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quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Aconselhamento Intercultural e a Missão da Igreja*



Tenho acompanhado o crescente interesse da Igreja Evangélica Brasileira quanto ao tema do Ministério de Aconselhamento. Isso é perceptível no número cada vez maior de obras traduzidas e publicadas oferecidas ao público brasileiro. Todavia, um amadurecimento e engajamento das igrejas locais numa “cultura de aconselhamento” ainda está muito longe de ocorrer. Ainda que, até mesmo, o “Aconselhamento” já esteja surgindo na grade curricular de alguns Seminários Teológicos, isso não significa que tenhamos um “Centro de Aconselhamento” a partir da difusão da filosofia bíblica do “uns aos outros” nos nossos púlpitos. Assim, esse quadro geral aponta muito mais para os atuais desafios do que para o que poderíamos ter de substancial em nossas igrejas.

Se o quadro geral revela o trabalho que temos adiante na formação de uma “Igreja cuidadora”, imagine o desafio ampliado para o campo missionário em meio aos mais diversos povos da terra. No trabalho missionário brasileiro presente nas mais diferente etnias, tanto no Brasil como no mundo, sabemos que a tendência dos missionários no campo é a de estarem sintonizados com aquilo que a Igreja enviadora está fazendo e pensando no âmbito local. Portanto, não podemos esperar que estejamos vendo coisa muito diferente sendo feita pelos missionários em seus campos de trabalho, quanto ao tema de Aconselhamento. Os desafios transculturais do Ministério de Aconselhamento também são enormes e apenas muito recentemente estão sendo pensados pela área da Missiologia.

Não podemos descartar a realidade complexa de um campo missionário, que sempre tende a multiplicar os desafios apresentados num contexto urbano ou mesmo rural, mesmo aqui em território nacional. Afirmo isso não só por saber que os contextos nacionais não são mais simples do que os trabalhos com diversas culturas, mas, pelo fato, muitas vezes, da liderança das igrejas no Brasil não perceberem a complexidade cultural que suas próprias congregações e obreiros têm enfrentado logo ali no “bairro adjacente”. O que eu quero dizer é que a complexidade cultural no Brasil também é um campo de grandes desafios para a Igreja Nacional, todavia, a formação teológica de nossas lideranças, em muitos Seminários, carece de ferramentas que ajudariam numa leitura e atuação mais precisas da realidade multicultural que cerca nossas igrejas locais.

Com os inúmeros processos migratórios que têm ocorrido nas últimas décadas, o Brasil têm recebido etnias das mais diferentes partes da terra. Soma-se a isso a presença já histórica dos imigrantes na composição de nosso caldo cultural. São japoneses, chineses, coreanos, árabes etc. Enfim, durante muito tempo, no Brasil, pensou-se “missões transculturais” como um movimento para fora de nossas fronteiras geográficas. Dentro de nossa Denominação — a IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil)-, isso se reflete na própria história recente dela. Antes do ano 2000, a IPB contava com a JMN (Junta de Missões Nacionais) e com a JME (Junta de Missões Estrangeiras) como suas frentes missionárias. Todavia, essa bifurcação representa uma filosofia de uma época que não olhava para a nossa realidade multicultural: os diversos povos que já se encontravam em solo brasileiro. Tendo a JMN atuando na plantação de Igrejas nos mais diversos municípios brasileiros, a JME, por sua vez, atuava em tudo aquilo que não fosse “Brasil”. O que uma estrutura assim representa? Que o entendimento do desafio transcultural era algo para missionários que saíssem ao estrangeiro! Mas e os povos residentes no Brasil? Quem trabalharia com eles? Culturas diversas que se encontravam nas grandes e nas pequenas cidades brasileiras, e que não eram levadas em conta nem pela JMN e nem pela JME, pois faltavam estratégias e formação específica necessárias. A criação da APMT, por volta do ano 2000, marca essa mudança de paradigma no entendimento missionário da própria IPB. Assim, seja fora ou seja dentro do Brasil, a nossa Agência Presbiteriana de Missões Transculturais (APMT) abraça todos os trabalhos de plantação de igreja no ambiente missionário.

