oportunidade ao crime organizado. Pare e pense: retire todas as armas dos cidadãos de bem neste exato momento e o que acontecerá? O índice de violência diminuirá? Assaltos à mão armada e homicídios cairão? De modo algum! E quando insistimos nessa lógica torta estamos ligando a terrível violência no Brasil ao cidadão de bem e não ao criminoso! Além disso, os nossos jovens continuarão a ser cooptados pela rede do crime organizado.


    No capítulo 4, o autor lança um olhar sobre a legislação de armas de fogo. Será tratado da mudança que a lei trouxe para o porte ilegal de armas, que, antes, era apenas uma contravenção, mas, após a nova lei, passa a ser crime. Embora as legislações pareçam tratar da situação de delinquentes, não podemos esquecer do uso de armas de fogo para outros fins, como: esporte, coleção etc. Um dos pontos interessantes desse capítulo é o fato do “tiro de advertência”, para inibir um assalto. Esse não deve ser dado para o alto em lugar sem cobertura, pois a bala que sobe terá que retornar e pode ocorrer um acidente com isso. Entretanto, quaisquer contra-argumentos aqui não podem descartar o fato de que há uma burocracia restritiva para a aquisição de arma e um preparo necessário também aos que irão tê-la. Enfim, não se defende que armas sejam entregues para todos. O que se quer é que aquele que deseja ter a posse tenha esse direito garantido e que, então, possa passar pelo crivo de todos os critérios para possuir sua arma.


    Nosso código penal brasileiro, no art. 25, prevê a legítima defesa. Assim, o direito à legítima defesa, num ataque, numa invasão domiciliar, em que a pessoa esteja defendendo sua própria vida, sua família e suas posses é legítimo. Contudo, vemos muitos autores, como o ex-Senador José Roberto Arruda, criando projetos de lei que visavam a diminuição da violência por meio da restrição do uso de armas de fogo no Brasil. Mas, segundo estudiosos do Direito, como Celso Ribeiro Bastos, quando nosso Código Penal prevê em seu art. 25 a hipótese de ocorrência de legítima defesa, “esses meios de defesa, nos dias de hoje, são as armas de fogo”. O autor conclui:


‘…nosso Código Penal autoriza o uso (moderado) das armas de fogo como meio para se defender da tão citada e assustadora violência que se verifica no Brasil, até mesmo porque nossos legisladores, à época da elaboração do Código Penal, já previram, ou constataram, que o Estado falharia nesse seu compromisso”.


    Qual compromisso? De cumprir o que diz nossa Constituição Federal: a proteção do cidadão. As polícias não são onipresentes. O Estado é omisso em várias regiões do Brasil em que as facções criminosas dominam, sendo assim, como pode o Estado proibir seu cidadão de defender-se? Mas a mídia e a propaganda mentirosa feita pelo próprio Estado para fazer prevalecer fatos inexistentes são, na verdade, imorais: o orçamento gasto com a referida consulta popular de 2005 foi de 250 milhões de reais. Isto foi mais do que todo o gasto público federal investido em segurança pública naquele ano. E, depois desse gasto todo, todas as ações do Estado foram na contramão da decisão do cidadão que disse NÃO ao desarmamento.


Documentário “Desarmados”


    Citado no livro “Armas de fogo”, logo fui assistir na Amazon. É um pequeno documentário de apenas 1h16m. Porém, farto de muitas informações históricas do Brasil e também do mundo.


    Duas frases abrem o documentário. A primeira delas faz menção a Hitler, que desarmou os judeus na Alemanha. A segunda frase é esta: “Em 2005, mais de 59 milhões de brasileiros votaram contra o desarmamento civil. O direito dessas pessoas não foi respeitado”.


    O documentário é apresentado pelo ator e esportista Taiguara Nazareth. Só há duas questões técnicas que prejudicam um pouco: em determinado momento, por pouco tempo, a luminosidade do documentário cai sem nenhuma explicação; e não colocaram nenhuma legenda quando o líder árabe fala na entrevista.


    Os pontos de destaque do “Desarmados”:


1) Os Maias existem hoje graças às armas que eles tinham, mesmo antes da chegada dos espanhóis. Elas impediram que os Maias fossem dizimados por povos inimigos, assim como pelos espanhóis (há mais de 7 milhões de descendentes dos maias que mantêm ainda alguns aspectos de sua cultura e língua);


2) No Brasil, as armas sempre sofreram restrições, apesar dos colonos serem convocados para defender a colônia dos ataques de corsários ingleses, e das invasões de franceses e holandeses. No Brasil Colônia, qualquer pessoa que fabricasse armas sem o consentimento da Coroa Portuguesa sofria pena de morte. No Império, as armas eram proibidas aos indígenas e aos negros. Na República, Getúlio Vargas começa uma forte restrição às armas. Além disso, na volta vitoriosa dos nossos soldados da FEB, depois da Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas desmobiliza a FEB antes mesmo deles chegarem ao Brasil. Apesar da recepção popular, esses soldados são mandados para os mais diferentes e distantes lugares para servirem e outros são dispensados do serviço. Seria inviável para Vargas ter heróis celebrados que lutaram contra contra a Ditadura europeia, enquanto, no Brasil, seu Governo era ditatorial;


3) A estratégia de usar o desarmamento da população para viabilizar ditaduras começa no Japão do século XV. As armas são introduzidas pelos portugueses, e com sua metalurgia avançada, logo os camponeses japoneses estavam armados. A saída da elite do Japão foi dizer que precisavam das armas para que pudesse ser feita uma estátua de Buda. Os camponeses acreditam, mas, logo após esse desarmamento, vem a proibição de terem armas novamente. A derrubada do Czarismo na Rússia segue a mesma lógica japonesa. Uma vez usados para a revolução bolchevista, os camponeses são desarmados logo depois. Hitler, na Alemanha, é o caso mais contundente. Ele sabia que precisava desarmar seus inimigos para centralizar seu Governo. Em Cuba, o desarmamento ocorreu assim que Fidel Castro tomou o poder;


4) No Brasil moderno, Fernando Henrique Cardos é quem inicia o desarmamento com intenção de conseguir uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. O Deputado Eduardo Jorge do PT propõe um projeto de lei extremamente restritivo, em que até policiais, que não estivessem de serviço, não poderiam portar armas de fogo. Em 1997, o porte de arma deixa de ser contravenção e vira crime. Durante os escândalos do Mensalão, em que houve repasses de verba vultuosos na véspera da aprovação do Estatuto do desarmamento, o Presidente Lula aprova o que, então, oficializa nossa derrocada de segurança no Brasil. Por quê? O documentário mostra que, a partir das legislações cada vez mais restritivas, só aumenta o índice de violência no Brasil, chegando aos seu pico nas vésperas da eleição de Bolsonaro, com quase 50.000 homicídios naquele ano.


