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segunda-feira, 1 de julho de 2024

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)


Carlos Nejar é um poeta recém-descoberto. Todavia, ele publica vasta e variada literatura desde 1960. O currículo a seguir, retirado de uma entrevista feita com ele no site “domingo com poesia”, só revela a minha ignorância (e talvez a sua também):

"Carlos Nejar nasceu em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, em 11 de janeiro de 1939. No âmbito profissional, foi Advogado, Promotor, Procurador de Justiça e Professor de Português e Literatura.
"Com quase 100 (cem) obras publicadas, dentre poemas, romances, dramaturgia, contos, novelas, ensaios e infanto-juvenis, destaco os livros, Casa dos arreios (1973), Somos poucos (1976), Árvore do mundo (1976), O chapéu das estações (1978), Um país o coração (1980), A ferocidade das coisas (1980), Amar, a mais alta constelação (1991), Meus estimados vivos (1991), Elza dos pássaros ou a ordem dos planetas (1993), O túnel perfeito (1994), Sonetos ao paiol, ao sul da aurora (1997), Teatro em versos (1998), Carta aos loucos (1999), Velâmpagos: haicais ou móbiles (1999), Todas as fontes estão em ti (2000), O caderno de fogo (2000), Ulalume (2001), Guilhermina enfermeira e tia da República (2002), As águas que conversavam (2003), O poço dos milagres (2004), Canções (2007), O inquilino da Urca (2008), Jonas Assombro (2008), A nuvem candidata à presidência (2010) Contos inefáveis (2012), A negra labareda da alegria (2013), Matusalém de Flores (2014), Quarenta e nove casidas e um amor desabitado (2016) e A explosão (2019). São títulos publicados por renomadas casas editoriais do Brasil.
"Carlos Nejar pertence à coleção Melhores Poemas, da editora Global, com intuitiva escolha e apresentação de Léo Gilson Ribeiro (1929–2007), uma obra-prima da poética desse país.
"É membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), da Academia Brasileira de Filosofia, da Academia Espírito-Santense de Letras, da Academia de Letras de Brasília, do PEN Clube do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo.
"Ganhou o nome de uma rua na cidade de Gravataí (RS). Detentor do Prêmio Nacional de Poesia Jorge de Lima do Instituto Nacional do Livro, do Prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro (UBE-RJ), do Prêmio Machado de Assis de Romance, da Biblioteca Nacional, do Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, do Prêmio Luísa Cláudio de Souza do PEN Clube do Brasil, entre outros". (FONTE)

A mim, Nejar chegou só este ano, graças ao convite de um amigo também poeta, Jorge Isah, que o apresentou numa noite de lançamento da sua mais recente obra, “Memórias de outra idade”, na Academia Paulista de Letras. Foi uma noite de grandes personagens presentes da cultura nacional, em que Nejar foi homenageado. Comprei o livro do lançamento daquela noite. Alguns dias depois, Isah, apresentou “Todas as fontes estão em Ti”, um livro lançado no ano de 2000.

“Todas as fontes estão em Ti” é um livro de poemas de apenas 68 páginas, pequeno, eu disse, mas vasto no que comunica: a palavra do poeta respondendo à Palavra do Poeta. Mais do que poemas sacros, mais do que mera estupefação diante do Sagrado, Nejar conversa à luz de “Cantares de Salomão” (ou “Cântico dos Cânticos”). Poesia, portanto, afiando a poesia. Poesia bíblica já tão dada a inúmeras interpretações, porém, Nejar se atém àquela da mais tradicional hermenêutica: “Cantares” é o livro que nos aponta relação do Noivo com sua Noiva, Cristo e sua Igreja.

Nessa perspectiva espiritual, Nejar traz o amado para perto de si. Em versos curtos, rimados e feitos de aliterada musicalidade para serem lidos, recitados, cantados como há muito não vemos na literatura brasileira! Versos que encontram o Sagrado na natureza? Seria mais uma experiência opaca de busca humana, que se enleva pelo inefável, e que também não consegue discernir a Pessoalidade do encontro com o Êxtase? Nada disso! Por isso mesmo, quero dar ao leitor a minha porta de entrada a este poema de Carlos Nejar. Abrirei a porta pela qual passei, mas cabe a você concordar ou não e seguir por esta via que sugiro.

“Todas as fontes estão em Ti” se abre na ânsia de quem sabe muito bem pelo que espera, que é o seu amado. E tudo na natureza serve para anunciar a vinda desse amado: o canto, o tempo, o abraço, o consolo, o lume da própria natureza. Tudo anuncia a vinda do aguardado que nos revela a única chave hermenêutica possível à experiência do Sagrado: Cristo, Senhor! É com Ele que o poeta afina “as esperas, os trincos/ da alma. Vão-se abrindo”. Mas na experiência poética do amor, na pressa, no desejo da paixão, a entrega questiona os ritos, pois a busca realizada não é religiosa, sistemática, racional ou mesmo repetida e distante. Aqui não há fórmulas, escadas ou salas infindáveis. Não há castelos, mas a natureza é a casa aberta em que o Criador se apresenta. Há a criação! O poeta quer se lançar no céu rio derramado, chama essa que nos chama ao amor de nossa vida.

Após clarear ao leitor, a chave necessária para seus versos — o Cristo, Senhor! — , Nejar nos lembra da condição de cada um de nós, perdidos, doídos nesta noite escura. Mas a Graça se anuncia, pois é nesta noite e dor escura, que o aflito vê a chegada do Amado. A vinda do Amado é, antes de tudo, uma experiência sinérgica nos versos do poeta gaúcho. Ele vê, ouve, escuta a velha eternidade, que agora se apresenta ao aflito. Tudo na criação anuncia ao Criador, ao Amado, a face amorosa do Criador revelada em Cristo, autor desta mesma Criação que, agora, é colocada à disposição da Divindade para se apesentar a nós. Na natureza, sem que nos chegue o Amado, tudo ainda é confuso, mesmo o paraíso e o amor ainda são ruídos. Neste momento, celebra-se a chegada do vento, que banha o rosto e tomba a morte e tudo, enfim, recebe nome, pois o Amado é Senhor de todas as coisas. O moinho mói nossa alma e nos convida ao amor e a ele nos prepara. A uva precisa ser prensada para vir a ser puro vinho!

E o Amado voa! Cavaleiro alado! Agora, o vento nos banha, o coração é novo. O poeta recorda que a busca sempre houve no coração humano, mas só se encontra o que se busca, quando nosso coração é buscado. A natureza celebra a Aliança, o nome do Amado é gorjeado. É nessa morte que, verdadeiramente, somos alegres. Espírito que se derrama e os versos de Nejar testemunham!

Em meu Amado, quero crescer e ser um eterno menino, pois é das crianças o Reino dos céus. E o vento vem, o crescimento é fruto de um tempo com o Amado, tempo em que Ele lança suas sementes e elas, em nós, germinam. No Amado, há sossego. Nesta maravilhosa experiência bucólica, que segue adiante, poema à poema, verso a verso, vamos sendo alfabetizados, para, enfim, constatarmos o revelado: todas as fontes estão em Ti — Jesus é suficiente!