Tudo o que relatei até aqui é apenas com o intuito de nos prepararmos para a dimensão da obra que aguarda o Ministério de Aconselhamento nas próximas décadas, pois temos conseguido ver que o mundo como um todo está cada vez mais interligado e sem fronteiras “intransponíveis”. A televisão e a internet estão dando a cada um de nós essa consciência global de que a casa da gente é bem maior que o bairro em que a minha residência está construída. Povos têm se encontrado uns com os outros e trocado informações, compartilhando sua visão de mundo numa velocidade e numa escala global nunca antes vista na história da humanidade. Assim, tudo isso trouxe à Igreja a compreensão de que vivemos em sociedades cada vez mais complexas e que, dessa maneira, os problemas transculturais e interculturais, narrados por missionários antes tão distantes e trabalhando em campos tão exóticos, hoje se apresentam a quaisquer igrejas locais onde estejamos nos reunindo no Brasil. Isso tem sido uma mudança drástica! Veja, a própria organização tradicional das sociedades internas em idade e gênero da IPB (UPH, SAF, UCP e UMP) está longe de ir ao encontro da nova realidade geracional que temos. Algumas igrejas locais têm tentado oferecer um novo ambiente para que nossas igrejas estejam mais coerentes com o que as famílias têm enfrentado nos tempos atuais. A estratégia dos “pequenos grupos” (PG’s), que tem a elasticidade de se apresentarem como “grupos de afinidade”, em que, ao invés do tradicional agrupamento por idade ou gênero, possibilita o encontro entre os sexos e a congregação entre pessoas que percebem ter mais pontos em comum e áreas de interesse semelhantes umas com as outras. Isto tudo facilita, indubitavelmente, o estudo e a aplicação da Palavra de Deus num recorte mais vívido e coerente. Se o recorte das gerações anteriores proporcionava agrupamentos mais gerais entre os membros de uma igreja local, atualmente, as tentativas são de pequenos grupos de interesses comuns. Contudo, isso é apenas um exemplo de como nossas igrejas são desafiadas pelo novo contexto que se aproxima delas e como elas têm respondido à geração a que fomos chamados para pregar. E não há como passar desapercebido que uma igreja local de pequenos grupos se torna muito mais propícia a desenvolver com maior sucesso uma filosofia de aconselhamento mútuo, pois as afinidades e interesses são mais comuns, aumentando a compreensão dos problemas que o outro está passando.

Se muitas igrejas locais ainda estão distantes de um modelo que atenda de alguma forma os desafios de comunhão e congregação da sociedade que a cerca, some a isso a realidade cultural complexa que hoje encontramos nos atuais centros urbanos (e certamente nas pequenas cidades do interior do Brasil também). Atente, neste momento da sua leitura, para o fato de que sequer ainda estou falando de outras etnias. Ainda não cheguei lá. Estou me referindo a uma complexidade outra — ainda não étnica — que vem de pequenos outros grupos que poderiam ser melhor alcançados por nossas igrejas. Estou me referindo aos grupos de motoqueiros, caminhoneiros, jovens jogadores de videogame, empresários de um mesmo ramo de negócios afim, comerciantes, professores de universidade etc. São categorias socioculturais! Agora sim, quero acrescentar mais um elemento: as diversas etnias presentes na cidade. Tudo isso nos dá, mais uma vez, o quadro geral enfrentado por nossas igrejas locais e que, dificilmente, vemos nossas lideranças preparadas adequadamente nos Seminários e institutos para darem conta desse caldo multicultural. Daí, mais acima, eu ter trazido à baila o fato incontestável de que os desafios missionários transculturais estão bem à porta de nossas igrejas, mas, infelizmente, a formação acadêmica de nossas lideranças ainda passa longe de ajudá-los no enfrentamento antropológico disso tudo.

