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sábado, 28 de outubro de 2023

A culpa é do cérebro? (VIII/2023)

 

 
    É tudo culpa da química cerebral? É tudo uma questão de descobrirmos a pílula ou a alteração química correta e todos os nossos problemas de comportamento estarão resolvidos? Quem está no comando?

    A Bíblia é o crivo pelo qual avaliamos as ciências cerebrais? Ou a Bíblia é relevante apenas para "questões de alma" e a ciência para as questões da química cerebral? Dividimos a relação corpo e mente a este ponto, semelhantemente ao erro de dividirmos a vida num compartimento secular e noutro sagrado?

    Quantas perguntas precisam ser respondidas com seriedade, carinho e amor, mas, antes de tudo, quaisquer perguntas precisam encontrar suas respostas na Bíblia. Ou não? Há áreas que a Bíblia não cobriria? Mas não pregamos aos quatro cantos do mundo que a Bíblia é a nossa única regra de fé e prática? Fé em Deus, na Sua salvação e no Seu cuidado sobre todas as áreas da nossa vida? Tanto a área do nosso coração como a área do nosso corpo físico? E se a Bíblia é a nossa única regra de fé e prática, não estamos afirmando que ela é que orienta todos os nossos comportamentos, nossa prática de vida diária? Afinal, a Bíblia é para assuntos "espirituais" e o psicólogo para assuntos da "mente", da "psiquê", da "alma"? Quanto mais aprofundamos mais vemos a confusão em que a Igreja se meteu, quando delegou "parte" do ser humano à "ciência", ficando apenas com "batismo, casamento e velório"!
    
    Há uma teoria que prega que somos tricotômicos   - alma, espírito e corpo  -  e isso apenas piora ainda mais o enredo, pois fatiamos o ser humano e departamentalizamos essas partes para o médico, para o psicólogo e para o pastor, cada qual receitando seus remédios para a parte que seria de sua responsabilidade. Entretanto, nada disso é bíblico! A antropologia bíblica fala de um ser humano de duas partes  -  material e imaterial. A confusão "alma e espírito" (existências além do corpo) fica por conta de uma exegese rasa, que não leva em conta que há muitos sinônimos tratando de uma mesma realidade nas Sagradas Escrituras: coração, espírito, alma etc. O ser humano possui um corpo material, que é a expressão física de seu coração! Se o coração adoece, o corpo adoece. Se o corpo padece, evidentemente que o coração recebe as influências desse corpo aberto ao mundo que o cerca. Não podemos complicar o que a Bíblia ensina como algo simples nessa relação. Para mim, contudo, o maior problema é negligenciarmos que as demais ciências, embora sejam muito boas para descrever a situação que aflige o homem, tratam essa situação superficialmente, pois ciência alguma apresentará o remédio correto para o coração do homem, uma vez que ela está assentada em humanismos e antropocêntrismos, que descartaram a interpretação de Deus sobre a nossa história humana. As ciências possuem uma epistemologia que abstrai Deus da realidade do ser humano não levando em consideração os dados bíblicos da Queda e da natureza totalmente depravada do homem.

    Infelizmente, nessa relação Bíblia e psicologia (ou psiquiatria etc), vemos uma falta de diálogo compreensivo, que nos deixa surpreendidos. Há muito espantalho apanhando, enquanto o que realmente está à mesa para discussão fica de lado. Para contribuir na discussão, colocarei abaixo minha resposta dada a alguém que me fez as seguintes perguntas: "Você crê mesmo que, mesmo Deus dando inteligência para termos técnicas na psicologia e ações terapêuticas na psiquiatria, o crente não pode usar (a ciência), como dizem os defensores desse Aconselhamento? Não podemos ser integracionistas?". A pessoa que me fez essas indagações ainda completou dizendo-me: "Disseminar fundamentalismo é complicado". Ao que eu respondi:
    
    "Eu creio no poder da Palavra de Deus. Psicologia e afins são assentados em filosofias humanistas, que, por isso mesmo, são muito bons para descrever o mal, mas não para transformar, nem regenerar e, muito menos, santificar os corações. Só a Palavra vai verdadeiramente à situação do coração do homem. Antropologia bíblica é tudo! Se não se sabe a extensão da total depravação do homem e nem o poder regenerador e santificador da cruz, então, no máximo, vc vai criar dependentes eternos de consultórios humanistas e de uma indústria farmacêutica que é a maior lucradora com tudo isso. Integracionismo é acreditar que o ser humano carnal entende das coisas espirituais, quando a Bíblia é clara em dizer que só os espirituais podem julgar todas as coisas (I Cor 2.12–16). Não há critérios bíblicos para o integracionismo, por isso mesmo, nós, Reformados, é que temos que ir ao mundo e julgá-lo. Do contrário, integracionismo vira sincretismo. E aí, já viu, não é? Na verdade, portanto, além de uma questão de antropologia bíblica, há também um problema de epistemologia. A epistemologia reformada precisa mostrar ao mundo a interpretação de Deus sobre todas as coisas. E não o contrário. E por aí vai".

    Por todo esse antigo paradigma e também a insistência em se discutir espantalhos, tanto de um lado quanto de outro, é que a leitura de um livro como este é maravilhoso! Além de deixar essas discussões mais precisas, Edward T. Welch também ampliou essa percepção do que poderia estar relacionado ao corpo e à mente. Apesar de sermos corpo e mente e existirem questões claras que competem a um e ao outro, esse dualismo não pode ser visto sob uma ótica pagã. 

    A proposta cristã é o que ele chama de dualismo mínimo. É certo que não podemos chamar de pecado o que são apenas fraquezas de um corpo que nos limita naturalmente. A fraqueza de nossa memória é parte de uma realidade cognitiva do corpo, mas não um aspecto moral do coração! Compreender isso é importantíssimo!
    
    Quatro princípios compartilhados por Welch e que regem a relação mente-corpo: 1º) o cérebro não pode fazer uma pessoa pecar ou manter uma pessoa seguindo a Jesus em fé e obediência; 2º) toda capacidade de uma pessoa  -  forças e fraquezas cerebrais  -  são a única coisa que é digna de cuidadoso estudo; 3º) problemas cerebrais podem expor problemas do coração; 4º) corações pecaminosos podem levar à doença física, e corações justos podem levar à saúde.

    Há o capítulo específico sobre a doença de Alzheimer e demências. Aqui, o autor fala sobre o risco desse excesso de medicação passada aos idosos e o perigo do falso diagnóstico de Alzheimer, exatamente, pelo excesso de medicação. E sobre os estágios que vemos as pessoas enfrentando na luta contra o Alzheimer.
    
    No capítulo sobre traumatismo craniano, após sua leitura, eu orei para que as famílias que enfrentam estas crises dentro de suas casas possam se sentir fortalecidas e também ajudadas por livros como esse de Welch. São realidades difíceis, em que nós também precisamos nos doar para ajudar essas famílias.

    Há também um capítulo só sobre depressão. Muito bom. Acredito que quanto mais lermos sobre isso, mais teremos condição de ajudar as pessoas que sofrem dessa dor.