            Fábio Ribas

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Defenda-se (XXII/2024)


Enquanto lia o livro de Sanford Strong (5º livro da série “Armamentismo”, deixarei os links no fim), muitas histórias e lembranças passavam na minha mente. Ficava perguntando se eu tomaria, de fato, algumas daquelas atitudes, caso me visse diante de uma situação de violência urbana. O livro “Defenda-se — um manual de sobrevivência ao crime urbano com regras que protegem você e sua família” é exatamente isso que o título promete. Eu fiquei com o desejo de compartilhar com mais pessoas sobre tudo isso o que li neste livro. Conversar mais sobre todas aquelas histórias e regras que vão na contramão de tudo o que assistimos na mídia e nos filmes. E por ir na contramão de nossa cultura ingênua e hollywoodiana é que o livro tem esse poder de nos incomodar tanto. Veja, é um imperativo: DEFENDA-SE! 

Lembro-me que só um outro livro causou-me algo semelhante: “Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado”, de Ana Beatriz Barbosa Silva. Assim que li o livro de Ana Beatriz, convenci-me de que era um livro que ajudaria muitas pessoas a se protegerem do mal que poderia estar assediando suas vidas. O que eu fiz naquela época? Preparei uma série de slides e passei na igreja em que eu pastoreava. O que eu jamais poderia imaginar é que, naquela cidadezinha do interior do Brasil, ocorrera, quase duas décadas antes da minha chegada, um crime bárbaro que abalara a todos ali. Qual não foi minha surpresa quando, meses depois da minha palestra, para qual convidara vários representantes da sociedade civil, alguém perguntou: “Você sabia desse crime, quando deu aquelas palestras?”. Olhei estupefato e indaguei: “Que crime?!”. Foi somente aí que fiquei sabendo não apenas do crime bárbaro que envolvia gente graúda da cidadezinha, mas que muitos pensavam que eu havia feito de propósito, para forçar a retomarem as investigações ou que eu seria alguém (contratado talvez) para investigar o crime sem solução. Não foi apenas isso. Disseram-me que, quando o crime completou 10 anos e ninguém havia sido julgado, a cidade foi às ruas clamar por justiça. As ruas ficaram lotadas, cartazes e manifestações de protesto na porta da Prefeitura, em que estavam todos os processos, uma vez que a cidade não possuía cartório. Uma semana depois dessa passeata, a Prefeitura pega fogo e todo o processo é destruído nesse incêndio “acidental”.

Enfim, a violência urbana e a impunidade não são privilégios da cidade grande. Como essa história que contei aqui, vi muitas outras se repetindo pelo interior do Brasil. A polícia não chegará a tempo e talvez você não possua uma arma para se defender. O que fazer? O livro de Strong é uma série de respostas práticas a essa pergunta. As respostas passam também pela desconstrução dos mitos de defesa que muitas vezes alimentamos erroneamente em nossos corações. É assustador a conscientização que passamos ao ver que quase nenhuma das técnicas de defesas pessoais, por exemplo, que usamos contra a violência urbana têm resultado. Assim como a maioria das orientações do que é “ensinado” para reagirmos a essa violência, na verdade, não nos livrará dela, ao contrário, tende a só nos lançar a ela submissamente. O objetivo do livro é tratar daquilo que REALMENTE pode ser mais eficaz na hora de sermos atacados: nosso preparo mental.

Medo e rapidez — as duas armas dos criminosos usadas contra nós. Segundo o autor, você deve dirigir o seu medo para um ódio primitivo contra o agressor. Você não pode ceder às ordens do agressor. Você deve fugir, lutar para fugir. Então, você deve se preparar para a situação de emergência.

Há regras: 1) reaja imediatamente; 2) resista; 3) evite chegar à cena do crime nº2; 4) não desista nunca. Estas regras tendem a minar os 3 fatores que beneficiam os criminosos: tempo, isolamento e controle. Quanto mais tempo você passa sob o controle do bandido, menos chances você terá de reverter a situação a seu favor. Se você permitir que ele o leve a um lugar isolado, o risco de morte é evidente. Quanto mais você se submeter às ordens e ao controle do bandido, mais poder você estará dando a ele. Não espere compaixão de um reincidente (e você nunca saberá com quem está lidando). Por isso, as regras. Você precisa, desde agora, investir no preparo mental, saber que terá de tomar atitudes rápidas e não refletidas, mas previamente planejadas para fugir da situação de perigo. Você não pode se entregar e se deixar dominar: resista! É preferível sair ferido e machucado do que morto! Na verdade, se o bandido não rende e retira o que ele quer de você na hora da abordagem, mas ameaça sequestrar e levar você para um lugar isolado, isto mostra que ele não está disposto a apenas um assalto, mas à violência, estupro e, provavelmente, assassinato. Então, você não pode “pagar para ver”. Em outras palavras, se ele já o abordou e coagiu (cena do crime 01), não permita que ele o carregue para um outro lugar (cena do crime 02). Não desista nunca! Corra! Não pare! Não se entregue! Entregue seus documentos, seu carro, cartões e dinheiro, mas, se ele quiser te dominar e levar a um lugar isolado, resista e corra! A maioria desses criminosos é reincidente e não permitirá que você sobreviva para reconhecê-lo depois. Ele não vai querer voltar à prisão. 

O livro é impressionante. Apresenta uma postura diante da violência que vai na contramão do que vemos na mídia. Um livro com muitas regras do “o que fazer” nessa e naquela situação. O autor também usa das histórias reais que ele conta para mostrar o que as vítimas fizeram de certo e errado. São estudos de caso que a escola e nossas famílias nunca nos ensinaram. O autor irá abordar como podemos agir corretamente para defendermos um terceiro, sem que acabemos nos tornando a vítima: 1) mantenha distância; 2) mantenha a situação ao alcance da vista; 3) mantenha os bandidos pressionados. Buzine, jogue o carro contra uma vitrine, dispare alarmes — ações como essas espantam bandidos que não esperam que o crime saia do controle deles. Não se deixe levar como refém e nem se amarrar. O fato óbvio é que, quanto mais o tempo passa, mais o refém perde o seu valor e não será deixado vivo para reconhecer seu agressores mais tarde. Grite, esperneie, reaja, corra! Mais uma vez: é melhor sair ferido e machucado do que morto.

Um dos pontos mais difíceis talvez seja o de planejar a reação em família. Alguém precisa fugir ou todos estarão em risco de morte. As crianças precisam ser treinadas para, por exemplo, em caso de roubo do carro levando a família dentro, fugirem no primeiro sinal de alerta. É preciso entender que alguém terá que ficar para trás e que isso pode ser a única chance da família sobreviver. Fuja! É a melhor chance de encontrar socorro policial. E se a sua casa, com sua família dentro, for invadida por ladrões? Por isso o preparo mental precisa ocorrer. Além de tudo isso, o livro ainda trará regras para como a família pode sobreviver em caso de incêndio. O preparo mental de como agir em todas essas situações é o que ajudará num momento em que você não pode perder tempo pensando!

Assim como fiz com o livro da Ana Beatriz, gostaria muito de fazer um estudo ou leitura com a comunidade ao meu redor. É um livro para ser lido, conversado com a família e com os vizinhos. Um livro imprescindível!

