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sexta-feira, 12 de julho de 2024

Meu filho Dahmer (XXVI/2024)


Assisti esta semana à série “Dahmer”, da Netflix. Recordo-me de ter sido uma série muito comentada durante seu lançamento e também lembro de toda a publicidade em torno das atuações, da direção e produção. Havia também a expectativa de toda violência na recriação dos crimes cometidos por Jeff Dahmer. Isto, certamente, manteve-me longe de assisti-la por todo este tempo. 

Como seria de esperar, saíram vários vídeos e reportagens mostrando o que era fidedigno e o que era “licença poética” ao que nos foi oferecido como resultado final. A atuação do jovem que fez o personagem principal foi comentadíssima. De fato, Evan Peters está muito bem assentado ao terrível “canibal de Milwaukee”. Não foi nem o primeiro “psicopata” que o ator interpretou, assim como não foi a primeira vez que assisto e leio sobre assassinos em série. Contudo, sempre aguardo “a poeira baixar” para, então, avaliar se devo ou não assistir/ler essas histórias badaladas na mídia.

Há uma fascinação sobre como essas pessoas — nossos semelhantes — são capazes de chegar ao ponto que chegam. O primeiro livro que devo ter lido sobre assassinos em série foi o excelente “Mentes perigosas — o psicopata mora ao lado”. Aliás, é um livro que, volta e meia, comento, pois fez parte da minha caminhada cristã missionária e ajudou-me a entender e também a me proteger de psicopatas (manipuladores emocionais e espirituais) que nos cercam. Acho que nunca resenhei esse livro da Dr.ª Ana Beatriz Barbosa Silva, mas a esse seguiram outras leituras de outros autores: “Lady Killers”, “Anatomia do mal”, “Made in Brazil” (este é um volume único com dois livros da Iliana Casói) etc. Assim, de memória, lembro desses que são todos da Editora “Darkside”. Nossa literatura de ficção e não ficção é recheada de mergulhos na alma humana. O que só demonstra como o tema do lado escuro da nossa natureza nos fascina. 

Para mim, entre tantas qualidades alardeadas sobre a minissérie “Dahmer” (embora, não nego, tenha passado para frente as cenas que julgava desnecessárias ou até panfletárias na série — viva o controle remoto!), a melhor foi a atuação do ator que fez o pai de Dahmer, o Lionel. Fui até atrás para saber se o ator — Richard Jenkins — havia recebido prêmios, mas não consegui achar nada. Um personagem verdadeiramente dramático, complexo, cheio de crises, dúvidas e indagações; enfim, um personagem dificílimo de trazer ao público e que me envolveu totalmente. Por que parava o controle remoto sempre que esse personagem aparecia? Além da atuação estupenda, é a história de um pai e eu também sou pai. Aqui, este é um ponto de contato, mas não foi o único e nem o mais profundo.

Lionel é o pai de Dahmer. O que é ser um pai de um assassino em série? Mas não é isso apenas. Lionel se questiona sobre a participação (ou sua negligência) dele para a formação “disso” que ele vê aparecer em seu próprio filho. Acredito que qualquer pai ou mãe, num momento em que todos esses detalhes macabros e bizarros sobre próprio seu filho venham à tona, indague sobre o mesmo que Lionel e, mentalmente, repasse todos os detalhes de sua vida para encontrar sua responsabilidade nisso tudo. Todas essas questões, muito naturais e humanas, são levantadas por Lionel. Contudo, e aqui está o ponto, há uma outra questão específica que me surpreendeu e me fez comprar o livro “Meu filho Dahmer”: Lionel se identifica com seu filho, e não estou falando sobre um pai que vê a si mesmo em seu próprio filho; Lionel se identifica com o lado sombrio do próprio filho. Quantos de nós temos a coragem de nos sondar para ver nossos próprios caminhos maus? Na maioria das vezes, os maus existem, tão somente, para que nós nos coloquemos do outro lado da linha, pois nunca faríamos o que eles fizeram. Esta reflexão nos leva ao centro do Sermão pregado por Jesus Cristo (Mt 5,6 e 7): não fazemos, mas pensamos, desejamos, intencionamos e, até mesmo, invejamos os que fazem!

Há duas cenas sensacionais nesta história. A primeira é Lionel em crise dizendo que seus genes tinham contaminado seu filho, pois metade do que havia em seu filho tinha vindo dele. Então, a personagem de sua segunda esposa, a Shari, segura suas mãos e olha em seus olhos dizendo que isso não era verdade, pois havia um segundo filho do primeiro casamento, irmão de Dahmer, que era um menino comum e que não apresentara nada daquilo que aconteceu com Dahmer. A segunda cena não está na série, mas no livro de Lionel. Poderíamos pensar que Dahmer fora afetado pelos tantos e tantos remédios que sua mãe usara em sua gestação, uma gravidez difícil e conturbada. Todavia, no livro, ficamos sabendo que, em sua segunda gravidez, houve as mesmas dificuldades e, portanto, o uso de medicações fortíssimas repetiu-se novamente. E o irmão de Dahmer nunca manifestou nenhuma natureza macabra. Essas duas cenas vão ao encontro de quaisquer pais que se indagam, afinal, qual sua responsabilidade na desenvolvimento de um monstro. Queremos uma explicação: os genes ou o uso de drogas? A criação infeliz, um lar conturbado, alcoolismo, o diabo etc, queremos explicações, mas elas não aparecem tão facilmente. Outra cena para servir como a “pá de cal” nessa busca por explicações simplistas é aquela em que o juiz decide pela destruição do cérebro de Dahmer, ao invés de doá-lo para pesquisa médica. Já haviam feito isso com o cérebro de outro serial killer e o resultado dera em nada. Todavia, além de uma busca vã, há um perigo nessa busca. Caso se encontrasse algo (uma mancha, um tumor etc), isto significa que todo cidadão com essa manifestação física cerebral seria um serial killer? A tendência é que uma informação como essa na mão do Estado e da sociedade redundaria numa seleção nazista de cidadãos, que deixariam de ser tratados como iguais perante a lei. Enfim, não há respostas claras, definitivas e simples para situações como a de Dahmer.