    Não há dúvida que há uma hiperdiagnosticação de TDA hoje em dia. E é isso o que nos fala o capítulo sobre esse tema. Como consequência dessa hiperdiagnosticação, há uma hipermedicalização de crianças e adultos, a ponto de muitos médicos estarem voltando atrás nessa onda. O importante é discernir entre os problemas físicos e os espirituais. Crianças precisam ser pastoreadas e não só adultos. Capitulo ótimo!
    
    Homossexualidade! Wow! Que capítulo delicado e honesto. E concordo com tudo o que o autor disse. Capítulo instigante! Quero deixar ainda, a citação abaixo e dizer que, na área de Aconselhamento bíblico, há livros imperdíveis e este de Welch é, indubitavelmente, um deles. Um livro para ajudar quem quer ajudar o outro.
    
    A Bíblia nos empurra com força para enfrentarmos as motivações que direcionam ao Deus que governa todas as coisas. Welch argumenta que vícios revelam o que ou a quem nós adoramos.
    
    Iremos adorar nossos ídolos ou iremos adorar a Deus? Desta perspectiva, uma garrafa de álcool é um dos muitos ídolos a quem servimos. Ela [a adicção ou vício] compete por nossa devoção junto com dinheiro, prazer, fama, sexo, a opinião dos outros, e outros ídolos populares do nosso tempo.
    
    Quando vemos as realidades espirituais por detrás de nossos comportamentos adictivos, encontramos o que servimos e o que amamos. Amaremos e serviremos a Deus, ou amaremos e serviremos a nossos ídolos. Ídolos existem em nossas vidas, porque os amamos e os convidamos. Mas, uma vez que os ídolos encontram um lar, eles são ingovernáveis e resistentes a saírem. Na verdade, eles mudam de servos de nossos desejos para serem nossos senhores. Isto ocorre porque a Bíblia diz que primeiro escolhemos as substâncias da adicção, para, então, a substância da adicção nos escolher.

    "Nós podemos tanto ter a bênção de servir ao mais elevado Deus que nos ama, ou teremos a maldição de sermos escravos de nossos desejos e os ídolos que os simbolizam. Isto se deve à abordagem bíblica da adicção ter que dizer mais do que simplesmente "pare com isso". Ela percebe que os adictos estão tanto no controle como fora de controle. Este aspecto dual da experiência de adicção   - a rebelião e a escravidão  -  é o que comumente chamamos de pecado, e esta é a mais profunda explicação sobre adicção superando qualquer metáfora de doença" - Edward T. Welch.

Fábio Ribas

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O Deus da Festa e a Festa de Deus

 

    A partir da parábola da grande festa (Lc 14: 16–24), Jesus alerta que, embora o convite da salvação seja para todos, não serão todos os que participarão da festa ali narrada. A parábola nos fala de um homem que prepara uma grande festa, mas a festa é menosprezada pelos convidados oficiais. Então, são chamados os desprezados pela religião daquela época, aqueles que não poderiam dar nada em troca ao dono da festa, caso fossem convidados. A parábola apresenta também um último grupo que se vê obrigado a participar da festa, porque ainda haveria espaço naquela casa. Enfim, com essa parábola, Jesus anuncia aos judeus a plenitude dos gentios — o milênio da pregação da Igreja — ou seja, a preparação para a Festa das festas.

    O povo judeu percebeu, desde cedo, que seu Deus era um Deus de festa. O judeu celebrava, embora não houvesse nenhuma base bíblica para isso, o 1º dia do ano deles como uma data separada para comemorar o que seria o dia em que Deus criara os céus e a terra. Há, portanto, quem entenda que João, no primeiro capítulo de seu evangelho, tenha exatamente exposto Jesus no contexto dessa festa da criação, para a qual o judeu dera o nome de “Festa da Lua Nova”. De qualquer modo, a criação de Deus é uma festa, uma sublime orquestração sinfônica de graça e beleza. Festa ornamentada ainda pela celebração do 1º casamento e que atinge sua sublimidade quando Deus convida o homem e a mulher para celebrarem com Ele no sétimo dia. Entretanto, desobedientes, fomos expulsos daquela festa bonita. Como pecadores, perdemos o direito de comer do fruto da árvore da vida.

    O desenrolar da história mostra como sentimos falta daquela festa original, mas, por outro lado, como estamos totalmente incapazes de celebrar Deus novamente. Vemos, a partir da expulsão da festa bonita de Deus, que tentamos reparar o estrago que fizemos realizando nossas próprias festas. Por isso, o que encontramos na história de Caim, nas gerações perversas do tempo de Noé (e na embriaguez deste também) e na torre de Babel são simulacros, distorções, corrupções daquela festa bonita de Deus. Todavia, o Dono da festa já decretara preparar, separar e ensinar um povo sobre essa festa bonita da qual, inevitavelmente, sentimos saudades. Aqui, as narrativas de Sodoma e Gomorra, as festividades cultuais dos povos que cercavam as famílias dos patriarcas hebreus e também as festas coloridas e sobejadas dos egípcios são outros exemplos da depravação das festas empreendidas pelos seres humanos. Mas, então, que festa afinal é essa Festa de Deus?

    Moisés foi a faraó e disse que o Dono daquele povo os estava chamando para festejar no deserto (Êx 5:1 e 10:9)! As festas na história de Israel deveriam ser sinais de uma Festa maior e não um simples retorno àquela festa do Éden. Deus deu festas ao seu povo: a festa da Páscoa e dos pães asmos; a festa do Pentecostes; a festa dos Tabernáculos. E por todo período anterior ao nascimento de Jesus, outras festas foram instauradas pelo povo: o Dia da Purificação e a Festa da Dedicação são exemplos. Todavia, o povo de Israel falha em aceitar o exclusivismo dessas celebrações: a festa é de Deus e deve ser para Deus somente! Não podemos realizá-las como queremos, segundo nossas imaginações e, muito menos, realizar festas para Deus e para Baal também! Aqui, Elias surge como o profeta que restaura a festa ao verdadeiro Deus, no entanto, o povo logo se esquece do fogo que testemunhou descer do céu. Por isso os cativeiros da Assíria e da Babilônia: “façam, então, festas aos deuses deles”, sentencia Deus, o Dono da Festa.

    Mas, afinal, que Festa é essa festa exclusivista de Deus? Na narrativa do Evangelho segundo João, este ressalta que as festas do AT eram festas que discorriam sobre as características do Único que poderá nos levar de volta à festa bonita de Deus. Desse modo, eis Jesus conforme nos apresenta João a cada capítulo do Evangelho: Jesus é o autor e a razão da festa da criação; numa festa de casamento, eis que velhas coisas se tornam novas por causa de Jesus; na festa da Páscoa, Jesus fala sobre o novo nascimento; às vésperas da festa de Pentecostes (as primeiras colheitas), Jesus é chamado de Salvador do mundo; na festa dos Tabernáculos, Jesus cura e perdoa os nossos pecados; nova festa da Páscoa e Jesus é o Pão do céu; nova festa dos Tabernáculos e Jesus é, mais uma vez, o protetor do povo: a fonte da água, a água do ES; a festa do sábado — Jesus é o nosso sábado; na festa da Dedicação (quando os judeus comemoravam a retomada do templo que fora dominado por Antíoco Epifânio), Jesus é o Templo novo; e o grande desfecho dessa apresentação do evangelista tem como cenário, mais uma vez, a festa da Páscoa, na qual Jesus é a própria Ressurreição. Assim, conforme João, eis que Jesus é a nossa Festa! As festas do AT eram sombra e não necessitavam mais ser celebradas, pois o perfeito veio e o perfeito é Jesus (Col 2:19). Jesus é o Dono da Festa, a Festa é para Jesus, Jesus nos convida para a sua Festa — este é o evangelho da Salvação! Pois, agora, em Cristo Jesus, há uma Festa maior e muito mais bonita.
    