Série armamentista:

  1. Armas de fogo — elas não são as culpadas;
  2.  Hitler e o desarmamento;
  3. Articulando em segurança;
  4. Armas de fogo e legítima defesa — a desconstrução de 8 mitos.

terça-feira, 11 de junho de 2024

O Duplo (XXI/2024)


O que há de comum entre o primeiro livro de Dostoiévski, “Gente pobre”, e seu segundo, “O Duplo”? Este segundo foi lançado apenas duas semanas depois do primeiro livro, que causou grande impacto positivo no público e na crítica. Poderia dizer que ambos tratam da realidade social da Rússia daquele tempo. Contudo, o personagem principal do segundo livro se encontra numa situação financeira melhor que os personagens de “Gente pobre”. O “nosso herói”, expressão sempre trazida pelo narrador de “O Duplo” para se referir ao senhor Golyádkin, tem casa própria, um bom salário e um empregado que o serve. Mas, na hierarquia social, sua profissão é uma das mais baixas do setor público da Rússia. Assim, a trama se desenvolve também no desejo do personagem em ascender socialmente.

Queria começar dizendo que, ao contrário de muitas críticas que li, eu amei o livro! Fiquei muito envolvido com a história e sua crescente tensão. Lembrei-me de “O castelo branco”, de Orhan Pamuk. E tentei recordar de quantos romances e histórias sobre personagens que encontram um sósia impregnam nossa imaginação literária. “O príncipe e o mendigo” é clássico, não? Dostoiévski, porém, escreve uma história genial e muito diferente de seu primeiro livro. Talvez, por isso mesmo, seus leitores e seu tempo não estivessem preparados para o que encontramos aqui.

Afinal, o que está acontecendo? Verdade ou mentira? Sonho ou loucura? O livro começa nos apresentando uma posição dúbia. Seguimos, depois, para um encontro do “nosso herói” com seu médico e vemos, a partir desse diálogo, que Golyádkin tem certos problemas de adequação social. Este médico irá retornar na sombria cena final do livro. O fato é que Golyádkin, após sua parada no consultório médico, vai à festa em que pretende pedir Clara em casamento. Entretanto, chegando lá, descobrimos que ele não fora convidado (estranhíssimo, não?). Há uma sequência de patetices nessa festa que me lembra aquele filme “Um convidado bem trapalhão”, com Peter Sellers. Eu fiquei com vergonha alheia do personagem. Por fim, ele é expulso de lá. Seria aqui, num personagem já fragilizado, que a loucura se instalaria? Você já passou por vergonhas tão intensas que sua mente se desassociou de si mesmo? Seria isto que veríamos ocorrer neste romance de Dostoiévski?

E se não conseguimos ser quem almejamos? Se, tão tragicamente, levantam-se contra nossos planos a Providência e tudo parece, enfim, vir na contramão deste verso paulino: Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito (Rm 8:28). O senhor Golyádkin não fora convidado para a festa, não fora chamado e, portanto, não há propósito algum que o guie a bom termo. Todas as coisas NÃO cooperam para o bem do nosso herói, pois ele perde sua pretendente, perde não apenas o novo cargo que almejava, mas perderá seu emprego também, ele perde a dignidade. A pergunta é se Golyádkin não está perdendo a própria sanidade? Agora nos aparece o Duplo, alguém não somente muito parecido com ele, mas que carrega até mesmo seu mesmo nome. Loucura? Verdade? Embora ocorra um primeiro momento de boa interação entre os dois, veremos que o aparecimento do Duplo só irá lançar “nosso herói” numa tragédia cada vez pior.

O livro foi fascinante e muito angustiante para mim. O Duplo é um personagem insuportável e, pior, é um personagem que encarna tudo o que “nosso herói” não é, mas deseja. O Duplo é afável, carismático e comunicador. Assim, o Duplo vai tomando espaço na vida e no trabalho de Golyádkin. Contudo, na vida não poderemos ver “dois”, ainda que gêmeos, ainda que sósias, num mesmo espaço. Alguém terá que perder nessa concorrência.

Sonho ou loucura? Um personagem tragicômico é o “nosso herói” Golyádkin. O que Dostoiévski pretendia com esse livro? As explicações são as mais diversas entre os críticos e leitores deste livro. Repetirei a minha própria explicação dada mais acima: a loucura nos vem quando tentamos ser quem não somos! E a falta de resiliência transforma a todos e a própria Providência divina em inimigos num surto de paranoia. Golyádkin, desde o início, não queria ser quem ele era. Preocupava-se excessivamente com olhar alheio sobre si mesmo. Tentou e não conseguiu. Viu a si mesmo e, ironicamente, também não gostou do que viu no “Golyádkin segundo”. Seu Duplo era tudo o que ele gostaria de ser, mas, no fim, seu Duplo, este seu “outro”, foi sua própria destruição. Para mim, este livro é uma obra de arte.

            Fábio Ribas

sábado, 25 de maio de 2024

Gente pobre (XX/2024)


Eles se conheciam pessoalmente antes? Ela esteve doente e ele a visitava em seu apartamento. Mas parou, pois a vizinhança começara a fazer perguntas. Ele espera que ela se reestabeleça por completo, para que, então, eles se encontrem fora do apartamento dela. Ele, Makar, envia vários presentes, mimos, a ela. A origem da pobreza de Bárbara, apresentada no diário, foi em função de dívidas contraídas pelo pai dela. Bárbara tem ótimas recordações de sua infância no interior da Rússia. Contudo, durante a leitura do diário que ela envia a Makar, o leitor descobre a grande mudança ocorrida na vida da personagem principal e, até mesmo, quando já estava em São Petesburgo, seu envolvimento afetuosos com Pokroski. Que cena linda descrita naquele parágrafo, quando Pokrovski se dá conta de que Bárbara já não era mais uma menininha, mas sim uma mulher! A vida Bárbara vai se constituir de inúmeras perdas e dores, assim como a vida de Makar, com quem ela troca correspondências.

Não ficou claro, para mim, se os dois — Bárbara e Makar — se conheciam pessoalmente antes do início dessas cartas. Ou, pelo menos, o quanto os dois se conheciam antes das trocas de cartas. Por causa da doença dela, só bem adiante no livro, eles puderam ter um passeio juntos. Quantos anos teria a Bárbara? O Makar tem uns 47 e a minha impressão é que ela seja uns 20 anos mais nova do que ele! Afinal, o que existia entre os dois? Que tipo de amizade é aquela? Makar sempre dizendo que a amava com afetos paternos e, por sua vez, Bárbara o respeitava como um protetor. O que impediu que houvesse uma relação amorosa entre os dois? A diferença de idade? A pobreza de ambos? Makar era um viúvo…

Às vezes, questões culturais daquele tempo e daquela sociedade, que fogem da minha leitura brasileira e de quase 200 anos depois da sua primeira publicação, fornecessem um quadro não escrito que pudesse explicar algo mais de detalhes que podem estar me escapando. Por isso, talvez, para mim, foi muito difícil imaginar que mundo era este: a pobreza da Rússia do século XIX. Verdadeiramente, um outro mundo. O lugar em que aqueles personagens de Dostoiévski viviam fez-me toda vez pensar no “O cortiço”, de Aluísio Azevedo. Não pelas características da Escola Literária do Naturalismo, mas por uma tentativa minha de imaginar como seria o lugar descrito por Dostoiévski. Todo mundo morando próximo. Eram apartamentos. Todo mundo sabia da vida de todo mundo. Mas o que era, afinal, essa pobreza da Rússia do século XIX? Makar era um funcionário público e, pelo que pude perceber, sua função era o que havia de mais baixo na hierarquia social. Ele era um copista, sem quaisquer perspectivas realistas de ascensão. Para piorar, Makar se envolve com jogos, bebidas, seus vícios. Todavia, uma coisa salta aos olhos, a pobreza do Cortiço revela a miséria de um povo erotizado e animalizado, que é apresentado totalmente descaracterizado de sua humanidade. O Cortiço em que moram possui mais características humanas do que seus indivíduos. “Gente pobre”, de Dostoiévski, é um romance epistolar social que revela gente muito mais digna do que os seres humanos de Aluísio Azevedo. Em outras palavras, o pobre do século XIX, na Rússia, era diametralmente oposto do pobre do século XIX do Brasil retratado em “O Cortiço”. Os pobres de Dostoiévski são respeitadores, cordiais, preocupados com suas reputações e — pasmem! — procuram livros para ler. Eles conversam sobre literatura no livro “Gente pobre”!

