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quarta-feira, 10 de julho de 2024

Vivendo em união com Cristo (XXV/2024)


“O que Jesus faria?” ou “Como posso habitar na bondade de Jesus nesta (ou naquela) situação específica?”. Nossa identidade moral cristã tem resultados diretos em nossa ética e, por isso mesmo, Grant Macaskill se dispõe a esclarecer ao leitor as consequências nefastas de uma teologia trinitariana em decadência nos dias atuais. Precisamos de muito mais do que as narrativas dos Evangelhos, assim como nossa ética deve superar e muito a mera imitação de Cristo. 

Um livro que já me prendeu no prefácio:

“Estamos tão comprometidos com o pecado que sempre usaremos os dons de Deus para fins idólatras, e permaneceremos cegos para o fato de que estamos fazendo isso, como o próprio Paulo estava antes de seu encontro transformador com o Cristo ressurreto. As pessoas agirão, pensarão, ensinarão e liderarão de maneiras que sirvam a essa idolatria constitucional e o farão sem qualquer autoconsciência”, p.9

Antes da leitura prazerosa e instigante deste livro, nunca havia pensado no legalismo não somente como apresentação dos meus méritos diante de Deus, mas, como Macaskill apresenta, um sistema que coloca-me num patamar superior espiritual em relação ao meu irmão. Embora a gente veja esse tipo de atitude sempre, nunca pensei em ver essa prepotência e arrogância como fruto do nosso legalismo. Muito bom! E a tese do livro já é apresentada sem rodeios:

“A principal afirmação deste livro é que toda conversa sobre a vida moral cristã deve começar e terminar com a declaração de Paulo “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2.20), e deve compreender corretamente a obra do Espírito Santo em relação à presença de Cristo”, p. 21.
“…a teoria da virtude está preocupada em como podemos nos tornar melhores versões de nós mesmos ao ordenar nossos apetites e instintos, mas Paulo está preocupado em como nos tornamos outra pessoa”, p 57.

O primeiro capítulo é sensacional. Lavou-me a alma, como dizem por aí. É uma crítica às modernas visões sobre Lutero e Paulo. E o maior problema que eu vejo é que essas “novas perspectivas” caem dentro das igrejas locais sem nenhum filtro ou contexto. Erros complicadíssimos saídos de debates acadêmicos muito recentes e que vêm às mãos de leigos que recebem tudo isso, por meio de seus pastores, os quais deveriam zelar pela qualidade do que é oferecido às ovelhas, deixam que elas comam ervas daninhas tóxicas misturadas à pureza do evangelho. E o pior é que isso — essa esquizofrenia teológica moderna de cunho social — é oferecida ao campo missionário também. Não há preparo, não há filtro, não há guia e nem limite, tudo isso é oferecido em cursos de formação missionárias — e nas livrarias de igrejas locais também — como se fosse material devocional! 

NT Wright e tutti quanti são autores modernos que precisam ser questionados urgentemente! Espero que saiamos dessa perniciosa, terrível, moderna e medievalista “ética da virtude” para o puro e simples evangelho da santidade EM Cristo. Este primeiro capítulo é um primor de qualidade! Ao contrário do medievalismo virtuoso da imitação de Cristo (que gerou, até mesmo, aquela versão do “O que faria Jesus?”), a grande defesa aqui é que fomos chamados para a habitação e não para a mera imitação!

“Eu costumava desejar que as pessoas e Deus olhassem para mim, com toda a minha particularidade física, e vissem o quanto eu possuía coisas que declaravam minha posição no Reino de Deus; agora quero que olhem para mim e vejam que meu ser particular está no ser de Cristo, que o que tenho é, na verdade, o que ele tem”, p. 87.

No segundo capítulo, fundamentalmente, precisamos compreender que a vida cristã não é um programa ou discipulado para nos tornarmos uma versão melhor de nós mesmos, mas, antes de tudo, vivermos em acordo com nossa identidade em Cristo. Falamos muito em morrer, a morte do “eu”, mas essa perspectiva é limitada à parte de uma ação que deveria ser melhor compreendida. A morte do “eu” só é assim, porque nos unimos a Cristo, então, não é algo que eu faço, mas é o que Cristo fez em/por mim: habitou-me! A troca de uma espiritualidade de ênfase na imitação por uma de habitação está no centro dessa correção de uma caminhada equivocada. Assim, toda discussão é sobre a minha identidade: eu não sou o que faço (nem mesmo o que faço em Cristo ou por Ele), eu sou o que Cristo fez em/por mim: habitou-me!

“…quando falhamos, nossas falhas envolvem a verdadeira atrocidade de viver contra aquele que vive em nós. São piores porque envolvem uma espécie de negação de quem realmente somos”, p. 126.

No terceiro capítulo, a partir do sacramento do batismo, ele reforçará esta ideia, lembrando que ser batizado em Cristo é revestir-se de uma nova identidade: eu-em-Cristo. O batismo nos coloca em Cristo, Cristo nos coloca em Deus e nos coloca também em uma comunidade que tem só a Jesus como Senhor, assim, precisamos dialogar com amor. Não podemos usar a lei e a doutrina como algo que coloca para fora ou identifica quem está dentro. No batismo, estamos todos dentro e sob essa perspectiva precisamos dialogar sobre nossas diferenças.