    Mas qual, exatamente, é essa Festa ainda mais bonita, a Festa diante da qual todas as outras eram apenas sombras? A Festa das bodas do Cordeiro: o casamento do Filho de Deus com sua noiva! Aleluias! Uma festa muito mais bonita do que a do casamento de Adão e Eva e muito mais superior do que a festa das bodas de Caná. A Festa que já havia até mesmo sido anunciada pelos profetas do AT. Jesus vai se casar com a sua noiva e, neste exato momento, precisamos anunciar a todos os povos que a noiva de Jesus é a Igreja pela qual ele morreu na Cruz do Calvário!

    Por fim, o tema da festa se apresenta triunfante: “Fiquemos alegres e felizes! Louvemos a sua glória! Porque chegou a hora da festa de casamento do Cordeiro, e a noiva já se preparou para recebê-lo. A ela foi dado linho finíssimo, linho brilhante e puro para se vestir. O linho são as boas ações do povo de Deus. Então o anjo me disse: — Escreva isto: “Felizes os que foram convidados para a festa de casamento do Cordeiro!” E o anjo disse ainda: — São essas as verdadeiras palavras de Deus” (Ap 19: 7–9).

    Comecei este texto com uma mensagem tirada de uma parábola contada pelo próprio Jesus: o convite da salvação é para todos, mas não são todos que participarão da Festa bonita do casamento do Cordeiro Jesus. “Felizes as pessoas que lavam as suas roupas (no sangue do Cordeiro), pois assim terão o direito de comer a fruta da árvore da vida e de entrar na cidade pelos seus portões! Mas fora da cidade estão os que cometem pecados nojentos, os feiticeiros, os imorais e os assassinos, os que adoram ídolos e os que gostam de mentir por palavras e ações” (Ap 22:14 e 15).

    Muitos cristãos que trabalham num contexto indígena de culturas bem específicas e singulares, em que as festas são um elemento importantíssimo, já sabem que muitas das festas indígenas na verdade são luas que escondem uma triste e fria face oculta. Sabem que, do outro lado dessa alegria em festejar, em dançar e se congregar com seus parentes e se pintar, há relações cruéis de apaziguamento de espíritos que precisam ser aplacados de suas investidas opressoras para que possa haver uma boa economia diária na vida da comunidade. Creio, então, que a Bíblia nos afirma que há uma Festa verdadeiramente bonita e feliz oferecida pelo próprio Deus aos povos indígenas também. O receio de muitos indígenas (influenciados pelos inimigos do Evangelho) é que os missionários venham a proibir as alegrias de suas expressões culturais. Ao contrário, e este é o foco deste meu texto, precisamos anunciar a eles a alegria e o regozijo da reconciliação com Deus na celebração da Festa bonita de Deus! Portanto, ouçamos: eis o convite sendo feito pelo próprio Noivo, o Dono dessa Festa. E que essa bela noiva indígena, lindamente ornamentada, possa também estar preparada para responder ao seu Noivo: “Venha! Venha! Venha! Eu também quero festejar”!

 Fábio Ribas

O mundo é a imagem de algo


ton kosmon eikona tinos — frase em O Timeu, de Platão

    “Aqui nesta ilha, o mar… Tanto mar! Ele transborda de tempo em tempo. Ele diz sim, então não, então não. No azul, na espuma, num galope, ele diz não, porque não. Não pode parar. Meu nome é mar, ele repete, batendo na pedra sem convencê-la. Então com sete línguas verdes, de sete tigres verdes, de sete mares verdes, ele acaricia, beija, molha e bate no peito, repetindo seu próprio nome”.

    Quando a personagem do poeta Pablo Neruda termina de recitar os versos acima, o carteiro Mário tenta dizer o que foi para ele ouvir aquelas palavras. Enjoado pelo ritmo do vai-e-vem do poema, o carteiro diz que, enquanto ouvia, sentiu-se como um “barco que se bate em meio ao movimento das palavras”!… Lindo, não?
    
    Realmente, o filme é de uma leveza, de uma sensibilidade e repleto de sentimentos bons e agradáveis… O amor! O amor é esta força que a tudo move e conduz. Os versos de Neruda são o instrumento para a transformação do carteiro, um homem simples e quase analfabeto, mas que descobre o poder das palavras. A tese do filme é que a poesia, a beleza, o amor são o que pode renovar, acender e fazer ascender o ser humano.

    Contudo, não sei se de propósito ou não, o filme revela também o que pode matar o amor, a beleza e a sensibilidade do ser humano: o comunismo! Intencional ou não, vi que o filme encaminhou-me a essa verdadeira conclusão. O engajamento político ideológico é uma deformação do amor. O comunismo como meio de transformação é a própria negação do Belo. A vida é silenciada pela morte. O amor, que começara no sorriso de Beatriz, um sorriso que se espalhava como as asas de uma borboleta, agora, termina, finda-se inapelavelmente sob as mentiras de Lenin e Marx. Assim, a verdade é morta pela mentira. A felicidade desfaz-se na tristeza. E a poesia é arrancada da terra fértil do coração humano pela foice e pelo martelo!

    Logo após os versos do personagem de Neruda que abriram este texto, antes que a fealdade se fizesse presente, dando fim a tudo o que o amor revelou e conquistou no filme, admirado por ter criado sua própria metáfora, o carteiro faz uma pergunta: “Quer dizer então que o mundo inteiro, o mundo inteiro como o céu, o mar, como a chuva, as nuvens, etc, etc, quer dizer, então, que o mundo inteiro é uma metáfora para alguma outra coisa qualquer?”.
    
    Este é o caminho da vida: a descoberta do Belo, da poesia, esse espanto diante de si mesmo e do mundo, leva-nos a indagar se não há, então, alguma outra coisa, algo do qual sejamos todos metáforas escritas por alguém. O mundo não seria uma mensagem, versos, imagens que estariam comunicando algo a todos nós (Rm 1: 20)? Esta é a pergunta que os místicos, os filósofos e os poetas fizeram tendo, em si mesmos, a mesma paixão que o carteiro demonstrava diante do mundo físico, como que se este mundo fosse uma cortina que nos escondesse algo por trás da ribalta.
    
    Neruda, o poeta lenista-marxista, obviamente, não possui nenhuma resposta. A resposta já percebida por tantos poetas gregos e pelos filósofos Platão e Aristóteles, essa resposta universal já intuída também por Filo de Alexadria, fora finalmente dada pelo advento de Jesus Cristo na história humana. Neruda não nos dá a resposta no filme, porque o comunismo é um materialismo que não supre a sede de beleza que há no homem, sede traduzida na busca histórica e humana pela metafísica. O comunismo não irá aceitar a resposta cristã que compreendeu que Jesus é a união de todo dualismo, de toda dicotomia e de toda separação entre a física e a metafísica — a encarnação de Jesus é a resposta de Deus aos homens.

