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sábado, 20 de julho de 2024

Aquarela (XXIX/2024)


Comentei na Amazon:

“Eu tenho várias razões para dizer o quanto gostei deste livro da Elizabeth Gomes, mas, dentre tantas, gostaria de ressaltar as soluções narrativas que ela apresenta em seu livro. A história linear, vez em quando, muda o foco da narrativa e, não apenas isso, mas adianta fatos (sem entregá-los), que só serão desdobrados depois. Achei muito bom! Um deles, por exemplo, fez-me ficar na expectativa até quase o final do livro, para ver quando que se daria o fato trágico anunciado no “meio da história”.
Personagens reais e muito cativantes. Gostaria de mencionar apenas uma das proezas da autora: se num dos capítulos, ao ler, eu o encerrei dizendo que não perdoaria também a determinado personagem, bastou o capítulo seguinte para que eu desmoronasse em lágrimas e me visse, então, perdoando aquele personagem.
Quem deveria ler este livro? Os cristãos e todos aqueles que precisam compreender o desafio real que muitas famílias missionárias passam ao enfrentar outras culturas. Nesta história, não há super-heróis e nem supercrentes, mas há a Graça e a Providência divina que nos assombram ao se manifestarem na vida comum de cada um de nós.
Obrigado, Beth, por nos dar um presente de imenso valor literário!”.

Contudo, aqui, quero traçar mais algumas linhas abaixo. Acho que poderá ser spoilers para alguns.

Há uma delicadeza na escrita sobre um Brasil que, sinto eu, esteja cada vez mais difícil de encontrarmos hoje em dia. Acompanhamos a trajetória da pequena Miriam, seu irmão e seus pais, esta família de missionários. As frases e cenas que a Elizabeth cria são cheias de sentimento, como, por exemplo, aquela cena da pequenina Miriam convidando a velha senhora para “brincar de igreja” — aquele momento foi lindo!

Frases construídas pela autora e, como eu disse, que são belas e nos fazem ver esse Brasil do interior de Monte Belo, no sertão de Minas Gerais, mas, principalmente, o interior daquela família missionária também. Estamos diante de um Brasil que talvez não exista mais, mas que foi testemunhado por tantas famílias de missionários protestantes americanos que vieram e deram sua vida por nós na primeira metade do século XX. O livro narra sobre uma dessas famílias. A família do Reverendo Donaldo, sua esposa Grace e seus filhos, Miriam e Natã. Enquanto lia, lembrei-me de tantas outras famílias americanas (e de outras culturas) que conheci, famílias de missionários estrangeiros que também amam nosso povo e, muitas vezes, percebi que amavam o nosso povo até muito mais do que eu mesmo tenho conseguido amar.

Preciso chamar a atenção para o que encontrei no capítulo 3, “Bom, mal e normal”, ali, Beth revela-se no melhor da sua escrita humorística. São páginas de uma escrita tão acertada e cheia de alegria, que nos pegamos lendo e sorrindo por todas a páginas. Aquela cena da Miriam cantando o hino “religioso” na igreja americana foi o máximo. Cena digna de filme! E o que dizer, então, da igreja de judeus que cantavam adorando a Deus “só não podiam acreditar em Jesus”! Humor fino da autora, mas vindo da personagem de uma Miriam cheia de gracinha, inteligente, curiosa e esperta. Como missionário, pai de duas filhas que cresceram nesse mesmo mundo colorido de tantas culturas, línguas, raças e de situações financeiras tão diferentes umas das outras, amei aquela reflexão sobre os filhos de missionários americanos, mas que, certamente, se aplica a todos os filhos de terceira cultura mundo afora:

“Esses filhos de missionários não tinham como ficar entediados — de certa forma, eram criados para ser desajustados; diferentes das crianças brasileiras de qualquer classe social e nem um pouco parecidos com as crianças que viviam a vida toda nos Estados Unidos”.

“Criados para serem desajustados” — perfeito!