    É preciso abrir a discussão, uma vez que o Governo não dá conta da escalada da violência contra o cidadão de bem no Brasil. A violência já existe e as armas de fogo estão nas mãos dos bandidos.


    A pergunta final que fica é: eu tenho direito de tirar o direito de quem quer usar uma arma de fogo para sua legítima defesa? A resposta a essa pergunta já foi dada por 59 milhões de brasileiros em 2005 e o Estado não a respeitou.

                                Fábio Ribas

        

sábado, 27 de janeiro de 2024

Conhecimento unívoco e conhecimento analógico (IV/2024)

 

    Ótimo livro de Daniel Gomide esclarecendo a controvérsia ocorrida no século passado entre dois gigantes da Teologia: Gordon Clark e Cornelius Van Til. Controvérsia que expõe duas linhas inconciliáveis de epistemologia da Tradição Reformada. O que Gomide irá mostrar é que a posição de Cornelius Van Til é menos coerente com a Reforma Protestante que a posição de Clark. Na verdade, Van Til termina por dar continuidade à linha aberta por Tomás de Aquino, enquanto Clark não dá margem para qualquer concessão a qualquer espécie que seja de autonomia da razão. Para compreender melhor, é preciso esclarecer a discussão que logo aparece no título do livro.

    Há 3 tipos de conhecimento: unívoco, equivoco e analógico. O conhecimento unívoco é aquele que estabelece que o termo apresenta um único significado; o equívoco é aquele em que o termo tem significados diferentes; e, finalmente, o analógico será o conhecimento derivativo por comparação. Neste último é que se origina o famoso postulado de Van Til que diz que pensamos os pensamentos após Deus. Aqui, cabe esclarecer, Clark também concorda com Van Til que só é possível um conhecimento que Deus o já tenha conhecido. Então, qual é a controvérsia? Para Clark, o conhecimento analógico só é possível se ele tem por base o conhecimento unívoco. Por isso, precisamos compreender e dominar esses conceitos. Pois, toda a controvérsia surgiu de uma interpretação errada de Van Til sobre o que seria "unívoco" para Clark. Van Til (e vantilianos) achavam que Clark defendia uma razão humana autônoma de Deus e, sendo assim, vantilianos acreditam que o conhecimento analógico e unívoco são inconciliáveis.

    Darei mais exemplos:

    1) Conhecimento unívoco: "Jesus ressuscitou". Não pode haver margem para quaisquer outras interpretações aqui. "Ressurreição" é volta dos mortos na frase acima. Assim, para Clark, o termo usado não pode ser ambíguo, pois custará um problema na nossa comunicação. E mais: o conhecimento unívoco nos permite conhecer o conhecimento do próprio Deus. Para Clark, a regeneração é habilitar a mente a compreender a lógica divina, pois agora temos a mente de Cristo (daí, a Bíblia afirmar que o nosso culto é racional - Deus é lógica!).

    2) Conhecimento equívoco: "Jesus ressuscitou". Se o termo ressuscitar pode se referir a mais de um significado (polissemias e metáforas), então o que Deus quer dizer com essa frase "Jesus ressuscitou" é uma incógnita, pois eu posso entender que ele aparentemente retornou dos mortos ou que os discípulos tiveram uma experiência de loucura coletiva (ou que, culturalmente, Jesus estaria dormindo). Se os termos possuem vários significados que eu possa atribuir, nunca saberíamos com exatidão o que Deus quer nos comunicar.

    3) Conhecimento analógico: "Jesus ressuscitou" é como a borboleta que morre lagarta e ressurge borboleta. Será? A analogia, se é feita em base equívoca, pode trazer muita confusão e nenhum conhecimento sobre a que se refere os pensamentos de Deus!

    Por tudo o que foi explicado acima, vemos a importância dessa discussão para a apologética e a epistemologia. Exatamente por Tomás de Aquino advogar o conhecimento analógico, é que ele defendeu que a razão e a fé caminhavam juntas até que a razão se colocasse contra a fé. Neste ponto de confronto, a fé iria seguir seu próprio caminho. Ora, isso nada mais e nada menos significa que, por seu lado, a razão chegaria às suas próprias conclusões. Olha a autonomia da razão de Aquino na tangente aí. E, sendo assim, não podemos afirmar ou confirmar que a fé está conhecendo os pensamentos de Deus, porque tivemos que largar a razão no seu próprio outro caminho. Mais à frente, uma alternativa a esse conhecimento analógico tomista, que separa razão e fé, será postulado por Kierkegaard. Este filósofo vê que o cristianismo é uma religião de paradoxos mesmo, incompreensíveis pela razão. Assim, só é possível saltarmos na fé os abismos incompreendidos pela nossa razão. Clark refuta o conhecimento analógico de Aquino e de Van Till e, obviamente, a fé desesperada de Kierkegaard.

                        Fábio Ribas

sábado, 20 de janeiro de 2024

A arte não precisa de justificativa (III/2024)

    


    Afinal, o que é arte? Neste livro, não encontraremos o que seja “arte” para Rookmaker. Talvez isso já nos mostre a dificuldade que traria qualquer delimitação ao termo. Entretanto, uma coisa é certa para o autor: “precisamos muito de uma arte que seja saudável e boa, e que as pessoas entendam” (p.10). Este pequenino livro de apenas 76 páginas, apresenta-se como uma chamada à responsabilidade para artistas cristãos. “É uma leitura para todos os cristãos que desejam usar os talentos que receberam de Deus para a glória daquele que os presenteou”, dizem os editores no prefácio. “É uma chamada profética aos artistas, artesãos e músicos cristãos para que pranteiem, orem, pensem e trabalhem antes que seja tarde demais”, arrematam. Da minha parte, eu pergunto: será que já não estaríamos no “tarde demais”?