    Encerro com as palavras de Basílio, o grande. Este pai da Igreja já havia percebido que a alegoria era o método hermenêutico preferível para se aplicar sobre a Natureza e que esta, portanto, era um texto poético escrito por Deus e repleto de ensinos aos seres humanos. Se Neruda não soube responder ao carteiro, termino com a resposta de Basílio:

    “[A lua] representa um notável exemplo da nossa natureza. Nada é estável na humanidade. …Assim, a vista da lua, fazendo-nos pensar nas velozes vicissitudes das coisas humanas, deve ensinar-nos a não nos orgulharmos sobre as coisas boas desta vida, nem gloriar-nos em nosso poder, nem sermos atraídos por riquezas incertas. …Se você não pode contemplar a lua sem tristeza quando ela perde seu esplendor por minguar-se gradual e imperceptivelmente, quanto mais abatido deveria ser à vista de uma alma, que, depois de ter possuído a virtude, perde sua beleza por negligência e não se mantém constante a suas afeições, mas é agitada e muda constantemente porque seus propósitos são instáveis”.

Fábio Ribas

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Antropologia da amizade

 

Shrek: Pra sua informação, há mais do se imagina nos ogros.

Burro: Exemplo?

Shrek: Exemplo? Ok… Ah… Nós somos como cebolas.

Burro: Fedem?

Shrek: Sim. Não!

Burro: Oh. Fazem você chorar.

Shrek: Não.

Burro: Oh, deixa eles no sol e eles ficam marrons e soltam aqueles cabelinhos…

Shrek: Não! Camadas! As cebolas têm camadas, os ogros têm camadas. A cebola tem camadas, entendeu? Nós dois temos camadas.

Burro: Oh, vocês dois têm camadas. Oh. Sabe, nem todo mundo gosta de cebolas. Bolo! Todo mundo adora bolo! E tem camadas.

Shrek: Eu não ligo pro que todo mundo gosta! Ogros não são como bolos.

Burro: Sabe do que todo mundo gosta? Pavê! já conheceu alguém que você falasse: "Ei, vamos comer pavê?" e ele dissesse: "Céus, não gosto de pavê"? Pavê é delicioso!

Shrek: Não! Sua besta ambulante de irritação constante! Os ogros são como cebola! Fim da história, bye bye, tchauzinho."

Do filme Shrek 1
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    Inevitavelmente, avaliamos o outro pela mesma régua de nossa cultura. Entretanto, nesta trajetória a que chamamos "vida", as minhas descobertas mais fascinantes nunca se deram propriamente por essa régua (que, indubitavelmente, também carrego na mochila de minhas experiências), mas, antes, minhas mais maravilhosas descobertas se deram pelo que descobri a partir do olhar do outro.

    Explico-me. Por exemplo, frequento uma igreja pequenininha de uma cidadezinha do interior do Brasil. Nesta igrejinha, embora de poucos membros, há nela estrangeiros, brasileiros e indígenas. Há pobres e ricos. Há bêbados e sóbrios também. Entre os brasileiros, há os mato-grossenses, goianos e sulistas (pelo menos). Entre os indígenas, há pelo menos três culturas de línguas diferentes. Na cidade, esbarramos sempre com pessoas do mundo todo: franceses, alemães, japoneses (pelo menos). Há indígenas de mais de dez povos de línguas e culturas diferentes passeando pela cidade. Assim, estar com pessoas e comunidades tão diversas da sua própria cultura nativa é uma aventura que se desenvolve em algumas etapas (ou "camadas" nas palavras do Shrek). Vejamos.

    A primeira camada dessa cebola, como já disse, é quando descobrimos o outro medindo-o por nós mesmos. Você avalia, enquadra, supõe, inquire o outro pela régua que você trouxe dentro da sua própria bagagem. E é tola presunção iluminista quem não assume isto: que, primeiramente, sempre olhamos o outro com os nossos próprios olhos.
    
    Corta-se um pouco mais a cebola e há a troca, camada mais profunda na construção de qualquer conhecimento sobre o outro. O outro, então, passa a perceber a si mesmo e à própria cultura como algo interessantíssimo, uma vez que ele percebe que há alguém tão interessado nas opiniões e crenças dele acerca de quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Nesta altura do encontro, revelamos ao outro os detalhes maravilhosos que ele mesmo nunca antes se dera conta sobre si mesmo. Ao nos encontrarmos com alguém, levamos esse alguém a encontrar-se consigo mesmo, esta é a grande e maravilhosa verdade. O mais intrigante nessa segunda etapa é que ela nos coloca diante da próxima camada e é aqui, neste ponto de decisão, que a maioria de nós volta atrás, desiste, fecha-se novamente. É que aquilo que vemos acontecer com o outro acontece conosco também, pois revelar ao outro os detalhes da cultura dele nos chama a atenção para a nossa própria cultura. Assim, encontramo-nos conosco. É uma auto-descoberta. Uma auto-avaliação.
    
    Mas há ainda uma camada mais profunda. É quando o outro passa a avaliar a minha cultura! Então, nos vemos como objetos da pesquisa do outro, do olhar do outro. Poucos se deram a oportunidade de alcançar e saborear este momento de encontro, porque é exatamente neste estágio que ferimos a nossa egocentricidade e nos colocamos à deriva, à mercê do outro. É aqui que, finalmente, entrega-mo-nos e nos deixamos inverter os papéis: o pesquisador-pesquisado, o "olheiro-olhado". A despeito das ferramentas técnicas que o outro não possua, desde a nossa chegada, ele já estava ali nos observando e aprendendo como nos observar também. Todavia, agora, ele somará o que aprendeu do nosso jeito de ver com a sua própria maneira de observar o outro (veja, agora já me apresento como o outro de alguém!). Aqui, e somente aqui, neste encontro entre outros, é que finalmente se dá o ambiente propício para trocarmos nossos corações: a amizade. A amizade é e será sempre só aos que se permitem um ao outro. A amizade é um contrato, um rito, uma promessa, uma aliança, mas, antes de tudo, é a decisão de se expor ao outro, de ser cortado desde a camada mais superficial até o centro dessa nossa cebola.
    
    Ouso chamar tudo isso que estou escrevendo de antropologia da amizade. É a trajetória persistente do amor e da paixão, sentimentos inevitáveis aos que se permitem "coletar, elicitar, organizar e se analisar" pelo olhar do outro. Evidentemente, sei que tudo isso é uma experiência que poucos, muito poucos, viverão plenamente. A verdadeira amizade é um exercício diário, uma decisão constante, uma perseverança insistida entre um burro e um ogro. Sim, no fim da última camada, a conclusão é que o outro, o amigo, será aquele que me amará sabendo quem verdadeiramente eu sou: burro ou ogro (ou um pouquinho dos dois!). E eu a ele o amarei também, seja ele um burro ou um ogro. Não esquecendo que burros podem ser "uma besta ambulante de irritação constante" e ogros podem ser mesmo, em todos os sentidos, como cebolas. E, sim, cebolas fedem! E, cedo ou tarde, por algum descuido nosso ou simplesmente pelo fato de serem cebolas, é inevitável que nossos amigos nos façam chorar (e nós a eles).