Eu não lembrei apenas do “O Cortiço”, mas parece que, intencionalmente, Dostoiévski dialoga com escritores russos contemporâneos a eles, como Gogol e Pushkin, recriando situações e personagens que vemos em textos desses escritores. Escritores que, cada qual a sua maneira, retrataram personagens da população pobre russa. Em determinado momento do livro, vemos Makar se desculpando por sua escrita em suas cartas, dizendo à Bárbara que ele ainda estava tentando achar o seu próprio estilo. Isto me fez lembrar de Orhan Pamuk, que sempre discute muito sobre este tema em seus romances. Isso fez-me pensar também que “Gente pobre” foi o primeiro romance de Dostoiévski. Será que Makar reverbera o própria busca de Dostoiévski por um estilo, um lugar ao sol em meio de grandes obras e escritores russos que já existiam? “Gente pobre” foi publicado quando Dostoiévski tinha apenas 25 anos e a recepção desse livro foi muito positiva. Dostoiévski se encaixava no que fica conhecido como o Realismo russo.

Enfim, gostei muito. Todos os temas que veremos nos grandes romances do autor já se encontram presentes aqui: os dramas pessoais, a pobreza dos personagens, os vícios, a jogatina, as tragédias etc. Quero ler toda a obra em ordem cronológica lançada em português. Seu segundo livro foi “O duplo”.

            Fábio Ribas

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Contextualização (XIX/2024)


A verdadeira contextualização do evangelho ocorre na igreja, e não no mundo. Não é obra de homem, mas sim de Deus - Nicholls

O livro “Contextualização — uma teologia do evangelho e cultura”, de Bruce J. Nicholls, foi escrito no ano de 1979, sua primeira edição em português ocorreu em 1983, mas sua edição revisada só surge em 2013. É isso mesmo? Como que uma obra importante como essa para a vida missionária da Igreja demora tanto a ser reapresentada? Talvez porque seja uma obra crítica em relação aos movimentos de contextualização. Vejamos.

A discussão do livro parte de uma constatação que é importante que a igreja tome consciência. O autor escreve que “alguns se preocupam tanto com a preservação da pureza do evangelho e das formulações doutrinárias dele decorrentes que se tornam insensíveis aos padrões de pensamento e comportamento culturais das pessoas às quais proclamam o evangelho”. E continua na sua justificativa afirmando que “alguns não têm tido consciência de que alguns termos, tais como Deus, pecado, encarnação, salvação e céu, provocam impressões na mente do ouvinte diferentes daquelas que produzem na mente do mensageiro”. E é a constatação de fatos como esses que motivou os estudos atuais sobre contextualização. A Igreja não pode esquecer que ela se encontra como uma “tradutora” entre culturas: há uma cultura bíblica (na verdade, a Bíblia apresenta muitas culturas em interação e em conflito), há a cultura do mensageiro, há a cultura do ouvinte, mas, com a globalização, há muito mais culturas se encontrando e se estranhando no campo do que possamos imaginar.

Além disso, a discussão entre o que é a cultura do mensageiro e o que é a cultura do evangelho é sempre recorrente e faz parte da origem dos danos causados por quem não reflete antecipadamente sobre isso. Todavia, na ânsia de se buscar soluções para os erros cometidos na história, muitas vezes, o campo missionário viu a contextualização ser usada como uma ferramenta para se difundir a idolatria, o sincretismo e uma contextualização antropocêntrica, sendo todos extremamente nocivos. Sobre esta mentalidade nociva, a pergunta de Donald McGravran revela-se como exemplo do que estou dizendo aqui: “Por que algumas pessoas resistem ao evangelho mais do que outras?”. É uma pergunta extremamente perigosa, pois dá a entender que a resposta correta é o que fará com que os resistentes se abram à conversão. Talvez um dos maiores problemas do campo missionário é que muitas das estratégias propostas foram e são pensadas em bases teológicas diversas e conflitantes, sejam as do mensageiro no campo transcultural ou até a do autor que aqui escreve. É uma pergunta que parte do “fracasso” medindo-o na resposta ao evangelho apresentado. É possível fazer essa pergunta de uma maneira diferente? Sim. “Por que alguns missionários não se preparam responsavelmente para o desafio do campo transcultural?”, esta é uma pergunta que, por sua vez, não direciona o foco para o sucesso e o fracasso da apresentação do evangelho, medindo-o pelos resultados obtidos. A nova pergunta que proponho é voltada para o missionário como aquele que precisa ser responsável diante de Deus fazendo tudo para a glória dEle, inclusive no que tange o seu preparo bíblico, teológico, missiológico, antropológico e linguístico.

O livro de Nicholls acerta, principalmente, num raio-X dos exageros do movimento de contextualização. Eu concordo com o autor quando ele justifica a contextualização, porque “ há aspectos de cada cultura que não são incompatíveis com o senhorio de Cristo e que, portanto, não precisam ser confrontados nem descartados, mas, pelo contrário, preservados e transformados”. Ou, usando expressões mais apropriadas: aspectos que necessitam ser redirecionados e santificados. Essa distinção na cultura alvo é a primeira barreira que precisa ser enfrentada pelo missionário no campo. Outra barreira que Nicholls apresenta e que eu também vi ocorrer nestes anos de campo é que, muitas vezes, a apresentação do missionário no campo se dá por meio de formas culturais estrangeiras, uma didática estrangeira, um método próprio da cultura do missionário que, sem a menor crítica, é aplicada sobre pessoas que ensinam e aprendem de uma forma diferente daquela do mensageiro. É preciso contextualizar a apresentação do evangelho, para isso, é preciso que o missionário estude a cultura do povo, sua língua e cosmovisão.

É necessário que o mensageiro esteja lá e conviva com os ouvintes. “O chamado a uma sensibilidade maior na comunicação transcultural é um chamado à paciência em compreender as pessoas; à humildade ao seguir a trilha do discipulado e um chamado a se engajar com amor nas realidades da vida cotidiana das pessoas. É ter a mente de Cristo, que renunciou a sua glória e posição, identificou-se com as pessoas em sua humanidade e foi um servo sofredor até a morte”.

Mas o que é cultura? Embora o autor apresente inúmeras definições, ele parte da ideia que cultura é um enredo para a vida e que qualquer comunicação transcultural eficaz deve levar em conta esse enredo, que é um macrocosmo do homem espiritual, diz Nicholls. A comunicação transcultural “envolve a totalidade do ser humano no contexto da cultura”.