“Como o batismo, a Ceia do Senhor realiza dramaticamente o passado de Jesus de uma forma que nos direciona para o seu futuro e afirma que esse futuro também será nosso. A Ceia do Senhor nos lembra, cada vez que participamos dela, que nossa condição moral atual não é nosso estado final. Mais importante, nos lembra que o estado final não será alcançado por meio de um processo gradual de crescimento moral, mas envolverá um outro evento disjuntivo que mudará tudo decisivamente. Ele virá e nós seremos transformados”, p.163.

O quarto capítulo foi profundamente impactante. Fez-me lembrar Paul Ricoeur. O tema da memória é algo fascinante para mim. Mas aqui é trabalhado de maneira magistral, ligando o tema da memória não apenas ao batismo, mas à Ceia do Senhor como uma memória introduzida, não pessoal. A Ceia é uma recordação de algo que não vivi, mas, por ser memória enxertada de terceiros, ela dramatiza e me define a identidade em Cristo. Esta é a MINHA história. Contudo, há duas discussões aqui assombrosas. A primeira é a analogia com o filme Blade Runner, que leva o autor a desenvolver essa perspectiva da “memória enxertada”. O que define a nossa identidade são nossas memórias. No caso, é a memória enxertada pela Bíblia em nós pela santificação do ES! Agora, aquela ideia da “memória coletiva”, social, tudo aquilo foi demais. Se somos o que é definido por nossas memórias, perdemos, então, nossa identidade quando, por exemplo, sofremos do mal de Alzheimer? Ainda que eu esqueça quem sou, o meu irmão e a igreja sabem que sou em Cristo Jesus. Minha memória está preservada na família da Igreja!

“Quem me livrará do corpo desta morte?”. Quando respondemos a essa pergunta corretamente, no meando Jesus Cristo, há esperança e alegria. Fazemos eco da declaração de Paulo “Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 7.25). Encontramos alívio e descanso no conhecimento de que “Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (8.1). Ainda estamos nas ruínas da guerra, e quando nos dirigimos a Deus, nosso Pai, muitas vezes não é com um grito triunfante, mas com um grito de dor de “Aba, Pai”. Mas a guerra está vencida e os sinais dessa vitória se manifestarão em nós com uma beleza e realidade que não podem ser questionadas por nossos fracassos”, p. 188.

O quinto capítulo é um chamado para assumirmos o que somos pela santidade de uma caminhada do Espírito Santo junto conosco! As coisas ficaram definitivamente claras para mim! Nossa identidade com Cristo, nossa luta por mortificação, nosso avançar nEle e a apropriação de nossa adoção, tudo isso tem como chave a Pessoa de Jesus Cristo: Ele é a resposta! É o que Ele fez e o que Ele faz. E jamais sobre o que eu faço ou posso fazer! Que capítulo!

“Na oração, orientamo-nos para aquele cuja identidade esperamos habitar. Mais importante, na oração a dupla subjetividade de nossa nova identidade é corporificada: nós somos aqueles que oram, os sujeitos ativos dos verbos da oração, mas nossas orações são cotestemunhos com o Espírito ou intercessões dele”, p. 203.
“…nossas realidades e as de Cristo não são separadas uma da outra, mas estão ligadas. Nossos sofrimentos são uma participação em seu passado; nossa esperança é uma participação em seu futuro”, p. 203.

O sexto capítulo. O ES está conosco, por causa de nossa união com Cristo. Por causa daquele evento no passado, temos vitória na vitória dEle. Mas temos esperança na habitação do ES em nós. Nossa esperança é que aquela vitória na cruz e na ressurreição tem efeitos hj e no futuro: nada poderá nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus! Isto é confirmado no ES em nós que está junto conosco! Cada vitória de nosso crescimento espiritual é uma vitória nossa junto com o ES. E as derrotas não podem desfazer aquilo que já nos foi conquistado na cruz e na ressurreição. Cresçamos, portanto!

Na conclusão, o autor busca reenquadrar a virtude e a disciplina, mas não como fins em si mesmas, mas como instrumentos na relação pessoal com Jesus. Legalismo e justiça própria são sempre os perigos numa ênfase equivocada da teoria da virtude e da disciplina. Não há mérito em mim nem para a minha salvação e nem para a minha santificação. Na salvação, o ES me regenera, arrancando-me o coração de pedra e me dando um coração de carne. Este, então, é capaz de se voltar ao Senhor! Na santificação, não posso usar da lei para capital religioso e social, deixando as pessoas concluírem que as vitórias na minha caminhada são mérito pessoal, pois não são! É Cristo-em-mim que ordena o meu novo “eu” e, por meio do Espírito Santo, juntamente comigo, leva-me à santidade, mas uma santidade que brota da relação com a Trindade. E como posso crescer em santidade? Fazendo as mesmas coisas que os cristãos fizeram nos últimos dois mil anos — ler e estudar a Palavra, ouvir boas exposições da Palavra, orar, participar dos batismos e ceias, congregar com meus irmãos — e, tudo isso, sendo eu-em-Cristo e Cristo-em-mim! O ES é quem anda, caminha e ora junto comigo (cosubjetividade), o mérito, portanto, não é meu. Sou salvo pois Cristo habita em mim. Sou santificado pois eu habito no Espírito Santo. 

        Fábio Ribas

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