    Assim, nesta antropologia da amizade, preciso compreender que descascar cebolas é uma arte e ter amigos burros também. O problema é que somos todos muito impacientes uns com os outros. Vivemos tempos em que o amor de muitos já se esfria. Mas, como eu disse acima, fugimos do outro, porque não queremos nos encontrar com nós mesmos. Contudo, ainda há uns poucos que ficam e que insistem em nos ver umas duas ou três camadas a mais por dentro. Acho que é a estes que o tempo, enfim, nos leva a chamar de amigos.

PS - Um dos textos que, há muitos anos, sempre apresento aos meus alunos de Comunicação. Escrevi a partir dessa vida maravilhosa que Deus nos levou para viver. Obrigado, Jesus!

Fábio Ribas

Aingohegei e dedilhar

 

    Era a minha primeira semana de aula na aldeia com o povo.

    “Vem cá. Senta aqui”, disse, indicando com o dedo o novo lugar para Tali sentar. Contudo, quando acabei de dizer essas palavras, insistindo que ele saísse lá de trás e viesse sentar mais próximo de mim, todos na sala riram. Eu dizia o nome “Tali” e apontava para o seu novo lugar na sala de aula. Fazia gestos com a mão, chamando-o para frente e indicando ao lado de quem ele deveria se sentar agora. Assim, tinha certeza que meus alunos todos estavam me entendendo… Mas eles riam. “Venha, Tali, senta aqui ao lado da Kassi”, eu insistia, batendo com a palma da mão aberta sobre o banco vazio ao lado da Kassi.

    Comecei a perceber que alguma coisa constrangedora estava acontecendo. Tali passava a mão pela cabeça várias vezes e começou a tentar me dizer que não, não viria. Toda essa situação deve ter durado uns vinte segundos apenas, mas para mim já se estendia numa eternidade de risos nervosos.

    - Professor — finalmente socorria-me o Professor indígena que entrava para me ajudar nesses momentos, mas que até ali não se manifestara porque também estava rindo desse caraíba engraçado — Professor, o Tali não pode sentar aí. A Kassi é esposa dele…
      - Ah… Ele não pode sentar ao lado da esposa!? 
    - Não. Disse-me o Professor indígena. Então, diante desse irremediável fato cultural, lá se ia minha ideia de fazer um “trabalho em grupo”. Vi que não poderia simplesmente reunir os alunos uns aos outros, porque eles não sentariam, por exemplo, perto de suas esposas.

    Mas havia outras questões que fui descobrindo por causa da Escola. Uma delas é que ao tentar fazer um exercício oral de “esquerda, direita, atrás, na frente”, surgiu novo momento de risadas. Perguntei a um deles quem estava sentado à frente:

    - Professor, é esse aqui. Respondeu-me apontando para o colega da frente.
    - Sim, mas qual o nome dele?
    - Professor, não posso dizer. Ele é meu cunhado.
    - Ah…!

    A Escola sempre foi um momento mágico de aprendizado e creio que essas “gafes culturais” nos aproximaram muito uns dos outros. Ríamos e aprendi a rir com eles esse riso transcultural gostoso pelo estranhamento com o outro. O outro é outro mundo. Um mundo rico, bonito e cheio das suas coisinhas que precisam ser descobertas para que se possa alcançar uma comunicação efetiva. Assim, como não foi imensa minha alegria quando, ao terminar a aula um pouco mais cedo, vi que eles não saíam da escola. Disse a palavrinha de todos os dias na língua deles para o encerramento, mas meus alunos fecharam seus cadernos e ficaram ali, perto de mim, já mais à vontade: eles não queriam sair. Um dos alunos, Terri, se aproximou e disse uma palavra que eu havia ensinado naquele dia em português: “dedilhar”. E enquanto ele repetia aquela palavra, fazia o gesto de “dedilhar” os dedos sobre a minha mesa. Ele havia gostado daquela palavra. “Dedilhar”. Percebi que realmente era uma palavra gostosa de se dizer e fiquei encantado com o encantamento dele com uma palavra nova do português. Olhando nos olhos dele, eu disse sorrindo: “aingohegei”. Também repeti várias vezes para ele a palavra “aingohegei”, que era a segunda palavra que eu havia aprendido na língua (a primeira fora “saudade”). E ficamos assim por um tempo, um dizendo ao outro essas palavras novas e significativas para nós: “dedilhar” e “aingohegei”. Vi que, de maneira muito delicada, estávamos fazendo um encontro entre dois mundos que desejavam muito aprender um com o outro. Os outros alunos começaram também a dizer palavras na língua deles e apontavam para os objetos aos quais elas se referiam.

    Naquela tarde, minha primeira semana de aula na aldeia, ficamos ali, eu e meus professores, que riam de mim esse riso gostoso que aprendi tanto a amar: o riso da graça de um caraíba (homem branco) tentando acertar o passo com a língua deles. Por um momento, enquanto me ensinavam as cores do mundo deles, recostei na cadeira e fechei os olhos pelos segundos suficientes para dizer em oração a Deus: “Aingohegei”, que quer dizer “muito obrigado”.

Fábio Ribas

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Jesus foi o negro do mundo?

 

    Preconceito é algo que todo mundo sofre mais cedo ou mais tarde… e espero não estar sendo preconceituoso quando eu digo isso… Você sofre preconceito porque é bem casado ou porque é separado; porque é alto ou porque é baixo; porque é gordo ou porque é magro; porque é inteligente ou porque é obtuso. Cabe, portanto, duas saídas: a vitimização ou correr atrás para que você seja conceituado pelo mérito pessoal e não pelo grupo ao qual pensam que você participa. Preconceito é ser avaliado sob o estigma de um grupo ao que, se supõe, você pertença. Esta definição está no Houaiss.

    Em outras palavras, preconceito é julgar a parte pelo todo. A saída contra esse preconceito, que se mostra na avaliação de um indivíduo pelas características de um grupo, deve ser a reversão dessa coletividade pela sua individualidade. O preconceito pode se tornar uma oportunidade para mostrarmos que não somos o grupo no qual insistem em nos encaixotar. Somos mais do que a massa, mais do que o grupo, porque somos antes indivíduos dotados de uma personalidade e valor únicos para Deus.

    Perceba, se você é um gay, você quer ser respeitado pelas características do movimento gayzista de Luiz Mott ou pela pessoa que você é? Se você é um cristão, você quer ser respeitado pelas características de quais grupos? Católicos, evangélicos ou espíritas? Se você é um cidadão, um membro da sociedade que é identificado por números em série, você deseja ser essa massa? Deseja ser essa impessoalidade? Ou, para longe dos rótulos, associações e estereótipos, você quer ser respeitado pelo que você é? Se você é negro, o seu grupo hoje lhe oferece os benefícios das cotas, mas, amanhã, será você sozinho quem terá que provar que conquistou seu diploma por mérito e não por se esconder atrás de um discurso sobre dívida histórica. É como ser brasileiro em algum lugar do mundo: as pessoas vão pensar que você é samba, futebol e melancia até que os seus méritos pessoais mostrem quem você é de fato.