Em relação a Nicholls, tive dificuldade com seu conceito de “supracultural” para designar realidades de âmbito espiritual, que teriam sua origem fora da cultura humana. Além de ser uma ideia equivocada tratar a realidade espiritual como um elemento “de fora” (embora o Evangelho seja supracultural, mas ele não é apenas isso), ao meu ver, toda a cultura é regida, sustentada e refletida a partir da sua própria espiritualidade. Para mim, toda cultura é religiosa e arraigadamente espiritual. A reboque desse conceito de “supracultural”, Nicholls apresenta uma estranha ideia de batalha espiritual que, para mim, é puro maniqueísmo: acima de toda cultura há uma batalha entre o bem e o mal, entre o Reino de Deus e o Reino de Satanás. Usar estas lentes é devastador para um trabalho missionário. Então, neste ponto, que é um ponto importante para Nicholls, eu discordo. Não posso ver as culturas humanas como peças num tabuleiro de xadrez em que os oponentes que as disputam são Deus e o diabo. O mundo não é uma “arena de batalha entre o reino de Deus e o reino de Satanás”, mas, antes, Satanás não tem mais reino algum, ele foi derrotado e a missão da igreja é anunciar que na cruz o diabo já foi destronado, derrotado, julgado, condenado e que a história da Igreja é o anúncio da chegada do Reino de Deus! Por isso, o Reino de Deus avança na proclamação da Igreja e isso, evidentemente, suscitará a reação do inimigo derrotado, mas ainda não eternamente encarcerado com todos os seus anjos e seguidores.

Nicholls acerta em cheio quando afirma que “a Palavra de Deus muda a direção da cultura e a transforma” e que é na Igreja plantada no meio do povo que devemos esperar as mudanças culturais: “onde Cristo é verdadeiramente Senhor de sua igreja o enredo cultural para a vida de seus membros será diferente do enredo da comunidade mais ampla”. As igrejas locais, independente de quaisquer culturas em que estejam inseridas no mundo, devem refletir tanto a universalidade do evangelho quanto a particularidade do ambiente humano.

O estilo de vida da igreja cristã da Índia, por exemplo, terá qualidades características que serão semelhantes às qualidades de uma igreja cristã de qualquer outro país. Ela manifestará o fruto do Espírito e, ao mesmo tempo, será uma igreja verdadeiramente indiana liberta da cosmovisão, dos valores e dos costumes do hinduísmo que são contrários ao evangelho — Nicholls

Concordo com Nicholls quando ele afirma que “a Bíblia reconhece a prioridade do indivíduo, mas faz do grupo social — a família — a unidade básica da sociedade”. Na nossa relação com as culturas devemos levar em consideração que o evangelho é uma chamada ao relacionamento com Deus e com a Igreja de pessoas que não eram povo e nem filhos de Deus. Há uma dimensão estética nas culturas e o missionário deve estar atento a isso, uma vez que fomos criados à Imagem de Deus e ele deu aos homens o dom criativo.

Todavia, um outro ponto polêmico em Nicholls é um resquício de “fator melquisedeque” (leia aqui) na sua antropologia missionária, não apresentando as distorções que encontramos nas culturas como “pré-preparativos” para ouvir e receber o evangelho. O erro aqui é termos nas culturas “analogias salvíficas” que seriam o “evangelho em gestação” aguardando apenas o “link” do missionário. A verdade é que o Evangelho é totalmente outra coisa do que se possa ter em quaisquer culturas do mundo. A despeito de termos a semente religiosa e o desejo da espiritualidade em todas as culturas do mundo, e ainda que tenhamos pontos de contato em histórias, mitos e ritos nas culturas ao redor do mundo, nada pode ser uma preparação para aquilo que é totalmente inédito, uma vez que vem de Deus e é supracultural, o Evangelho é Jesus! Assim, nesse sentido, o Espírito Santo não está nas culturas preparando os homens para receber o evangelho, até mesmo — e isso precisa ficar muito claro — o evangelho não está lá, a ordem da salvação não é essa. Os homens estão totalmente perdidos e jamais chegarão ao verdadeiro conhecimento de Deus, o Deus bíblico. Entretanto, os eleitos receberão a palavra do missionário — a apresentação do evangelho — e, aí sim, o papel do Espírito Santo é convencer os eleitos da verdade, da justiça e do juízo, a partir da Palavra que foi proclamada a eles. Então, salvífica e especialmente, Deus não está agindo nas culturas fora da Igreja missionária. A chegada da Igreja missionária numa cultura é a chegada do Reino, tanto para a salvação dos eleitos como para a condenação dos rebeldes.

Uma outra palavra que eu não gostei no livro é “indigenização”, para se referir a igrejas que são autogovernadas, autossustentáveis e autopropagadoras. Ainda que não queiram que essa palavra nos remeta à palavra “índio”, remete. E não fica nada bom dizer que igrejas asiáticas estão sendo indigenizadas. Que palavrinha ruim! Qual surgiu no lugar? “Contextualização”.

Assim, se no capítulo primeiro fomos apresentados a vários conceitos sobre “cultura”, agora, no segundo capítulo, passamos a ser apresentados aos conceitos de “contextualização”. E é aqui, nesse capítulo, que vemos a contextualização ser usada como cilada para enquadrar os cristãos no trabalho ecumênico e universalista. Um verdadeiro escândalo e desastre. Sob a desculpa de reagir ao imperialismo e ao colonialismo teológico, os contextualizadores fizeram concessões absurdas ao liberalismo e ao marxismo, transformando o trabalho missionário em qualquer outra coisa menos evangelização, ensino e discipulado acerca da obra salvífica de Cristo. Autores como Von Allmen são citados no livro e só revelam a miséria do trabalho infeliz de muitos que usaram a contextualização para alcançar o fim que queriam de rebeldia e revolução:

…o florescimento de uma teologia verdadeiramente africana pressuporá uma situação de tábula rasa, ou seja, o surgimento de uma teologia despida das teologias existentes, especialmente das ocidentais. Ele (Von Allmen) conclama os africanos a terem consciência do valor que a sua cultura tem “em si mesma, e não apenas apenas do seu valor relativo”, para que uma teologia africana verdadeira venha a nascer”— Von Allmen

Seguindo a citação acima, o evangelho passa a ser mais uma história em meio a tantas outras. O ES está agindo em todas as culturas e o evangelho e a igreja são apenas mais uma dessas comunidades de fé no propósito salvífico de Deus. Que desastre tudo isso! E imaginar que encontros e mais encontros de igrejas em todo mundo foram feitos para que esse liberalismo e revolução seguissem adiante. A lista de “pensadores criativos” só tem gente da TMI (Teologia da Missão Integral) e da TL (Teologia da Libertação), que hoje ainda são apresentados em cursos dos mais diversos nomes como, por exemplo, “Teologia contemporânea” e afins. Uma tristeza! Um desastre ao verdadeiro evangelho de Cristo. Uma vergonha!

O trabalho de contextualização foi usado no século XX, e ainda hoje é usado, para espalhar as sementes do liberalismo teológico, do ecumenismo, da revolução marxista e do sincretismo e quais as mentes brilhantes e criativas disso na América Latina? Vou dizer: René Padilha, J. Miguez-Bonino, Gustavo Gutierrez, Orlando Costas, Emílio Castro, Hugo Assmann, Rubem Alves, entre outros. Leia o segundo capítulo deste livro e fique de cabelo em pé com o que fazem sob a égide da “missão da Igreja”. Um antro de heresia! Sinto dizer, mas, muito do trabalho missionário que surgiu sob a bandeira de Lausanne é demoníaco! Por isso, todo cuidado e filtro são poucos, quando se trata de aceitar tudo o que hoje nos vêm sob a alcunha de “missões”. Leia também o meu ebook, lançado na Amazon: “Escritos contrarrevolucionários”.