    Não nego que, quando entrei em contato com este livro pela primeira vez, em 2020, num curso de “Artes para a glória de Deus”, houve um incidente que logo me afastou de continuar a seguir a leitura. Num dos capítulos do livro, que fora traduzido pelo professor do curso, inexistia um parágrafo inteiro no original, mas que havia sido inserido na nossa versão em português. Eu tinha a tradução em português da edição oferecida pela Editora Ultimato, assim pude chamar a atenção da turma de alunos que, na minha tradução em português da Ed. Ultimato, havia um parágrafo que não existia no original que ele estava lendo. Para todos, professor e alunos, aquilo era uma surpresa, principalmente pelo parágrafo a mais da versão em português endossar uma interpretação ideológica que não havia no livro. Com essa má introdução a Rookmaaker, só ano passado retornei aos seus livros (2023).

    Embora não defina o termo “arte”, Rookmaaker lembra que,

“em muitas culturas, incluindo a nossa, antes do novo período que começou entre 1500 e 1800, os artistas eram principalmente artesãos. Fazer arte significava fazer as coisas de acordo com certas regras — as regras da classe dos artesãos” (p.11).

    Rookmaaker também afirma que nossa relação com a arte mudou. Antigamente, a arte era parte de um serviço, estava subordinada a algo. Hoje, porém, vemos o produto artístico como “obra de arte”, algo em si mesmo, destacado de qualquer contexto ao qual a obra devesse estar servindo. Portanto, não havia discussões sobre as obras de arte, debates ou interpretações. Se havia crítica, não era em função da beleza ou da habilidade do artista, mas era sobre sua impropriedade ou falta de adequação ao contexto em que ela se manifestara. Para exemplificar isso, o autor lembra das críticas de São Bernardo de Claraval, no século 12, que “fez objeção às estranhas criaturas, monstros e animais fantásticos encontrados nos capitéis dos claustros” (p.13). O que se observava, naquele tempo, era a habilidade, qualidade e adequação como diretrizes do artista (p.13).

    O quadro acima começou a mudar, segundo Rookmaaker, no Renascimento. Todavia, foi no Iluminismo do Século XVIII — a “Idade da Razão” — que surgiu o conceito de “obra de arte” como o entendemos hoje.

    Abrirei parênteses aqui só para dizer que nós, protestantes, temos forte responsabilidade nessa mudança de paradigma, embora Rookmaaker não veja isso. Pense comigo: quem bancava os artistas até a Reforma Protestante? Os mecenas. E entre esses se encontravam muitos religiosos católicos — até mesmo Papas. Veja a inversão — estamos falando de clientes que contratavam os artistas e solicitavam seus trabalhos. Veio a Reforma Protestante e suas igrejas se espalharam pela Europa só que com um detalhe que, talvez, não tenha sido pensado pelos Estados Nacionais que assumiram a nova Fé. Qual detalhe? Ao contrário do Romanismo, as igrejas provenientes da Reforma não possuíam imagens de santos e santas dentro delas. A igreja protestante não mais contratava os artistas — ou, pelo menos, diminuiu muito essa relação. Agora, sem ter quem me contratar, eu deveria produzir a obra de arte e “sair vendendo no mercado”. Você já pensou no impacto disso? Que mudança de paradigma! Mas a coisa não para por aí. Pensa comigo: agora, quem é que tem dinheiro? Os burgueses. No caso, os burgueses protestantes. Eles começaram a pagar para ter seus próprios retratos… Eu acho que isso é mais uma mudança radical! Surge o Artista e sua obra de arte! Para uma avaliação de tudo isso que estou falando neste parágrafo, acredito que vale a pena estudar Rembrandt e a Holanda do seu tempo. Mas isso é só hipótese. Fecho o parênteses.

“A arte tornou-se “belas artes” e as artes manuais foram postas de lado, como algo inferior. O artista tornou-se um gênio, alguém com dons especiais, que poderiam ser usados para dar à humanidade algo de uma importância quase religiosa — a obra de arte. De certa forma, a arte tomou lugar da religião” (p.14).

    Rookmaaker escreverá um parágrafo que me remete ao papel da cultura e da cosmovisão, contudo aplicado à arte (o que me fez lembrar das minhas aulas de Comunicação Transcultural). Diz ele que, a partir de Kant, Schelling e Hegel, “a arte passou a ser vista como a solução final para as contradições internas dos sistemas filosóficos elaborados para formar um entendimento integrado da realidade” (p. 14). “A humanidade é livre e, ainda assim, presa a um universo mecanicista; a arte pode revelar a unidade interna e contornar as tensões racionais”, entenderam os filósofos da Razão (p.14–15). Isto faz todo o sentido, uma vez que, na Modernidade, os aspectos afetivos foram lançados para a vida privada e ao subjetivismo. Entendeu-se que dentro do escopo da afetividade estava a religião. Contudo, saindo a religião, o que pode atender ao homem no espaço público: a arte. Realmente, no areópago moderno, a arte substitui a religião. A fé fica para o privado e o subjetivo. A arte é trazida para a praça pública, porque, acredito eu, a arte moderna será cada vez mais uma “obra aberta”, não se entregando como uma única proposta ou interpretação. Há uma abertura para a recepção do público tornando esse mais um interlocutor do que um destinatário passivo. A arte é um meio para que o público possa transcender como queira. Quais as consequências disso? A arte se torna uma religião irreligiosa, diz Rookmaaker.

    Os artistas ou são vistos como sacerdotes da cultura ou como pessoas supérfluas. Acredito nessa interpretação do Rookmaaker. Mas como eram vistos os artistas antigamente? O que significa ser artista? Arte, cultura, cosmovisão são termos que precisam ser definidos. O artista era um artesão que seguia as regras de sua escola? Na página 16, o autor toca num tema interessantíssimo para mim: o homem retira a providência divina de sua equação-para-compreender-o-mundo! A crise nas artes é a crise do próprio homem que retirou Deus de sua equação. A arte, por se tornar uma busca religiosa de um homem irreligioso, não encontrou nada no fosso depravado do coração do artista (nem do seu interlocutor). Tudo isso trouxe uma crise para as artes.

“A arte tornou-se uma busca individualista de sua própria identidade, revelada em seu trabalho e por meio dele. São como alguém que se olha no espelho — tudo é uma expressão do eu; o resto, torna-se irreal. A arte deve ser uma expressão do que há de mais profundo em nós. Mas e se encontrarmos pouco?” (p. 17)

    Rookmaaker faz coro com os que criticam o pietismo, que se preocupou demais com uma vida pessoal de devocionais, enquanto não vivia essa vida diariamente no mundo. A ideia é que o secularismo e o paganismo foram tomando conta da sociedade e os cristãos deixaram. Os cristãos não assumiram uma postura na política, nas ciências, na filosofia, nas artes. Acredito que o cristianismo é um chamado muito maior do que “uma entrada para o Céu”. O cristianismo é um chamado para viver aqui e agora para a glória de Deus em todas as esferas em que estamos inseridos na sociedade. Por outro lado, esse otimismo pós-milenista que sinto no livro me incomoda. Nem 8, nem 80, por favor!