   Nós queremos pertencer a determinados grupos com os quais nos identificamos, o que é natural. Contudo, o problema é quando o grupo passa a alimentar-se de nós, exigindo que carreguemos uma bandeira que suprime ou vai contra a nossa individualidade. É a cultura da massa contra a liberdade do indivíduo. Então é responsabilidade sua não sucumbir ao meio e ao outro, mas se superar.

    Ser cristão, hoje, cristão de verdade, bíblico, que se agarra ao testemunho do tempo, é o mesmo que ser um nazista ou um membro da Ku Klux Klan. Você será acusado de homofóbico, sem sombra de dúvida. Dirão que você é um serzinho medíocre que não merece o mínimo de respeito. Dirão que é um fundamentalista e nem te chamarão para as rodas de conversa, porque todos já sabem, de antemão, o que você pensa, o que vai dizer e o que crê. Não interessa quem você é, o que importa é que eles já julgaram quem você seja. Portanto, você é o pobre do mundo.

    Ser calvinista, por exemplo, é o mesmo que ser um revolucionário do Partido de Mao Tsé-Tung. Você será um totalitário de mente dominadora e tacanha. Um serzinho vesgo e pequenino como algum desses personagens das histórias fantásticas do C.S. Lewis ou do Tolkien. Dirão que você é intransigente, puritano, hipócrita, dono da verdade, opressor das massas, ditador e seguidor do assassino de Serveto! Não interessa quem você é, o que importa é que eles já julgaram quem você seja. Portanto, você é a mulher do mundo.

    Agora estão dizendo que a minha denominação eclesiástica aceita a ordenação de pastores gays, só porque os americanos e escoceses daquelas denominações estão aceitando a ordenação de pastores homossexuais. A minha igreja não tem nada com isso. Uma coisa é uma coisa e a outra coisa é outra coisa, mas vai tentar explicar isso! Outra: sempre digo que o que mais me marcou na minha pública profissão de fé, quando fui recebido na minha igreja, foi a promessa que fazem todos os que se congregam a ela: "Prometo ser-lhe fiel, enquanto a liderança da igreja for fiel às Sagradas Escrituras". Assim, livro-me da subserviência ao grupo, caso eu entenda que este discorda da Palavra que eu sigo… Mas, ainda assim, não interessa quem você é, o que importa é que eles tomam o modo subjuntivo pelo indicativo. Em outras palavras, julgam você por aquilo que você seja como se fosse isso o que você é. Portanto, você é o escravo do mundo.

    Eu tinha uma amiga gay (tempos pregressos), que me levava para a casa e dizia à família dela que eu era seu namorado (só para manter as aparências). Até que uma amiga "entendida" foi visitá-la e ela fez a besteira de estender a brincadeira: "Você ainda não conhece meu namorado, não é? Aqui está. Deixa eu te apresentar"… A amiga gay dela ficou pálida na nossa frente, mas, na hora, não disse nada. Sentamos para assistir TV, nós no chão e a amiga ao nosso lado no sofá. Dali a pouco, a amiga não suportou mais e explodiu num acesso de ira: "Você está louca? O que as meninas vão dizer?", disse ela rosnando. "Você não pode namorar um homem. Você é gay! Você está louca"… A discussão entre as duas saiu do controle até o ponto de eu ter que ir embora e deixar o barraco quebrando atrás de mim. Então, veja, eis um exemplo do poder coercivo do grupo sobre o indivíduo: "Você é gay"!

    Cuidado: o grupo irá anular quem você é, caso a sobrevivência dele esteja em jogo. Grupos tendem a não permitir que você seja quem você é, caso isso signifique algum dano a eles. Sempre foi assim e sempre será. E é disso que a sua individualidade precisa se resguardar: a usurpação da liberdade é a realidade totalitária oculta sob o manto da democracia das minorias.

    Jesus foi o negro do mundo? Ele é o melhor exemplo de tudo o que estou dizendo aqui. Jesus sempre foi avaliado pelo grupo, ao qual insistiam que ele se identificasse: filho, nazareno, galileu, judeu, homem, profeta, rei, messias populista, milagreiro, essênio, gay, marido de Maria Madalena, etc. Tentam resumir ou reinterpretar Sua pessoa por todos estes séculos, segundo cada um desses grupos, contudo Jesus não era nenhum deles no final das contas. Jesus não era, porque sempre fora, desde a eternidade, o Filho unigênito do Pai, a segunda Pessoa da Trindade. O fato de Jesus ter se identificado, por Sua livre vontade no mistério da encarnação, com um ou outro grupo não anulou a Sua individualidade.

    Mas e você, quem você é? Eu queria dizer algo maravilhoso que eu descobri para a minha própria vida. Antes de pertencer a qualquer grupo, seja a família, seja a igreja, um partido político, ao cristianismo, antes de qualquer um desses grupos, eu já pertencia ao Pai. Desde a eternidade, antes mesmo de nascer, Deus já havia me planejado. Assim, a minha identidade, a verdadeira identidade, está guardada em Deus. Quem eu sou é um tesouro escondido no coração de Deus. Volte-se a Ele e descubra essa verdade em Cristo, porque a liberdade que conquistamos em Jesus é um bem inegociável.

    PS - Enfim, escrevi este artigo tendo esta música de John Lennon martelando em minha cabeça por todo o texto: "Woman is the nigger of the world". Uma música pró-feminista e que causou polêmica na época por causa do "nigger" da letra. Aliás, a letra é da Yoko Ono. Uma letra contra o preconceito, mas que foi acusada de ser uma música preconceituosa (pensamento enviesado típico de quem permite que "grupos" pensem em seu lugar). Ótima música!

Fábio Ribas

sábado, 21 de outubro de 2023

Descrições e prescrições (VII/2023)


    Este é o segundo livro de Michael R. Emlet que leio. O primeiro foi o "Conversa cruzada". Emlet é médico Doutor, além de ter seu MDiv. Exerceu a medicina por mais de 12 anos antes de se tornar Conselheiro Bíblico e membro do Corpo Docente da Christian Couseling & Educational Foudation (CCEF). Autor de vários artigos e livretos na área de Aconselhamento Bíblico.
    
    Especificamente, este livro trata de um ponto muito importante para o conhecimento dos conselheiros. Ao contrário do "Conversa Cruzada", que é um livro de hermenêutica, tanto da Bíblia como da vida do nosso aconselhado, Emlet agora vai ao ponto da questão sobre os diagnósticos e medicamentos psiquiátricos. O subtítulo diz "uma perspectiva bíblica sobre os diagnósticos e medicamentos psiquiátricos". Assim, o livro é uma proposta para sairmos de quaisquer posturas que sejam extremistas: nem entusiastas cegos e nem isolacionistas alienados. Afinal, o que queremos é ajudar as pessoas a "melhor conhecer e compreender suas lutas. E então, tendo-as compreendido, como providenciar-lhes auxílio de modo sábio e compassivo" (p. 15).
    
    De modo positivo, ele inicia dizendo que "diagnosticar" é algo que revela o nosso Deus Criador. Achei isso sensacional! "Todo mundo "faz" diagnósticos. Todo mundo. Interpretar  -  ou diagnosticar  - as  nossas experiências é inevitável. Parte disso que é ser humano é classificar, organizar e interpretar o mundo ao redor" (p.18). E é uma maneira bíblica e positiva para nos entendermos e compreendermos melhor, porque "diagnosticamos" tanto! Uma outra palavra ligada a isso, e que eu sempre tratei no meu ministério missionário, é "taxonomia". Precisamos chegar aos povos e culturas e "caracterizá-los", "organizá-los", categorizá-los" etc, dando "nome aos bois". Por tudo isso, tenho realmente me fascinado com o mundo do Aconselhamento, pois é a aplicação pessoal ao que estamos tão acostumados a fazer a grupos e coletividades nos campos missionários transculturais.