Miriam está crescendo, mas seu pai, o Rev Donaldo, também está mudando. Alguma coisa não está indo bem com a família. Título sugestivo do capítulo: desmascarado. Como que as coisas se perdem? Como elas saem do controle das nossas mãos desse jeito? Fui pego de surpresa, confesso. Não sabia nada sobre do que se trataria o livro. Resolvi ler por duas razões: estou trabalhando um Mestrado em um dos livros do marido da autora, o Rev Wadislau Gomes, e, segunda razão, li um livro ainda não publicado da própria Elizabeth e gostei muito (além de ter tido o privilégio de também ter lido um outro livro de um dos filhos dela, também ainda não publicado, o Rev Daniel). Enfim, tenho lido livros da família Gomes. Tudo isso, portanto, trouxe-me naturalmente ao livro “Aquarela”. Mas sobre o que é, então, este livro da Beth? Um livro sobre o esfacelamento de uma família missionária? Grace, mãe de Miriam e Natã, está agora totalmente insatisfeita. Rev Donaldo, usando as palavras de sua esposa, é um “irresponsável”. Miriam já começou a reagir negativamente a esse estilo de vida da família: pais ausentes em uma família missionária que não se entende mais e nem busca a Deus juntos. Dos Estados Unidos para Monte Belo, MG; depois, Campinas, SP; foram, então, para Goiânia, capital de Goiás; depois para Brasília e, agora, Curitiba, no sul do Brasil. Uma vida de idas e vindas, entradas e saídas. Contudo, Donaldo abandona a Missão. O que ele quer? Ganhar o mundo e perder sua família? Todo aquele colorido dos primeiros capítulos, toda aquela aquarela do início se desfará, “se descolorirá”, como nos versos do poetinha Vinicius de Moraes?

Miriam está com 15 anos! O tempo passa rápido (e as páginas de nossa leitura também). Capítulo narrando sobre o despertar do amor em Miriam. Ou melhor, o despertar que ela já causa em terceiros. O livro é rico em personagens que são muito bem construídos e o capítulo sobre o primeiro enlace amoroso de Miriam serviu de alívio, uma pausa, uma retomada de fôlego, para o meu coração leitor, que vinha tão angustiado ao ver o desmoronamento daquela família nas páginas anteriores.

A família, contudo, chega ao fundo do poço. Se é um abismo, como indica o título do capítulo, haverá fim? Como uma família cristã, uma família missionária se vê envolvida pela bancarrota financeira e espiritual daquela maneira? Conheci muitas famílias cristãs, famílias missionárias com suas crises, seus profundos desvios. Às vezes, mentiras, infidelidades, filhos extraviados… Porém, não lembro de ter lido um romance que tratasse desses assuntos de forma tão acertada e vívida, como é o caso de “Aquarela”. Meu coração se encanta ao mesmo tempo que se entristece com tudo que vai lendo. Acho que eu sofro ainda mais, por eles serem estrangeiros. Se fosse uma família missionária brasileira sofrendo aqui ou em um país estrangeiros, talvez eu me distanciasse mais da história. Entretanto, conheci muitas famílias estrangeiras no Brasil e acho que sei o quão é difícil para essas famílias abrirem mão de tudo para estarem entre nós, língua e cultura tão diferentes das deles. É muito difícil ver a Grace alimentando sentimentos tão autodestrutivos, enquanto Donaldo perde-se cada vez mais.

Nesta altura da história, a autora começa a usar suas estratégias criativas para inovar sua contação de narrativa para nós. A apresentação do personagem Mauro, a anunciação de uma tragédia envolvendo Miriam e os diálogos que vão saindo de uma cena amorosa para uma cena trágica, tudo isso revela o domínio da autora. Estamos totalmente envolvidos com a história triste de Grace.

O livro chegando ao seu fim e as indagações na minha mente: Como se escreve um livro assim? Rico em detalhes e cheio de personagens humanamente muito bem construídos? Sabemos que uma tragédia ocorrerá, mas ela ainda não se deu (e o livro já anuncia o seu fim — então, como será para Miriam?). E Grace? Eu também não teria perdoado. Ele foi muito irresponsável, cruel e canalha (aquela venda dos quadros e o que ele disse…)! Como terminará esta história? Como terminam as nossas histórias? O que esperar da vida que Deus escreveu para cada um de nós?

Por fim, um livro que também indicaria a tantas famílias missionárias que estão se preparando para sair de suas vidas “em casa” ou que já estejam recém-chegadas em uma outra cultura. Mas também, é um livro que deve ser lido por todo aquele que deseja ser um Conselheiro bíblico para essas famílias. Um livro para educar nossa imaginação e nos ajudar a ajudar a outros na lida de nossa caminhada cristã.

                        Fábio Ribas

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