    Mas a pergunta fica: o que o cristianismo tem a ver com a cultura? E qual a resposta da Igreja a essa pergunta? Segundo Rookmaaker, o Pietismo foi lançando cada vez mais a beleza para fora do Cristianismo. Preocupado apenas com as devocionais pessoais, o Pietismo não teria expressado para fora da Igreja a beleza do Evangelho. E mesmo dentro da Igreja não temos nos importado com a Beleza, insiste Rookmaaker. A clareza, a lógica e a ordem de um sermão não deveria expressar beleza? A música que será tocada no Culto, em muitas igrejas, parece ser “qualquer coisa vale”. E se ela contradisser o sermão? E o que falar da beleza na arquitetura das nossas igrejas? Por que confundiríamos simplicidade com simplismo? Com essas perguntas, Rookmaaker nos lembra que, até hoje, as catedrais são visitadas mostrando que o Cristianismo, um dia, fez questão de deixar sinais de que algo maravilhosamente belo aconteceu em Israel.

“Portanto, ser cristão significa que temos humanidade — a liberdade de trabalhar na criação de Deus e usar os talentos que Ele deu a cada um de nós para sua glória e para o benefício do próximo. Assim, se tivermos talentos artísticos, eles devem ser usados” (p. 27).

    Todavia, Rookmaaker tem uma visão pós-milenista e, por isso, uma expectativa ingênua de “reforma” da sociedade que certamente teria que começar pelo cristianismo. Ainda que ele diga que não acredita na solução marxista e nem na solução tecnológica, para mim, a expectativa que a sociedade seja reformada e com isso a cultura seja resgatada está mais para uma perspectiva de Cristandade do que de Cristianismo. Rookmaaker viveria num ideal de “era de ouro”? Às vezes, ele me soa como um católico conservador monarquista sonhando com o retorno ao século XVII. Como a minha pretensão não é pós-milenista, meu voo aéreo é mais baixo. De qualquer modo, vejo com bons olhos o método de Rookmaaker de retorno à Palavra, especialmente à palavra profética de Miqueias: “prantear, orar, pensar e trabalhar” (p.30).

⁷ Eu, porém, olharei para o Senhor e esperarei no Deus da minha salvação; o meu Deus me ouvirá.

⁸ Ó inimiga minha, não te alegres a meu respeito; ainda que eu tenha caído, levantar-me-ei; se morar nas trevas, o Senhor será a minha luz.

⁹ Sofrerei a ira do Senhor, porque pequei contra ele, até que julgue a minha causa e execute o meu direito; ele me tirará para a luz, e eu verei a sua justiça.

¹⁰ A minha inimiga verá isso, e a ela cobrirá a vergonha, a ela que me diz: Onde está o Senhor, teu Deus? Os meus olhos a contemplarão; agora, será pisada aos pés como a lama das ruas.

¹¹ No dia da reedificação dos teus muros, nesse dia, serão os teus limites removidos para mais longe.

                                                        Miquéias 7:7–11


    “Prantear” pela nossa atual situação. “Orar” para que Deus mude nossa disposição. “Refletir” sobre o que é o cristianismo e o que queremos. E, só então, seguros de nossas renovadas bases teológicas, “trabalharmos” para o resgate.

    Ser um artista cristão não significa realizar um trabalho e acrescentar o nome “jesus” a ele. Não podemos usar a arte para justificar o cristianismo. É o contrário, nosso cristianismo transborda em nossa arte, porque extravasa de nós o fruto do ES. O artista cristão não é aquele que usa da arte para evangelizar. O propósito da vida não é o evangelismo, mas vivermos para a glória de Deus.

“Como diz CS Lewis de maneira tão bela, já temos livretos e panfletos cristãos suficientes; porém, se quisermos a recristianização da Europa e dos Estados Unidos, isso não acontecerá se as pessoas não conseguirem encontrar um bom livro em certa área do conhecimento e descobrir que ele foi escrito por cristãos” (p. 35).

    Só numa segunda leitura, eu pude compreender a tese de Rookmaaker de que a “arte se tornou Arte no século 18” (p.45), pois tive certa resistência a essa ideia num primeiro momento. E essa tese foi relembrada no último e melhor capítulo do livro. Este último capítulo foi o mais importante. Ajudou-me a esclarecer alguns pontos para seguir adiante nos meus estudos. Vi frases que confirmam o que ensino no meu curso de comunicação e no meu artigo “comendo junto com pecadores”. O capítulo “Arte e sociedade” atende demais a tudo o que eu estava procurando. “Normas e artes” também. Achei minha justificativa (p. 59). Gostei das abordagens sobre decoro, estilo de vida, entendimento, emoção e gosto. Ele também deu dois critérios ótimos para avaliarmos a boa arte: a força descritiva e a carga de significado (então, não precisaríamos estar submetidos ao escopo da “beleza”? Algo a se responder). Quero aprofundar nessa questão do estilo (ver minhas leituras de Pamuk). E, por fim, atentar às qualidades do artista. Livro pequeno, mas fundamental.

            Fábio Ribas

sábado, 13 de janeiro de 2024

Rookmaaker - arte e mente cristã (II/2024)

 

    “Para muitos europeus cultos, a arte cheia de beleza e grandeza das conquistas passadas do ser humano era um substituto à religião. Para uma minoria influente e altamente intelectual, a arte tornou-se um palco de fúria e descontentamento, especialmente após o fracasso da Segunda Guerra Mundial e o colapso da confiança em uma ordem moral duradoura. Em ambos os lados do Atlântico, a igreja, desafiada por uma nova sociedade e não totalmente confiante em sua identidade, muitas vezes fechou os olhos e ouvidos à cultura, ignorando as tendências ou ficando na defensiva” (p. 14).

    As páginas iniciais de “Rookmaaker - arte e mente cristã”, Laurel Gasque, são sobre os avós e pais do biografado. Sua infância e suas tantas idas e vindas com sua família, sempre mudando de casa e país por causa do trabalho. Rookmaaker nasce em 1922. Hans, em sua juventude, apaixonou-se e ficou noivo de Hendrika Spetter, uma judia. Contudo, ela e toda sua família - menos 1 irmão que estava viajando - foram mortos pelos nazistas em Auschwitz. Que horror!