    A citação que ele faz do Peter Kramer é basilar para tudo o que ele vai discutir em seu livro: "O modo como vemos uma pessoa é uma das funções das categorias que reconhecemos - de nosso sistema particular de diagnóstico" (p. 19). O que eu gostei muito com essa introdução do Emlet é que ele já desmistifica o "diagnóstico" como algo que se dá entre iniciados e que, por isso, só poderia ser realizado por uma elite altamente especializada. Na verdade, queremos conhecer e entender o outro à nossa volta e, por isso, diagnosticamos o tempo todo.

    Ele começa falando sobre o que é, afinal, um diagnóstico. Basicamente, de um lado, você tem o paciente descrevendo o que ele está sentindo e, do outro, um médico com sua formação descritiva. Mas, em meio ao que está sendo descrito como isso ou aquilo, há um espectro de sintomas muito parecidos. Com isso, veja, Emlet nos dá a nós, meros leigos, uma oportunidade de ficar ombro a ombro com os médicos na hora do diagnóstico. No fim das contas, a não ser que se tenha um exame mais técnico, mas, mesmo assim, no fim de tudo, um diagnóstico é resultado de uma interpretação entre o que o médico ouve da subjetividade do paciente e aquilo que o próprio médico carrega como experiência. Ainda que se tenha um exame clínico (exame de sangue, tumografia etc), ainda assim, é um intérprete pegando todas essas informações e dando a sua interpretação. Até mesmo porque o médico não está tratando de ciência exata e também não somos robôs. Cada caso é um caso e há as nossas individualidades e pessoalidades, que não podem ser descartadas. 

    (Quero abrir um parênteses aqui, no momento em que você lê este parágrafo. Por estes dias, acaba de sair que sete em cada dez médicos não sabem aferir pressão arterial. Uma informação como essa serve para nos deixar alertas: médicos não são sacerdotes de uma religião infalível. Na verdade, sequer sabemos da qualidade da formação deles. Fecho os parênteses).

    O resultado não pode ser simplista, pois somos muito mais complexos e as variáveis atuam de uma maneira difícil de abarcarmos a todas elas. Digo isso com toda a tranquilidade, concordando com Emlet, uma vez que tenho acompanhado minha mãe, uma idosa de 90 anos de idade, e já vi um médico cortar pela metade os remédios que outro havia passado a ela. Vi também um terceiro médico ainda ter que voltar atrás de remédios que estavam fazendo mal a ela no tratamento. Enfim, como cada pessoa é uma pessoa, então o que temos, muitas vezes, é um método de tentativa e erro. Em outras palavras, Emlet abre as portas para a desmistificação do diagnóstico e do uso dos remédios.

    Uma vez que Freud foi superado, pois ele dizia que todos éramos doentes, uns mais e outros menos… Mas, o que é ser "são" e o que é ser "doente"? Quem é normal e quem não é normal? Como proceder nessa interpretação? O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) surgirá (1952) para tentar, veja bem, tentar, tornar mais clara a linha que separa a doença da saúde. Mas, em suas já cinco edições (a última de 2013), o DSM se transformou numa lista de sintomas para cada rótulo (nome que a doença recebe). Muitos desses sintomas se repetem em muitos rótulos diferentes:
    
    Embora algumas doenças mentais possam ter seus limites bem definidos em torno de um conjunto de sintomas específicos, a evidência científica atual localiza muitos, quiçá todos, os transtornos em um espectro de transtornos de relação muito próxima e que compartilham sintomas, fatores de risco genéticos e ambientais, e possivelmente substratos neurais (i.e. alicerces neurológicos) […] Resumindo, precisamos reconhecer que os limites entre os transtornos são mais permeáveis do que percebemos originalmente" (esta frase está escrita no DSM-5, p. 6).

    O diagnóstico psiquiátrico é descritivo e, às vezes, não nos damos conta disso. Por exemplo, eu digo que você está irado, porque há uma soma de vários sintomas em você que descrevem a ira. Pronto: diagnóstico, ira! Mas saber nomear, rotular a que se refere o grupo de seus sinais e sintomas não me responde o que realmente importa: por que você está irado? Por que você está ansioso? Por que você está depressivo?

    Entendamos, a descrição dos sintomas levará o médico a receitar tais e tais remédios para a solução daqueles sintomas, que, perceba, são comuns a muitas doenças diferentes. Os remédios podem tratar ou não, podem até mascarar aqueles sintomas, contudo, a causa da doença não é tratada pelo remédio.

    Neste ponto quero contar o que aconteceu comigo. Tive um sério problema no campo missionário. Alguém estava tomando atitudes que não apenas eram totalmente contra o esperado por  missionários num campo extremamente delicado e fechado ao evangelho, mas, principalmente, colocava o nosso trabalho (e de outros missionários em risco). Nossas lideranças nunca resolviam os problemas que estavam surgindo (que, na verdade, deveriam ser resolvidos na esfera das instituições) e, aqui no "andar de baixo", nós missionários sofríamos muito com tudo o que estava ocorrendo. Um dia, todo esse stress, essa agonia e angústia cobrou seu preço. Eu estava fazendo esteira numa academia e meu peito doeu horrores como se uma faca estivesse me rasgando de dentro para fora. Foi horrível! Mãos e pés suando, minha vista escurecendo etc. Tive que sair do campo (era no interior do MT) e vir às pressas me tratar em Brasília. Um milhão de exames, consultas, médicos, até que, finalmente, uma médica ouvindo e acompanhando tudo o que eu narrara disse: "Fábio, está aqui a caixa de seus remédios. Certamente, você irá tomá-los e isso irá fazer muito bem para você. Contudo, esse remédio tem um efeito colateral possível. Ele irá diminuir a sua libido, afetando sua vida sexual com sua esposa. Assim, há uma outra alternativa, caso você não queira tomar esse remédio. Você pode voltar para o seu campo missionário, resolver a causa dos seus problemas e buscar, então, trabalhar de um outro jeito, cuidando-se melhor". Enquanto conto isso, claro que estou rindo, pois não era só a minha vida sexual que estava em jogo, mas a da minha esposa também! Assim, retornei ao campo, mudei o meu ministério, fui para uma outra área na qual as ações daqueles missionários não me atingiam e, enfim, enfrentei a causa. Chamei o casal de missionários e disse tudo o que estava acontecendo comigo (e com outros), por causa daquela atitude deles. Porém, pelo bem da minha saúde mental (e sexual rsrsrs), e também porque eu queria continuar a ser uma bênção no campo, disse a eles que eu estava saindo daquele ministério e indo para um outro que não me afetaria daquele jeito. Com essa minha atitude, tudo se resolveu e eu guardo a caixinha de remédios, que a médica tinha me dado, até hoje comigo, fechada (rsrs). Os sintomas ajudam na identificação, mas só isso não resolve. Concordo, inteiramente, com Emlet.