No capítulo 3, retornamos com a ideia do “pré-entendimento do evangelho”, mas como ponto de contato e não como “prévia preparação”. Todavia, há uma maneira correta de usar o fator cultural para a apresentação do evangelho, assim como há uma maneira incorreta e que leva ao sincretismo. E esse é o assunto abordado nesse terceiro capítulo. E é aqui também, nesse terceiro capítulo, que encontramos a reavaliação de toda essa confusão que vimos muitos teólogos e missionários fazerem com a contextualização. Um capítulo maravilhoso falando sobre como Deus usou a cultura dos judeus para transmitir fielmente a sua Palavra. “Jesus Cristo nasceu judeu, e é uma afronta à soberania divina falar de um Cristo negro ou de um Cristo indiano ou italiano”, acertadamente afirma Nicholls.

Deus, em sua soberania, escolheu a cultura semítica dos hebreus por meio da qual revelou sua Palavra. Se tivesse escolhido uma forma cultural chinesa ou indiana, o conteúdo da Palavra teria sido diferente, visto que mudar radicalmente a forma, que traz consigo uma cosmovisão e um conjunto de valores próprios, é mudar o conteúdo. Do mesmo modo o Deus encarnado assumiu a forma de filho e não de filha. Aqueles que vivem em uma cultura religiosa na qual deusas amorais são adoradas e práticas culturais místicas são associadas à adoração de uma Mãe Divina compreenderão por que Deus não se revelou como uma filha — Nicholls

Ainda que haja uma ou outra discordância com o autor aqui e ali, mas, sem sombra de dúvida, é um livro importantíssimo para a sala de aula em nossos cursos de contextualização e missões. Um livro que abre o véu e mostra tudo, tanto o inferno como o céu da contextualização missionária.

                Fábio Ribas

terça-feira, 14 de maio de 2024

Guerra de Palavras (XVIII/2024)


“Deus fala”! Esta frase simples expressa uma profunda verdade! Deus nos criou à sua imagem e semelhança, Ele fala, então, nós falamos também! Somos os únicos na criação que falamos. Falamos conosco e com o outro, mas também podemos falar com Deus! Todavia, por que não falamos com Deus (ou, quando nos dirigimos a Ele, não sabemos falar como convém? — Rm 8:26–27). Por que usamos a nossa fala para mentir e manipular o nosso próximo? Por que mentimos a nós mesmos falando coisas que sabemos não são verdadeiras? Há um problema profundo em nossa fala!

Paul David Tripp escreve crendo que o Evangelho de Jesus tem poder para transformar nossa comunicação. “Deus fala”! E desperdiçamos nossa oportunidade de nos aproximarmos e conversarmos com Deus! Jesus é a Palavra de Deus: Ele é o Verbo! (Jo 1.1). Toda nossa comunicação depende dAquele que é comunicação desde a eternidade: o Deus Triúno — o Pai, o Filho e o Espírito Santo — o Deus que sempre se comunicou perfeitamente consigo mesmo.

Uma dos pontos altos deste livro é que, após cada capítulo, ele oferece sempre um questionário, um “estudo dirigido”. Os questionários são pessoais, autoexames, para nos enfrentarmos e vermos honestamente como, onde e com quem temos falhado na nossa comunicação.

“Satanás fala”! E de que maneira Satanás fala? 1) Ele introduz uma interpretação errada, questionando a autoridade de Deus; 2) Ele conta uma mentira intencional, levando Adão e Eva a duvidarem do caráter Santo de Deus; 3) Satanás promove a Guerra de Palavras, assim, nós nos levantamos contra o nosso próximo e também contra o próprio Deus! Aqui, fica a questão: nossa comunicação nos leva a espelhar mais a Deus ou mais a Satanás? Se lançamos interpretações erradas, se mentimos e se guerreamos, estamos mais próximos de Satanás do que de Deus. Precisamos nos arrepender e nos refugiarmos na Graça do Deus que perdoa e nos santifica.

“A Palavra encarnada!” — Jesus é a Palavra de Deus! “Na Palavra encontramos esperança quando tudo parece desespero, riquezas quando nos sentimos pobres, poder quando percebemos nossa fraqueza, e governo quando tudo ao nosso redor parece sem controle” (Efésios 1: 15–23). O autor nos conscientiza de que precisamos de algo mais profundo que técnica, talento e conhecimento para resolver a raiz de nossos problemas de comunicação. Ninguém precisou nos ensinar a usar a nossa fala para o mal. Desde crianças — e há um momento em que o autor nos diz isso observando uma discussão entre seus dois filhos pequenos -, discutimos e brigamos e, mais do que isso, machucamos o outro com palavras. Temos um talento natural — de uma natureza totalmente depravada — de usar nossas palavras, desde a infância, para alcançar exatamente o que nossos corações irados desejam, lembra-nos Tripp. Somos seres profundamente egoístas e interessados em nós mesmos. Apenas! Quando queremos que “o universo conspire a nosso favor”, faremos e falaremos tudo o que for necessário para acuar Deus e os homens. Precisamos ser tratados e curados deste nosso coração feiticeiro. Mas como Deus trata nosso coração que usa as palavras para a manipulação do outro e de Deus e para submeter o mundo a nosso serviço? Deus, o grande orador, deu-nos a Palavra dEle para curar nossas palavras doentes. Só Jesus, a Palavra encarnada, pode restaurar a nossa fala para a glória de Deus! 

“O Deus que criou a fala e pela fala trouxe o mundo à existência, o Deus que usou palavras humanas para se revelar ao seu povo ao longo das eras, vem ao seu mundo como a Palavra, para pessoas que o abandonaram. Ele não é apenas um orador da verdade, Ele É a verdade, e somente nele há alguma esperança para nós. Somente na Palavra encontramos esperança para ganhar a guerra de palavras e falar novamente de acordo com o exemplo e o projeto do nosso Criador. A Palavra se encarnou porque não havia outro jeito de consertar o que está quebrado em nós”.

Nossa única esperança é Jesus. Jesus é a única esperança inclusive para os outros ou, sendo mais claro, eu preciso de Jesus para proteger as pessoas de mim! Já parou pensar assim? Que só Jesus pode proteger os outros de serem magoados, manipulados e dominados por nós? Enfim, o ponto mais importante aqui é o fato de que devemos reconhecer que estamos errados, ver em que estamos errados e, então, usar o poder de Deus — seu Espírito Santo em nós — para nossa transformação. O governo não é do acaso, nem meu, nem do Estado. O governo é do Rei Jesus. Que ele controle nossa fala para o serviço dele.

“Eu sou meu ídolo” e “Eu preciso de Jesus para proteger as pessoas de mim”! Assim, como consequência dessas duas verdades expressas por essas frases, nada mais natural do que o autor me tomar pela mão e fazer-me reconhecer que minhas palavras são palavras idólatras. 

“Os problemas com palavras revelam problemas do coração. As pessoas e as situações ao nosso redor não nos forçam a dizer o que dizemos; elas são apenas a ocasião para os nossos corações se revelarem em palavras”. 