    No capítulo da conversão, vemos que essa se dá durante os anos sombrios da Segunda Guerra. Como prisioneiro, ele lê vários livros, mas passa a pensar seriamente em ler a Bíblia. Lendo-a, entende que ela é a verdade de Deus sobre o homem. Logo escreve dois livros. Um sobre os profetas do AT e outro sobre estética e música. Mas é na amizade com um cristão mais velho e maduro que Rookmaaker se desenvolve e descobre Dooyeweerd. Quando Rookmaaker retorna, ao terminar da guerra, ele enche a cidade com panfletos na busca por sua amada. O que ele não sabia era que ela e sua família já estavam mortos.

    Que personagem fascinante! Um pecador, alguém que possuía muitas limitações como pai, mas que soube dar o seu melhor na educação de seus filhos. Todavia, o mais impressionante, Rookmaaker era um cristão apaixonado pela arte. Sua maior paixão era a música, especialmente blues, jazz e spirituals. Foi um pioneiro no estudo da arte moderna e especialista na arte dos séculos XVI e XVII também. Abriu um grupo de apoio aos alunos cristãos na Universidade. Apoiou o Labri de Francis Schaeffer. Investiu nos seus estudos da História da arte. Enfim, viu na sua carreira uma oportunidade de estudar a arte sob a ótica calvinista.

    O legado de Rookmaaker é mostrado no último capítulo: calvinismo e arte, um diálogo que ele traçou em sua vida. Uma curta vida: faleceu com 55 anos. O legado de Rookmaaker se expressa na rede de relacionamentos que ele cultivou. Mas há algumas características, organizadas pela autora, Laurel Gasque, que me chamaram atenção: 1) sua modéstia e falta de pretensão: seu desejo era servir à igreja e a Cristo; 2) seu amor pela vida total (música, artes, boa comida etc); 3) discernir os dons e talentos dos jovens e incentivá-los; 4) ser mentor dedicado; 5) um construtor de pontes entre a erudição e o trabalho dos artistas; 6) trabalhou arduamente para resgatar a arte para a fé cristã; 7) seu compromisso em pensar e viver como cristão no mundo. Um último ponto maravilhoso é a lista enorme de sites, que a autora oferece no final do livro, de pessoas e instituições que receberam a influência de Rookmaaker.

    Os dois capítulos essenciais para futuros estudos são os 3 últimos: “amizades”, “paixões” e “legado”.

    “A partir do momento em que se abriu plenamente para abraçar uma fé bíblica em Jesus Cristo, entrou em uma missão que o motivou até seu último suspiro. A luz derramada em sua vida pela verdadeira Luz do mundo iluminou sua visão e o imbuiu de um imenso chamado para ser plenamente humano em um mundo criado pelo Deus vivo, de acordo com sua rica realidade. Essencialmente, o objetivo de Rookmaaker era compartilhar essa plenitude de vida com os outros, não de uma forma redutora ou unilateral, mas de maneira que refletisse a complexidade e completude do amor de Deus que sustenta a criação” (p. 27).

                                                                                Fábio Ribas

A obra de arte como acesso ao mundo do artista e ao artista-no-mundo (ou "Por que devemos comer com os pecadores?")

 


"…a arte se nutre de toda a civilização de seu tempo, refletida na irrepetível reação pessoal do artista e que nela estão presentes em ato os modos de pensar, viver, sentir de toda uma época, a interpretação da realidade, a atitude diante da vida, os ideais, as tradições, as esperanças e as lutas de um período histórico" - Luigi Pareyson.


    Em tempos pós-modernos, não há como negar que "alguma coisa" sempre será arte para alguém, assim como haverá alguém para quem uma verdadeira obra de arte será tida sempre como coisa alguma.

    A questão da arte é complexa e, sem dúvida, não pretendo esgotá-la e muito menos resolvê-la aqui, mas o que constato no Brasil, nestes últimos anos, é que a arte vem sendo discutida sob os mais diferentes pontos de vista, seja o ideológico, o sociológico e, até mesmo, o filosófico. Todas essas perspectivas podem ser encontradas nas discussões em praça pública. Então, apresento um pouco da minha abordagem nas aulas de Comunicação Transcultural e Contextualização para missionários que devem atentar a esse importantíssimo dado que o Campo lhes oferecerá para a sua compreensão do outro.

    Acredito que o missionário transcultural deve se valer de duas ferramentas fundamentais para o entendimento de qualquer cultura: a semiótica (que aqui a apresento como a ciência que estuda os signos nas linguagens humanas) e a religião (ancorando-se nos estudos da Antropologia Cultural).

    A partir da semiótica, é preciso que a obra de arte seja entendida, antes de tudo, como um elemento de comunicação, que, como tal, possui mensagem, seja esta consciente ou não por parte de quem a produz. Assim, a obra de arte, antes de ser julgada como arte ou não, exigirá tanto do leigo como do crítico uma aproximação antes de quaisquer avaliações. Ao lado da semiótica, a segunda ferramenta necessária ao missionário transcultural é a perspectiva da sempiterna religiosidade humana. Acrescento-a como elemento de reflexão, uma vez que aquilo que nossa sociedade hoje tem como arte, como referência histórica da arte, como algo já estabelecido no cânon da crítica, a arte greco-romana, por exemplo, são obras que, na maioria das vezes, refletiam a religião daquele tempo.

    Mesmo que possamos nos afastar da arte greco-romana e buscarmos outras referências como as pinturas rupestres da Austrália, o elemento religioso é preponderante ali. A crença expressada naquelas pinturas revela que a maioria delas foi feita com o objetivo de aumentar a população de caça da região. Mesmo a arte mesopotâmica não foge dessa representação espiritual, tanto em representações bélicas como na da vida cotidiana, uma vez que a sociedade era teocrática. Quem, um dia, se surpreenderia ao descobrirmos finalmente que os geoglifos de Nazca são expressões artísticas com finalidades espirituais de sociedades profundamente religiosas?