Mas e o Aconselhamento? O Aconselhamento é um movimento recente de resgate de uma tarefa que foi terceirizada pela própria Igreja. E se, nos últimos anos, o Aconselhamento possui pelo menos algumas frentes de atuação já conflitantes entre si, o mesmo ocorre com “missões”. Na área do Aconselhamento, podemos identificar pelo menos três escolas e propostas diferentes: o integracionismo, o bíblico e o redentivo — todos se apresentando como cristãos. Interessante notar que o âmago daquilo que as separa é exatamente aquilo que diverge diversos missionários nas áreas de suas atuações antropológicas, a saber: a relação com a cultura. Abraçaremos a cultura sem restrições? Rejeitaremos a cultura por completo? Ou negociaremos com ela? E se negociarmos, quais os limites? Essas três perguntas resumem de maneira simples o que move o debate tanto na Missiologia como no Aconselhamento nas últimas décadas.

Semelhantemente às questões postas acima, vejo o Aconselhamento trilhando um caminho muito semelhante à missiologia, mas com o ponto positivo de dar uma resposta mais adequada, trazendo equilíbrio à antropologia missionária de campo. Refiro-me à tensão “coletivo-indivíduo”, que nas discussões missiológicas sempre tendem muito mais ao coletivo e quase mesmo ignorando o indivíduo. Tudo isso é fruto de uma base missiológica que se estabeleceu sobre as ciências humanas (antropologia, sociologia, filosofia etc). Infelizmente, essas ciências humanas são humanistas, antropocêntricas e marxicizadas em si mesmas, trazendo muito o viés de uma leitura sempre do todo, do grupo, da sociedade, da cultura. Mesmo a psicologia, que poderia tratar o indivíduo, trata-o, antes de tudo, de modo massificado e sempre como resultado de um grupo (do que outros fizeram com ele). Neste ponto, o Aconselhamento bíblico se mostra muito mais justo, pois, ao se posicionar contra a psicologização de nosso tempo, acaba por arrancar o indivíduo de suas interpretações massificantes e oferece uma leitura muito mais pessoal, humanizando-o a partir da sua “imago Dei” — nosso Criador nos chama pelo nosso nome! Por tudo isso, encontro no Aconselhamento, não só nos seus conceitos, mas também no seu método e em sua apologética, “Deus no cenário”, tratando o ser humano numa perspectiva muito melhor do que as ciências sociais têm oferecido no campo para tantos missionários. Enfim, se tivermos uma boa teologia reformada em mãos, que nos forneça uma antropologia bíblica, o aconselhamento fecha o conteúdo no ambiente em que o missionário se encontra, a saber, diante do outro, com quem ele se comunica, evangeliza e discipula. Acrescentaria aqui apenas mais uma disciplina, “a união com Cristo”, que se apresenta como a liga que dá a unidade e a direção a tudo o que podemos fazer no campo intercultural.

Há muito, eu venho comentando com meus alunos, nas diversas formações que dou aos missionários, sobre o que chamo de “culturolatria”. Tristemente, vemos no campo missionário uma ação muito mais engajada de “salvar” a cultura do que o anseio pelo compromisso de salvação das pessoas. Não somente no campo de uma teologia liberal, mas, até mesmo, numa seara que se diz conservadora, mas tem um projeto de cristandade, que se se origina no romanismo católico, e se revela em nosso meio protestante num discurso de “redimir a cultura”. Para mim, tudo isso é muito perigoso e desvia o foco da Missão que a Igreja recebeu de Jesus Cristo.