A questão toda aqui que subjaz é poder. Quem tem poder sobre meu coração? Eu ou Deus?

“Jesus é o Rei”! Mas o que é ser Soberano? Falamos muito sobre a soberania de Deus, mas não conseguimos viver sob essa soberania nos detalhes da nossa vida. Decididamente, a minha conclusão é: uma boa teologia, bíblica, verdadeiramente crida e vivida de modo apaixonado, é a chave de tudo! O Rei quer nos levar a vivermos nossa “alta vocação”: usarmos nossas palavras para a glória dEle e para a edificação do nosso próximo!

“Por trás das circunstâncias há um Deus de amor que está trabalhando implacavelmente para nos tornar santos. O louvor que brota de corações de adoração é a única reação legítima a essas circunstâncias. Em vez de nos informar que Deus esqueceu de nós, as circunstâncias de nossa vida bradam que ele lembrou de nós e não nos deixará até que sua obra esteja completa! A compreensão real dessa verdade irá alterar muito o modo como falamos”.

“Seguindo o Rei pelos motivos errados” — você segue a Cristo por qual razão? Você tem fome de quê? Do pão físico ou do pão que Cristo (o da Bíblia) dá? Se temos fome de nossas necessidades, quando vermos que o pão que Jesus tem a nos oferecer é diferente do que esperávamos, faremos como as multidões e discípulos que abandonaram a Cristo? Ou reagiremos indignados de pedras na mão para atiramos em Jesus, por Deus não estar nos atendendo segundo a nossa vontade? Isto é sério e profundo.

“Falando em nome do Rei” resgata para a discussão o fato de que somos embaixadores de Cristo. Mas o que significa isso? Somos os olhos, ouvidos e boca do Senhor Jesus! Somos representantes do Rei onde quer que Ele nos tenha plantado. Temos uma mensagem — que é nossa missão. Mas não é só isso: “como”, isto é, o modo, a maneira, o método importa sim! Como falamos, nossas conversas, precisam espelhar a mensagem que trazemos. O fim disso, como representantes que encarnam a Cristo na terra, é que precisamos seguir o caráter de Jesus e não sucumbir às propostas fáceis do mundo e de nossa carne. Não é natural que oremos pelos nossos inimigos e que paguemos o mal que nos fazem com bem, portanto, precisamos confessar nossos pecados e também esta tentativa de representar a Cristo pela força do nosso braço. Não adianta! Ou dependemos totalmente do ES ou sempre nos veremos fracassados e sem crescimento espiritual. O livro nos confronta com a cosmovisão do evangelho: os sofrimentos e as perseguições que passamos são planejados por Deus com dois objetivos, a saber, tratar o nosso coração e dar testemunho aos nossos oponentes de que podemos resolver nossas diferenças no amor de Cristo!

“Chegando ao destino” apresentará atitudes que precisamos tomar na nossa vida: não ceder ao remorso, apossar-se da esperança do evangelho, examinar nosso fruto (“qual o fruto que tem sido produzido por sua comunicação?”), descubra suas raízes (pare de culpar sua família pelo mal que você produz hoje), busque perdão, ofereça livremente perdão, mude as regras (acerte com seu cônjuge que, toda vez que sua comunicação sair da linha, ele ou você tem o direito de erguer a mão e dizer que não foi assim que vcs combinaram), busque oportunidades redentoras para suas comunicações (exerça a sua alta vocação, que é glorificar a Deus e edificar o seu irmão com sua fala), escolha suas palavras, confesse suas fraquezas, e não dê oportunidade ao diabo.

“Cidadãos precisando de ajuda” — a Bíblia, principalmente o Novo Testamento, é insistente na palavra “mutualidade”. É imprescindível que a Igreja se ajude uns aos outros. A Guerra de Palavras, a vitória contra a minha fala ímpia, depende exclusivamente da ação do Espírito Santo na minha santificação. Contudo, quem me ajudará a lembrar sobre as promessas feitas por Deus na Palavra? A Igreja. A Igreja é, portanto, o lugar de confronto por excelência. Não sabemos como confrontar e isso tem destruído a vida de muitas pessoas. O que vemos por aí é o desejo de controlar, humilhar, manipular e se vingar — e, terrivelmente, isso tem sido a maneira como as pessoas confrontam. Mas para que serve o confronto? Para chamar o outro ao arrependimento e resgatá-lo para uma vida restaurada em que ele retorne ao projeto de adoração a Deus! Aquele que confronta não é melhor que o confrontado, pois ele só está nessa posição atualmente pela graça de Deus. Deus está nos chamando para ajudar os outros. “Somos auxiliadores precisando de auxílio!”. É o nosso chamado de todo dia — um chamado para todos na Igreja. “Sua visão (a de Deus) é nada além do que todos ministrando todos os dias”! Confronto é levar o outro à confissão dos pecados, ao arrependimento, mas também à perseverança e ao encorajamento à fidelidade até a vitória final.

“Na missão do Rei” — Qual a missão do Rei em que precisamos estar sintonizados e prontos a anunciá-la? A missão da reconciliação!

Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus — II Cor 5: 18–20.

Por isso, precisamos pensar de maneira redentora quanto aos relacionamentos que Deus têm trazido para nós. Deus quer nos usar em sua missão reconciliadora na vida dos outros!

“A única esperança para a nossa história é que podemos ser parte da história de redenção dEle. O único modo correto de abordar os eventos em nossas vidas é abordá-los de maneira redentora”.

“Primeiro o que é primário” — e o que é primário? O arrependimento! O verdadeiro arrependimento transforma o coração e transforma a vida. O nosso Deus oferece perdão, libertação, restauração, reconciliação, sabedoria e misericórdia. O primeiro passo para o arrependimento é aceitarmos humildemente o que a Bíblia diz sobre nós e ela diz que somos profundamente pecadores. Precisamos nos olhar no espelho da Palavra. Precisamos orar pelo fruto do ES em nós. Se queremos mudança em nossas vidas, precisamos lembrar quem somos, pecadores, e lembrar de quem Deus é do seu perdão.

“Vencendo a guerra de palavras” — O autor nos relembra que não estamos falando sobre vocabulário e nem técnicas, mas do controle dos nossos corações: precisamos “nos submeter ao Rei, descansar em seu controle amoroso e buscar representá-lo em nossos relacionamentos”. O ministério missionário não é um aspecto da nossa vida, mas um estilo de vida. Se queremos vencer essa guerra precisamos confessar que temos corações egoístas e perambulantes e nos comprometer com um novo modo de falar. Assim, o primeiro ponto é sabermos que palavras importam e elas podem ferir as pessoas. Aqui, o estudo é do texto de Gálatas 5. 13–6.2. 1. Vencer a guerra envolve o poder destrutivo das palavras; 2. Vencer a guerra significa afirmar a nossa liberdade em Cristo; 3. Vencer a guerra significa dizer não à nossa natureza pecaminosa; 4. Vencer a guerra significa falar para servir aos outros em amor; 5. Vencer a guerra significa falar de acordo com o Espírito Santo; 6. Vencer a guerra significa falar com um objetivo de restauração. Ele explica que vencer é uma jornada! Precisamos uns dos outros para alcançarmos esta vitória. Precisamos da Igreja!