    Uma abordagem "clássica" ou "conservadora", denominada também de "tradicional", tende a não se aproximar de nada que não caiba de antemão num conceito pré-fabricado de Belo. Podemos entender isso também como uma estrutura apriorística e que dá a essa abordagem um aspecto filosófico normativo, mas que mais afasta do que permite acesso, uma vez que já avalia tudo o que não entra nesse esquema definido (ótimo para conservadores, mas que não é suficiente para cristãos que querem apresentar as Boas Novas do Evangelho). Do outro lado dessa discussão, temos a aproximação marxista, materialista e que, tantas vezes, opera um reducionismo pelo viés economicista, tornando esse, então, determinante para a avaliação da obra, eliminando a individualidade e pessoalidade do artista na obra. Uma terceira abordagem - new critics - pregada por tantos teóricos acerca da "impessoalidade" da obra artística, que retira dela qualquer traço de intenção sentimental, também não deverá ser levada em consideração para os objetivos deste texto.

    O acesso à obra, portanto, deve partir daquilo que ela é: um elemento da comunicação. E, como tal, há um artista, um obrador, um formador de um lado, e, do outro, há o interprete, seja leigo, seja acadêmico, aquele a quem se apresenta a obra como mensagem, seja uma obra considerada como artística ou não.

    E no estudo da história da arte é sempre natural que indaguemos: aquilo que se apresenta como "arte" nos dias atuais teria perdido sua expressão "religiosa" ou o que temos visto na mídia, nos museus, nas apresentações em praça pública e nas Universidades país afora são também a expressão da espiritualidade do nosso tempo? Quero apostar que sim! A arte, a expressão artística, ou, usando uma palavra que eu gosto muito, a artisticidade, ela está em certa medida presente em todos nós, em todo o ser humano: o germe, o potencial para obrar, formar, fazer. Enfim, o ser humano, em qualquer cultura, língua, sociedade, tempo e lugar está produzindo formas o tempo todo (ou ressignificando-as como ocorre com a proposta de Marcel Duchamps, "A fonte", na imagem que abre este ensaio). A questão aqui é diferenciarmos o que seja, em todas as formas que criamos, arte daquilo que consideraríamos, portanto, mero artesanato.

    Todavia, como já disse, antes de quaisquer avaliações simplistas e abruptas, ou, no caso do missionário transcultural, qualquer avaliação sob o "meu gosto pessoal e sob a minha formação estrangeira" deverá ser evitada, caso queiramos aprender o que o outro tem a nos ensinar. Como devo me postar diante de uma obra de arte e o que ela teria a me ensinar sobre si mesma, o artista e a cultura - deve ser o esforço da nossa formação que, sem sombra de dúvida, passa pelo enfrentamento de todo etnocentrismo que carregamos.

    Precisamos de um ponto de partida em meio a tantas opiniões leigas e teorias acadêmicas para não cair na mera questão do "gosto" e do "sentimento". Por isso, rejeitei, pelo menos no primeiro momento, o esquema normativo e dogmático da abordagem clássica e tradicional, uma vez que essa tende a me afastar daquilo eu quero, como cristão, que é compreender o outro; também desconsiderei a abordagem reducionista e econômica do marxismo, uma vez que essa apresenta um esquema que se torna ambíguo na relação da individualidade do artista e da sociedade da qual ele faz parte; e, finalmente, pela mesma razão, a de não entender a obra de arte como elemento da comunicação, não opto pela abordagem do new critics e quaisquer outras semelhantes.

    Os meus pontos de acesso são abertos pelas ferramentas da semiótica e da religiosidade. Esta me é dada pelo próprio testemunho da História e aquela me permite acessar a mensagem do artista na obra, acesso não apenas à pessoa dele, mas à sociedade, ao grupo, ao tempo e lugar em que ele se insere.

    Olhemos para a obra. Então há um obrador, um formador, alguém que operou sobre aquilo para dar forma, seja uma pintura, escultura, música, etc. Quem é esse que dá forma? É um individuo que se dobra sobre o seu material com fins de um resultado e esse "formador" se envolve em seu ofício, ou melhor, se entrega por completo no processo formador. Em toda obra de arte se encontra seu artista, do mesmo modo que encontramos nos filhos algo de seus pais. Mas a marca, a especificidade do artista, que denominamos "estilo", é aquilo que define a ação dada à obra e que nenhum outro faria da mesma maneira, é o que garante discernirmos esse artista individual e sua pessoa. O estilo é o corte, o jeito, a personalidade do artista, que recai sobre sua obra e que dá a ela características singulares advindas da própria pessoa do artista, esteja ele consciente disso ou não.

    Olhemos para a obra como elemento de comunicação do artista. Ela revela seu artista, mas também traz, além da individualidade do artista ("pensamento, moralidade e artisticidade", como nos dizia Luigi Pareyson), a impressão da História e da sociedade das quais participa esse artista e sua obra.

    Em outras palavras, obra alguma é neutra.

    Ela é um elemento da comunicação e nela encontramos o emissor e sua formação no mundo. A obra, como diria Pareyson, surge-no-mundo, resume-o-mundo, e, às vezes, julga-o-mundo. A arte é o acesso ao mundo do artista no mundo. E é muito interessante quando notamos que Jesus e seus discípulos, para ficar apenas no universo do Novo Testamento, compreendiam isso que está sendo exposto aqui, uma vez que observamos o recurso das parábolas escolhido por Jesus em sua comunicação; a escolha feita pelo gênero literário "evangelho", tão acessível ao mundo helênico; a relação de Paulo com a arte do mundo pagão; e a escolha de João pelo gênero "apocalíptico", comum não apenas no seu tempo, mas também na história recente da cultura judaica daquele período.

    Do outro lado da obra de arte está o interpretante, que será sempre muito mais do que um mero receptor, do que um simples passivo diante de uma obra e seu artista. Assim como o artista carrega em si sua própria pessoa e o mundo, o interpretante também. Todavia, o missionário deve escapar, pelo menos num primeiro momento, de uma abordagem política, econômica ou ideológica quando o seu alvo é a evangelização, a apresentação da mensagem da salvação, o Evangelho que é Cristo. A música, a pintura, a escultura, o artesanato, a literatura, a dança, entre tantas outras expressões devem ser tratadas pelo missionário como acesso ao outro, como revelação do outro e seu mundo, pois a obra humana é também uma mensagem do mundo para a Igreja. É na obra que o mundo está falando conosco. Semelhantemente, Jesus é a mensagem de Deus à Igreja e ao mundo perdido! A pessoa de Jesus revela o Artista. Jesus é a mensagem do Pai, é a Palavra de Deus, obrada, formada eternamente, mas que, de uma maneira muito especial, foi engendrada na forma humana de modo a não se perder a Pessoa do Cristo na humanidade adotada em sua carne. O Artista divino lutou contra Si desde o mistério da encarnação - como o artista se lança incansável sobre a matéria a que pretende dar forma (forma que já existe antes de sua concretude na obra) - para que a carne que Ele assumiria fosse uma expressão humana da divindade sem deixar de ser humana e sem que Jesus deixasse de ser divino também.