Desde a série, Lionel é, para mim, de longe, o personagem mais interessante. Suas lutas, suas dúvidas, suas falhas são extremamente humanas. Identifiquei-me com Lionel, pois ambos somos pais. Somos filhos e somos pais. E estes são os dois eixos em torno dos quais gira a trama do livro: o que herdamos e o que repassamos adiante. Há muitas indagações e Lionel sempre nos coloca sobre sua responsabilidade, até mesmo genética, naquilo que fez de seu filho quem ele foi. O livro é uma confissão sincera, uma tempestade de ideias em busca de respostas, mas, surpreendentemente, é um livro muitíssimo bem escrito. Li o livro em menos de dois dias!

Lionel se identifica com Jeff em todos os momentos. Em nenhum momento, as palavras de Lionel são usadas para se escandalizar pelos crimes hediondos do filho, colocando-os em polos diferentes (o bem e o mal). Lionel se coloca do mesmo lado que o filho. Há uma foto, emblemática no livro, logo em suas primeiras páginas, é a foto de sua mão adulta apoiando a pequenina mão de seu filho. É uma foto que anuncia a caminhada de Lionel com Jeff. Mas, muito além do apoio, há a identificação: Lionel não esconde a parte escura de sua própria natureza. Ele recorda que também já teve vários desejos insanos e, até mesmo, a vontade de matar. Ele reconhece em sua própria natureza o mesmo anseio por controle e domínio que seu filho também buscava ao tentar imobilizar, dominar e se alimentar de suas vítimas. “Somos todos depravados em nossas naturezas”, esta é a tese que vejo em Lionel Dahmer.

“O quanto eu estava perto de trilhar o mesmo cami nho que Jeff? Será que foi a diferença de escolhas que fiz ou deixei de fazer, ou será que foi apenas boa ou má sorte genética? Nunca saberei, mas não consigo deixar de me perguntar se meu interesse por hipnose ou pela fabricação de dispositivos explosivos não era algo além da fascinação de um garoto pelo desconhecido. Quando passei fios desencapados pelo sofá da nossa sala de estar para causar um choque elétrico nos meus primos, será que fiz isso apenas para pregar uma pegadinha? E quanto à minha necessidade de controle? Será que todas essas coisas, e muitas outras, nada eram além de pensamentos e comportamentos normais de uma criança ou havia ali sinais precoces de algo perigoso dentro de mim, algo que poderia ter se ligado à minha sexualidade, e, ao agir assim, teria me transformado no homem que meu filho se tornou?”, p. 197.

Antes de tudo, “Meu filho Dahmer” é sobre uma jornada espiritual. Um reencontro com o Único capaz de redimir toda e qualquer mancha, nódoa, abismo e tenebrosas trevas de nossa natureza humana corrompida pelo pecado. Um livro que, muito além de nos falar sobre a podridão da natureza de todos nós, fala muito mais alto sobre o que é a inexplicável, incompreensível, inescrutável maravilhosa graça de Deus em Cristo Jesus!

Uma última cena emblemática na série. Lionel está visitando seu filho na cadeia e este, comentando sua intenção de se batizar, pergunta ao pai se ele conseguiria perdoá-lo. E o pai responde: “Eu vou perdoar você. Eu perdoo você, porque sou seu pai”! Esta frase, para mim, é evangélica na sua essência mais profunda e bíblica. Deus perdoa todos os nossos pecados, porque somos seus filhos. E só podemos ser perdoados, porque o verdadeiro Filho de Deus nos conquistou para dentro de sua própria família. Fomos adotados e, graças a isso, podemos ouvir de Deus: “Eu perdoo você, porque sou seu Pai”! 

Qual a diferença entre o personagem de Jeff e a pessoa de Jesus? Jesus assumiu os pecados meus e os de Jeff Dahmer (crendo que este verdadeiramente foi convertido e se arrependeu de seus pecados, como mostram tanto a série quanto o livro). Naquela cruz, sendo totalmente inocente, Jesus recebeu sobre si a Ira de Deus que deveria vir sobre os meu pecados. Jesus foi acusado de ser um monstro. Ele recebeu a punição pelos pecados que nunca cometeu. Satanás, a antiga serpente, o dragão, estava diante daquela cruz vomitando sobre Jesus todas as acusações que estavam na escrita de dívida contra nós. Jesus derramou seu sangue, para a salvação dos eleitos de Deus. Isto é graça! A graça de Deus! Você a conhece?

        Fábio Ribas

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