Acompanho alguns indígenas, aconselhando-os. No Brasil, o trabalho missionário com indígenas é um capítulo à parte, cercado de proibições e perseguições tanto da parte do Governo como de ONG’s e Universidades. Trabalhei num campo, por exemplo, em que os líderes indígenas eram direcionados para um tratamento com psicólogos, até que um deles me procurou falando que o psicólogo que trabalhava para a Missão Evangélica nesse atendimento estava colocando-os para duvidarem da própria fé cristã. É por essas e outras que sempre estive atento e buscando assumir esse cuidado, evitando, ao máximo, que isso não se repetisse. Contudo, é a falta de uma filosofia de Aconselhamento bíblico no campo missionário que continuará a levar isso adiante, até que possamos formar uma geração missionária com “uma nova visão”.

Quando falo em “culturolatria”, quero relatar um caso. Estava atendendo um casal de líderes indígenas de determinado povo, pois ambos vinham passando sérias dificuldades de relacionamento conjugal, até que houve um caso de adultério por parte do marido. Culturalmente, o acesso à voz da esposa era muito difícil, pois ele controlava todas as entrevistas. Pedi, então, que a minha esposa pudesse conversar, no intuito de que pudéssemos ouvir o coração dela e não apenas o marido o tempo todo falando. Sim, é uma cultura muito marcada pelo machismo. Na primeira entrevista, logo após o caso de adultério, os dois apareceram para conversar, mas, o meu desejo mesmo era ouvi-los em separado. Não esperava que a esposa estivesse junto, pois era o primeiro encontro após o adultério e eu precisava sondar mais e entender as raízes do coração que levaram o marido a isso. Houve esse primeiro encontro e, depois, conversando com um pastor indígena da mesma etnia desse casal, ele me disse que, culturalmente, ele via com muito gosto que ambos tivessem aparecido, pois, quando isso acontecia, era o homem dizendo que, a partir dali, ele diria só a verdade e não esconderia mais nada da sua esposa. Tudo bem. Alegrei-me com isso, mas, logo nas horas seguintes, ele foi atrás repetir o adultério. A verdade é que não sabemos ler nossa própria cultura, assim como o peixe não consegue ver que ele está preso dentro de um aquário. A cultura nos ajuda numa primeira leitura em que identificamos pontos de contato e pontos de divergência com o Evangelho, mas ela também é usada para esconder, escamotear e ocultar.

Embora eu esteja acompanhando alguns casais indígenas, acredito que o melhor a ser feito para a Igreja Indígena (e demais etnias no Brasil e no mundo) é preparar as próprias lideranças nativas, para que eles assumam o aconselhamento bíblico dos seus povos. Temos pastores, presbíteros e diáconos, mas não é só isso. Culturalmente, podemos nos beneficiar da característica dos povos orais, oriundos de uma cosmovisão animista, de serem eles muito mais recíprocos do que somos na nossa cultura. O que quero dizer é que há povos indígenas (e de outras culturas) que receberiam muito bem o Aconselhamento bíblico do leigo com o leigo. Há muitas “conversas com a intenção de ajudar”, mas elas precisam ser intencionais e bíblicas. Portanto, no meu caso, como missionário transcultural, a aplicação que melhor vejo é trabalhar na formação das lideranças étnicas e nas pessoas em geral das igrejas em que os nossos missionários estão envolvidos, para que eles possam desenvolver uma cultura de Aconselhamento bíblico e, assim, apoiá-los nesse desenvolvimento. Tenho tido oportunidades na formação de missionários brasileiros, indígenas e africanos, principalmente, e tenho compartilhado a importância de levarmos o Aconselhamento bíblico para as novas igrejas que têm sido plantadas nessas culturas. Assim, a minha melhor aplicação para a minha realidade missionária transcultural é semear nos cursos que ofereço e nas grades curriculares, quando sou chamado a participar das confecções de suas grades curriculares, a importância de formarmos conselheiros bíblicos que trabalhem em seus contextos culturais. Um desafio maravilhoso que pretendo dar seguimento. E sei que quaisquer missionários, onde estiverem, podem abençoar ainda mais o campo em que estão fazendo o mesmo.

                Fábio Ribas

*Publicado originalmente em 15 de junho de 2023

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