    O mundo criado é a obra de arte da Santíssima Trindade, todavia, por causa do pecado que entrou no mundo e do pecado na natureza dos interpretantes, que somos nós, a Criação é insuficiente para nos revelar o pensamento, a moralidade e artisticidade do Ser divino. Podemos apreender pela Criação a existência de um Criador, uma inteligência por trás, um Obrador, um Formador, o Figurador que torna possível que criemos também nossas formas. O Ser de Deus, porém, seu Caráter, sua Salvação e Santidade é possível a nós tão somente por meio de Jesus, o Filho, a obra de arte máxima de Deus e que nos é oferecida em amor pelo Espírito Santo, que é o único capaz de nos dar as condições necessárias para admirar a beleza que há no Filho e na Sua mensagem. Não há como negar que Jesus, como obra de arte, é a interpretação eterna de Deus sobre Si mesmo oferecida a nós.

    Por tudo isso, quando nos postamos diante de uma obra de arte, precisamos entende-la como um elemento da comunicação: a obra é um livro que devemos abrir para compreender o mundo e sua cosmovisão. Há uma narrativa em toda obra - é a história de como o artista deu forma a ela. E o esforço missionário para compreendê-la, manifestará a personalidade do próprio missionário - uma personalidade santa e compassiva diante do mundo perdido.

    A arte, ou melhor, a obra de arte, concordemos com ela ou não, encaixe-se ela ou não em nossos esquemas estéticos, é o acesso que temos para o mundo-do-artista-no-mundo, seja em nossa própria cultura ou em outra cultura. Muito ouvimos falar no papel da língua como "chave para a compreensão da cultura", mas, evidentemente, a linguagem é muito maior do que a língua. E o que temos é que a língua, que também possui os elementos de pensamento, moralidade e artisticidade a ponto de, nas mãos do artista pode ser trabalhada na forma de uma verdadeira obra de arte, mas que no seu uso ordinário pouco ou quase nada nos revela da cultura profunda de uma sociedade. E nada disso tem a ver com escolarização ou não dos envolvidos no processo de comunicação, pois tenho em mente tanto poetas como Vinicius de Moraes e João Cabral de Melo Neto, como também os artistas de circo mambembe e os músicos "iletrados" da literatura de cordel.

    O nosso plano missionário imediato não pode ser o de irmos de encontro ao mundo, mas de irmos ao encontro dele para, compreendendo-o no seu contexto cultural diverso do nosso, podermos não apenas explicar as razões do Evangelho, mas também as incoerências do mundo em que o artista está inserido - sua pessoa, obra, sociedade e história. Só podemos nos posicionar assim se for a partir de uma aproximação sincera e cautelosa, porque a obra de arte é um elemento de comunicação e também uma expressão religiosa da espiritualidade do nosso tempo. O missionário precisa ser sensível para identificar na cultura - em toda e qualquer cultura - tanto a beleza de Deus como a feiura do nosso pecado!

    Precisamos ser mais específicos na apresentação da nossa arte, que é Jesus Cristo que nos foi dado pelo Pai, pois o mundo que nos cerca não pertence ao universo bíblico e também não está inserido em nossa cultura judaico-cristã. Precisamos compreender que o trabalho de evangelização e discipulado da Igreja, que avança na História sobre culturas cada vez mais diversas dos tradicionais pontos de contato como a língua, a cosmovisão teísta e a cultura judaico-cristã, enfim, esse trabalho da Igreja sempre foi muito mais complexo do que o realizado por Jesus diante da cultura à qual ele se identificou. Na maioria das vezes, Jesus pregou a pessoas que falavam a sua língua e que conheciam as histórias do Antigo Testamento! Daí Jesus dizer que faríamos coisas muito maiores do que as que Ele fez, pois, uma vez fora do contexto histórico-cultural da Palestina, a Igreja sempre precisou criar acessos, pontos de partida e contatos que Jesus e os discípulos não precisaram fazer, na maioria das vezes, em sua geração.

    Quando Jesus e Paulo fizeram suas incursões em terras estrangeiras, ainda assim compartilhavam com seus interpretantes a cultura comum do helenismo. Paulo passeou entre as formas, esta organicidade da espiritualização de Éfeso, fazendo o dever de casa de perceber as vozes daquela cultura estranha ao mundo judaico, para, então, responder aos anseios propostos pela própria arte dos gregos espalhada na cidade. Nossa crítica e nossa resposta ao outro, primeiramente, deve se fundar não na reação, mas em nossa aproximação, afinal de contas, é isso o que significa dizer que "Jesus comia com os pecadores"!

    Imagens usadas neste post:

1 - "A fonte", Marcel Duchamps;

2 - "Friso do Partenon", artistas desconhecidos;

3 - "Pinturas rupestres de Ubirr", Parque Nacional Kakadu, Austrália;

4 - "Estatueta de cordeiro num bosque", artista desconhecido, British Museum, Londres, Reino Unido;

5 - "Linhas de Nazca (Beija-flor)", artista desconhecido, Peru.

                                                                    Fábio Ribas


Publicado também em 31 de março de 2020.

sábado, 6 de janeiro de 2024

Sal da Terra em Terras dos Brasis (I/2024)

 

    “Como vemos e somos vistos na cultura brasileira” é o subtítulo deste maravilhoso livro de missiologia, “Sal da terra em Terra dos Brasis”, de Rev. Wadislau Martins Gomes, mas não de uma missiologia “departamental”, estanque ou vista como “um braço da Igreja”. Mas, Igreja, qual é a missão que Jesus lhe comissionou?

    Rev. Wadislau foge dos mitos e lugares-comuns da atual missiologia, cada vez mais contaminada por um viés ideológico, e expõe a idolatria do “ide” que tem levado a obra missionária a um pragmatismo, ora romântico, ora triunfalista, do “ir” cada vez mais longe, enquanto a Igreja Local se distancia do ensino bíblico de que muito mais importante do que simplesmente “ir” é COMO “ir”. Assim, mais do que nunca, acho que também posso dizer isto após a leitura do livro: é preciso que a Igreja aprenda a como FICAR.

