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quarta-feira, 24 de julho de 2024

Homens ao sol (XXXI/2024)


“Abu Qais repousou o peito no solo orvalhado e a terra começou a pulsar debaixo dele, com batimentos de um coração cansado que faziam tremer cada grão de areia e penetravam as células de seu corpo. Desde a primeira vez, sempre que ele se atirava de peito na terra sentia aquela pulsação, como se o coração da terra forçasse sua difícil passagem até a luz desde as profundezas do inferno. Certa ocasião, ele disse isso ao vizinho com quem compartilhava a colheita na terra que deixara havia dez anos, e o homem respondeu zombando: “É o som do seu coração. Você o escuta quando encosta o peito no chão”. Que tolice perversa! E o cheiro? Aquele que, toda vez que ele sente, ondula na fronte antes de jorrar delirante nas suas veias. Sempre que ele inalava o cheiro da terra, deitado no chão, imaginava o cheiro do cabelo de sua mulher ao sair do banho, depois de lavar a cabeça com água fria. O mesmo cheiro… uma mulher que acabou de se banhar com água fria e lhe cobre o rosto com o cabelo ainda molhado. A mesma palpitação… como se carregasse ternamente um pequeno pássaro entre as mãos”.

Afinal, o que é a terra para um homem? Numa das aberturas de narrativas mais belas que já li, o autor Ghassan Kanafani abre sua novela com um primeiro parágrafo notável. Há um coração nas profundezas da terra e ele bate sobre o meu peito, ritmando com o meu próprio coração, toda vez que me deito sobre a terra. Mas essa aproximação, essa intimidade de se deitar sobre a terra, sobre ela, traz ao personagem a lembrança de sua mulher. A terra pulsa um coração e exala um perfume, o perfume dos cabelos molhados de sua esposa, a quem ele lembra sempre que se deita sobre a terra. O que é a terra para um homem? Vida e paixão! Todo homem, no exercício de sua masculinidade, sabe que “não é bom estar sozinho”. Um dos personagens, um outro, durante a narrativa, revelará ter sua masculinidade amputada. Terra, mulher, tato, odor, masculinidade, esperança, tristeza, memórias, decisões, estes são apenas alguns dos temas tão humanos abordados nesta pequena novela. 

Abu Qais, Assad e Marwan são três palestinos que tentam sair dessa condição de refugiados, fugindo para o Kwait. O “homem gordo” é um desses “contrabandistas de gente” que leva essas pessoas numa travessia ilegal. O valor cobrado pelo “homem gordo” é inviável para os três. Então, estes três se juntam para serem levados à travessia até o Kwait, passando pelo Iraque, pelo 4º personagem, o Varapau. Há mulheres e homens nesta história. Há o passado, o presente e a promessa de futuro. Mas há também um acordo, que, no fim, pode dar em nada. Esta é a história dos exilados palestinos. Um livro lançado em 1963. Embora eu tenha tido certa dificuldade de entrar na narrativa, talvez um pouco perdido assim como estavam perdidos os três personagens centrais, mas terminei o livro chocado e com vontade de ler outros do autor.

Terminei o livro com esta frase atravessando o meu coração: “Por que vocês não bateram nas laterais do tanque? Por que não disseram nada? Por quê?” Ainda que não queira limitar a literatura de Kanafani a um mero engajamento político (e não quero e não vou), estas perguntas finais ecoam sobre os anônimos e mudos de todo o mundo. Na minha interpretação, houve um acordo dentro do tanque. Se houve uma aposta diante de um futuro esperançoso, mas incerto, houve, então, dentro do tanque, uma renúncia para proteger o Varapau. Precisamos lutar nossas lutas e, conscientes dos riscos de insistirmos nessas lutas, estarmos prontos a não puxar para dentro do buraco os que tentaram nos ajudar.

Quero ouvi-los. Precisamos ouvir o outro. Ainda que estejamos todos sob a maldição da lei e somente em Cristo possamos verdadeiramente nos libertar, mas precisamos nos aproximar para o diálogo, pois, sinceramente, eu creio que haja culpados entre os “inocentes”, assim como eu sei que há “inocentes” entre os culpados.

Ghassan Kanafani foi um escritor e ativista político palestino, cofundador da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Em 1972 foi morto pelo serviço secreto israelense. Ele tem três livros editados pela Tabla, este, o “Umm Saad” e “Retorno para Haifa”.

            Fábio Ribas

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