“Escolhendo suas palavras” — o papel da Luella, esposa de Paul David Tripp, por todo o livro, fez-me lembrar de certa pregação do Rev Wadislau Martins Gomes, pregação ouvida entre 1995 e 1996, em que ele nos dizia, a partir do texto criacional de gênesis, sobre a diferença do papel do homem e da mulher como seres criados complementares. Lembro-me do Rev Wadislau falando sobre o papel da esposa, que é trazer o homem ao relacionamento com outros e não só consigo mesma. A liderança masculina, uma vez contaminada pelo pecado, tende a nos levar adiante, não ouvirmos conselhos, não querermos ser pastoreados, não darmos o braço a torcer, não nos arrependermos e voltar atrás. Assim, a mulher é chamada a nos fazer olharmos nos olhos dela, concentrar no outro, no ser humano, na relação afetiva. A esposa de Tripp, durante todo o livro, foi a ajudadora, aquela que ponderava, equilibrava e fazia-o “contar até 10”. E só assim iremos escolher sabiamente as palavras que devemos usar. Para isso, uma obra precisa começar primeiramente em nós: 1. precisamos confessar nossas necessidades a Deus; 2. Reconhecer a graça de Deus por mim; 3. precisamos dizer “não!” aos desejos e paixões de nossa natureza pecaminosa; 4. e agradecer a Deus pelo que ele está fazendo em nossas vidas e pela oportunidade de sermos usados para tratar outras vidas também. Enfim, precisamos nos despir do pecado e nos vestir de santidade, sabendo que, em nós, habita o Espírito Santo que luta em nós contra nossa carne e pela nossa santidade. SDG!

            Fábio Ribas

sábado, 11 de maio de 2024

União com Cristo e identidade sexual (XVII/2024)


“Cristo redime. Até mesmo nossas lutas, nossos fracassos e nosso sofrimento são redentores em Cristo. Mas há sangue envolvido. A redenção exige um cortar e lançar fora” (p.19).

Livro apaixonante! Rosaria nos dá novamente seu testemunho de conversão, mas resumidamente. O ponto alto, contudo, é que ela já é cristã de longa caminhada neste segundo livro. Ela agora pode tratar do cristianismo de maneira mais madura. Este livro é muito melhor que o primeiro na minha opinião. Além de ter uma teologia calvinista e saudável, Rosaria usa do seu conhecimento como professora de literatura, para nos falar dos erros de uma hermenêutica pós-moderna sobre a Bíblia. O próprio subtítulo — “Pensamentos adicionais de uma convertida improvável” — já nos indica uma continuação do seu primeiro livro (aqui). Ela fala de salvação e santificação, lembrando-nos que, em Cristo, estamos equipados para lutarmos contra nossos pecados e não cedermos aos nossos desejos caídos.

A tese central é que nossa identidade não está no que fazemos ou no que deixamos de fazer e nem na nossa orientação sexual, mas na nossa união com Cristo e no que Ele já fez e ainda está fazendo por mim. Antes de ser heterossexual, homossexual, ou quaisquer outras coisas que a chamada “orientação sexual” queira definir sobre nós, a verdade é que fomos criados por Deus e Ele nos fez da maneira certa. Assim, precisamos buscar nEle nossa identidade e não numa construção social, na psicologia ou na cultura. Não são os meus desejos ou pecados que devem definir minha identidade, mas Deus é quem sabe quem eu sou. E o que eu sou está definido pelo que Cristo fez por mim e ainda está realizando no meu coração!

“Quer a dor que você enfrenta agora seja a consequência do seu pecado, quer seja do pecado de outros, na providência de Deus e na fé salvadora, Romanos 8.28 ainda reina: “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito”. Não é a ausência de pecado que o torna um cristão. É a presença de Cristo em meio à sua luta que enaltece o cristão e o diferencia no mundo. A conversão real dá-lhe a companhia de Cristo enquanto você caminha pelo vale da sombra da morte. Na verdade, a queda fez tudo cair — incluindo meus desejos mais profundos. E isso aconteceu sob o olhar providencial de Deus, não por suas costas” (p. 21).

Somos chamados a lutar contra o pecado. O pecado que habita em nós, ainda que novas criaturas. Na leitura deste livro, descobri Thomas Watson. Quero ler mais este autor.

Rosaria falará também desta expressão “orientação sexual”. Ela demonstra que o mito da orientação sexual tende a nos fazer reduzidos ao aspecto sexual, aceitando o que Freud disse que, então, o sexo é o impulso que nos definiria. A partir dessa ideia, a autora mostra que termos aceito o termo “homossexualismo” reduziu a discussão exatamente a isto: que nossa identidade se circunscreve à nossa orientação sexual. Afinal, como cristãos, devemos dividir o mundo sexualmente? Nossa identidade não está nem mesmo na nossa heterossexualidade, uma vez que ela também foi atingida pelo pecado. Nossa identidade reside no fato de termos sido criados à imagem de Deus, mas só podemos restaurar plenamente essa identidade em união com Cristo.

Rosaria enfrentará a contradição da expressão “cristão gay”. Ela tentará achar uma resposta para o que quer dizer ser gay. Nesse mesmo capítulo, há uma discussão sensacional sobre comunicação e o poder que as palavras têm tanto para unir como para dividir. A partir de um diálogo com uma amiga, a autora enfrentará o fato do problema da “cura gay” e que, sendo a santificação um dom de Deus, ela pode não ocorrer na velocidade que gostaríamos. Devemos compreender que, ainda que sejamos cristãos redimidos, estamos em santificação, e portanto e por isso mesmo, devemos lutar perseverantemente contra desejos sexuais indevidos.

A autora irá nos desafiar a vivermos em comunidade: em casa, na vizinhança e na Igreja, que é a comunidade pactual. Hospitalidade, na raiz da palavra que a originou em grego, tem a ver com “amor ao estranho”. É um enorme desafio para estes tempos atuais em que idolatramos a privacidade e tememos os estranhos (que podem ser psicopatas e, talvez, só chatos mesmo).

Seria muito, mas muito difícil resumir a envergadura teológica apresentada neste livro profundo, sincero e bíblico. É preciso lê-lo! Leia agora!

            Fábio Ribas


PS — Uma das questões mais intrigantes durante a leitura de um livro tão acertadamente teológico é um deslize profundo da autora, que só piora quando penso ser este um livro que fala sobre “identidade”. Foi um erro logo sobre a identidade de Cristo. Deixei para falar isso num “postscriptum”, pois o livro é sólido e puritano no melhor sentido e tradição da palavra, mas, na página 116, ela comete um sério erro teológico ao afirmar que “a Igreja Primitiva confirmou que Jesus tinha uma natureza, mas duas vontades”. Procurei e descobri que ela escreveu isso mesmo (está no original em inglês), então, não é um erro de tradução. O livro passou na mão de tanta gente boa, tanto lá nos Estados Unidos como aqui no Brasil, e ninguém fez nenhuma consideração ou uma nota de rodapé corrigindo isso. Veja, tenho para comigo que precisamos todos estar atentos não apenas ao nosso pecado, mas também ao mundo espiritual, pois não deixa de ser uma ironia que um livro que busca resgatar nossa identidade em Cristo cometa um erro tão grave acerca da identidade do próprio Jesus.

Foi um deslize, sem dúvida, uma vez que, mais adiante, ela se refere às duas naturezas de Cristo. Contudo, espero que seja corrigido em próximas edições.

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)

Carlos Nejar é um poeta recém-descoberto. Todavia, ele publica vasta e variada literatura desde 1960. O currículo a seguir, retirado de uma ...