    Identifico, como professor de Comunicação Transcultural para missionários brasileiros, que a energia investida para se comunicar com uma outra cultura tem sido inversamente proporcional ao esforço de se compreender a própria cultura brasileira na sua mais rica variedade étnica, social, etária e multicultural. Para mim, esse livro torna-se um bálsamo no meu projeto educacional de fazer com que o missionário entenda que, se ele não aprender a fazer uma leitura mais correta e mais precisa das relações humanas dentro de seu próprio país, dificilmente ele aplicará as ferramentas da comunicação à cultura-alvo. É um livro que trabalha com farta literatura nacional brasileira e ensina o leitor-missionário a ser sensível e atento à voz artística do nosso povo em todas as suas expressões. A produção artística precisa ser levada em conta no Campo Transcultural, pois a música, a poesia, os mitos, a pintura, a escultura e, entre tantas outras coisas, até mesmo a produção acadêmica dos próprios nacionais (quando houver) — aprender a ver como eles veem a si mesmos — tudo isso nos ensina a compreendê-los. Mas, antes de tudo, defendo que é aqui, em sua própria cultura, país e língua que o missionário transcultural precisa fazer o dever de casa de treinar o que pretende fazer “lá fora”.

    A missão da Igreja é glorificar a Deus onde quer que ela se encontre. A Igreja não é chamada para um lugar, mas para brilhar onde quer que esteja. Missão é evangelização e evangelização é cumprir a missão dada por Deus à Igreja. A evangelização não pode estar desassociada do discipulado, de caminhar junto, de andar lado a lado com a pessoa que Deus tem nos dado para ouvir, ver e compreender da nossa boca e da nossa vida a beleza evangélica da mensagem salvadora. Aliás, o tema da beleza perpassa toda a exposição do Evangelho feita nas 551 páginas desta obra que, muito mais do que ser lida, precisa ser estudada. A mensagem evangélica total deve atingir inteiramente a vida do evangelizado. Os subtemas abundam diante dos olhos do leitor: “Beleza ou feiura são coisas do coração”, “O ambiente da vida cristã: a beleza de Cristo na face da Igreja”, “Cristo em nós e nós em Cristo: um ambiente de beleza” etc. Destarte, é necessário que o trabalho evangelístico da Igreja se veja como uma ação de aconselhamento, pois “evangelização é aconselhamento e aconselhamento é evangelização”.

    Eu e você, Igreja do Senhor, precisamos retornar ao Evangelho e compreendermos “as novas do Reino” (parte 1 do livro), que precisam ser manifestadas ao outro por meio de uma “fé arrependida”, que caminha diariamente em santidade, e apresenta as bases claras do Reino (parte 2) sem evangeliquês e firmadas numa exegese correta sobre o texto de Mateus da Grande Comissão. O programa de avanço missionário da Igreja é a própria vida diária da Igreja onde quer que ela esteja, por isso é preciso voltar aos temas da natureza da Igreja, seu propósito, finalidade e vocação. Sem um correto entendimento do que é Igreja, corremos o risco de nos perdermos na nossa relação com a cultura secular e condenarmo-nos também a uma visão ideológica da ação social (parte 4).

    Por fim, Missão é instrução, comunhão, adoração e serviço. Sua mensagem deve ser cristocêntrica, pregar a obra completa de Cristo, sua encarnação, sua vida de obediência, a morte vicária, ressurreição e ascensão!

    “Sal da Terra em Terras dos Brasis” ainda nos presenteia com um estudo acerca dos dons do Espírito Santo, sua função e finalidade. Contudo, o que, especialmente, chamou-me a atenção é a ênfase que o livro dá ao tema da comunicação, mas não qualquer comunicação, a nossa comunicação é evangelizadora! Além do tema da comunicação, surpreendeu-me encontrar na obra um verdadeiro “modelo” para multiplicação de Igrejas. Ora, missão não é fazer discípulos? Discípulos não formam igrejas? Igrejas não são plantadas para resplandecer no mundo a face de Deus? Então, você encontrará neste livro um modelo de plantação de igreja desafiador para que nossas igrejas locais se multipliquem, ou melhor, sejam transplantadas!

    Enfim, surpreende-me que a 1ª edição desse livro seja de 1984 (houve uma 2ª edição em 1999 e, posteriormente, uma 3ª aumentada e revisada no ano de 2014)! O que eu quero dizer é que as ideias que teriam amadurecido e evitado que a Igreja Brasileira tivesse cometido tantos equívocos nas últimas duas décadas estavam à disposição, mas será que ninguém leu este livro? Será que nossas lideranças, nossos seminários, nossos professores nunca tiveram acesso às exposições feitas aqui neste livro? Você deve ler este livro.

    “Sal da Terra em Terras dos Brasis” é um livro que me assombrou por várias razões. Primeira, o autor foi meu primeiro pastor, assim que fui regatado do Império das Trevas. Segunda, embora o autor tenha sido meu pastor por apenas 2 ou 3 anos, os temas sobre os quais escrevi e dei aula nestes anos todos coincidem com os que li aqui nesse livro. O que me fez perguntar, durante a minha impactante experiência de leitura, se a influência do Rev. Wadislau foi tão marcante em mim a esse ponto! Terceira razão, a leitura deste livro me serviu não apenas para confirmar que muitas das coisas que vinha defendendo são realmente bíblicas (embora nem sempre aceitas pelas igrejas de hoje em dia), mas serviu-me também para proteger-me de certos desvios que, com a leitura desse livro, consegui perceber na relação Igreja-comunicação-cultura. A quarta razão é poder voltar a ter mais contato com o Pastor Wadislau e sua esposa, a Elizabeth. Por todas essas razões quero não apenas indicar a leitura deste livro, mas trazê-lo à sala de aula das EBDs e Seminários, pois seus temas e exposições são urgentes para a Igreja Brasileira de Fé Reformada, para que alcancemos o prumo certo no tratamento correto do tema de missiologia.

    Estou convencido de que este livro é fundamental para pastores e líderes de Igreja e para aquele missionário que você acompanha e ora por ele. Sem sombra de dúvida, você estará fazendo o melhor investimento possível no ministério de nossos pastores, líderes e missionários presenteando-os com esta obra riquíssima.


Fábio Ribas

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    O texto acima deve ter sido publicado, pela primeira vez, em 2015 ou 2016. Fiz uma leve correção, mas, como me fez bem reencontrar-me com o que escrevi há tantos anos, principalmente neste momento atual do meu ministério. 

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)

Carlos Nejar é um poeta recém-descoberto. Todavia, ele publica vasta e variada literatura desde 1960. O currículo a seguir, retirado de uma ...