    Outro problema tratado pelo autor é que há o risco do normal ser transformado em anormal por meio do exagero. Isso me levou o tempo todo a pensar no "O alienista", conto do Machado de Assis. Quem é que decide o que é normal e anormal? Qual a referência? "Dor e sofrimento" são critérios? Perigoso, principalmente por termos aqui o choque entre duas visões antagônicas: de um lado, uma indústria farmacêutica que promete felicidade em drágeas e, do outro, a cosmovisão cristã, que sabe que dor e sofrimento são parte da vida humana e que podem ser usadas por Deus na santificação do seu povo.
    
    A busca pela felicidade e o fim da tristeza e dor devem ser os únicos ou principais critérios que regem os diagnósticos? Quem está triste ou sentindo alguma dor não está bem, não está "normal"? Como disse, tudo isso é muito perigoso, porque é algo que pode ser fortemente subjetivo, tanto da parte do paciente como da parte do médico. A questão da dor e da tristeza também são culturais  -  e é importantíssimo levar todas essas variáveis em consideração na hora de um diagnóstico final.
    
    Outro problema: diagnósticos psiquiátricos que redefinem (e com isso mascaram ou minimizam a responsabilidade do paciente), rotulando o que as Escrituras chamam de pecado. Hoje, todos somos vítimas, estamos todos doentes: não há mais gula, responsabilidade pessoal, descontrole emocional etc. "Tudo é culpa do cérebro"! Tudo é culpa dos meus pais, da cultura, do outro! Estamos em tempos de extremos, fujamos de todas essas pressões. É este o alerta do autor: nem mascarar pecados como meras doenças mentais e nem tratar doenças mentais reduzindo-as como pecado.
    
    Particularmente, como missionário em povos diferentes de nós, o tema da influência da cultura nos diagnósticos culturais é muitíssimo interessante e importante para mim. Gostaria mesmo de aprofundar isso com mais estudo da minha parte.

    Enfim, você realmente quer ajudar o outro? Então, algumas questões precisam ficar claras a partir da leitura desse livro: 1) o diagnóstico psiquiátrico não pode impedir você de se aproximar e ajudar o outro; 2) o diagnóstico não é a identidade do paciente; 3) o diagnóstico não é destino; 4) o diagnóstico pode ser usado como ponto de partida, mas jamais será o ponto final.

    Além do autor nos mostrar como ajudar os pacientes que chegam com um diagnóstico, de modo que esses diagnósticos não sejam um obstáculo à nossa ajuda, ele mostra também como levar em conta o diagnóstico: 1) os diagnósticos nos ajudam a identificar padrões de experiências; 2) os diagnósticos nos ajudam a lembrar que essa experiência do nosso paciente é diferente da nossa; 3) eles nos alertam para padrões particulares de severidade e perigo; 4) os diagnósticos nos apontam para o corpo do paciente, que possui história hereditária e, além disso, o corpo também carrega forte influência cultural. Aqui, o autor encerra a primeira parte do livro e, na segunda, irá tratar sobre os medicamentos.

    Na segunda parte, o autor discute sobre o que, afinal, realmente sabemos em relação à eficácia dos medicamentos psicoativos. Ele mostra os resultados desses medicamentos comparados com placebos, demonstrando que a propaganda é mais eficiente do que o produto, de fato, oferece. O autor trata de como equilibrar um tratamento com remédios e aconselhamento, lembrando que nem todo sofrimento deverá ser tratado com medicação. A medicação pode estar mascarando ansiedades e problemas que podem (e devem) ser enfrentados biblicamente. Cabe, então, a sondagem das razões que levam alguém àqueles remédios específicos. Um conselheiro sábio deve dosar e ter sabedoria de "andar na corda bamba". Não podemos dizer: "pare de tomar esses remédios"! Todavia, podemos (e devemos) auxiliar o paciente numa sondagem crítica em relação ao uso desordenado de remédios. Precisamos nos comprometer em pesquisar a bula dos remédios; ver se os tantos remédios usados pelo paciente não estão afetando uns aos outros; observar se o aconselhado não está desenvolvendo alguns dos efeitos colaterais narrados nas bulas etc. Enfim, é nossa responsabilidade ajudar o nosso aconselhado.
    
    Foi o último parágrafo que mais me chamou a atenção. Estamos muito acostumados na nossa cultura com a farta literatura que encontramos tratando dos nossos próprios problemas. Literatura de autoajuda e de como sobrevivermos ao caos de nós mesmos. Contudo, este livro foi escrito para me ajudar a ajudar o outro da melhor maneira possível. Não é um livro sobre como resolver os meus problemas, mas como me preparar para ajudar o outro. Assim, como conselheiro, espero ter todos esses cuidados com meus aconselhados.

    Fui desafiado, nesta disciplina, a ajudar lideranças nativas no campo. Se a coisa já é difícil para nós, imagine as pressões que outras pessoas convertidas, mas de outras culturas, não sofrem nesses embates? Na aldeia, por exemplo, com a chegada do "agente de saúde" e do enfermeiro, da farmácia e dos remédios, lembro que os indígenas faziam uma bifurcação, que era o jeito que a cultura achou de "se resolver": o pajé vinha e fazia a pajelança  -  a cura espiritual. Mas, caso acontecesse das curas não funcionarem, então, o próprio pajé dava o diagnóstico: "é doença do branco"! A cultura sempre dará um jeito de sobreviver. São retificações na cosmovisão para se adequar à mudança dos ventos. O pajé dá conta da "doença do índio", entretanto, para eles, a chegada dos "brancos" com seus remédios é porque eles chegaram e trouxeram suas próprias doenças e, por isso, doença de branco, que o índio pega, precisa ser tratada com remédio de branco.

    Esses remédios ficam nas aldeias, sob a supervisão de um "farmacêutico indígena"… Comparando a formação recebida dos professores indígenas  -  que só são preparados no conhecimento da própria cultura, para ofereceram aos seus alunos mais do mesmo  -  fico, então, pensando que a gente também não pode esperar coisa muito diferente na formação desses farmacêuticos nativos. Portanto, sigamos que há muito trabalho a ser feito!

Fábio Ribas

sábado, 14 de outubro de 2023

Conversa cruzada (VI/2023)

 


    Tenho lido muitos livros sobre o tema do “Aconselhamento Bíblico”. Tenho lido livros muito bons, contudo, “Conversa cruzada”, de Michael Emlet, foi o melhor até agora. E há razões subjetivas e objetivas para afirmar isso. O que posso dizer é que esse livro é muito prático e oferece uma abordagem, tanto à Bíblia como ao aconselhado, que já foi possível utilizar ainda durante sua leitura, cumprindo seu subtítulo: “onde a vida e a Escritura se encontram”.

    Como aconselhar por meio das Escrituras? No fim da introdução, já há algumas perguntas para discussão. A cada capítulo, no seu término, há um breve questionário para autoavaliação e sondagem sobre o assunto que terminamos de ler. Um ponto interessante é que o autor diz que há muitos livros sobre “como ler a Bíblia”, mas falta sobre “como aplicar a Bíblia às nossas vidas”. Verdade. E o livro de Emlet traz inúmeras oportunidades de vermos essa aplicação ocorrer nos diversos exemplos trazidos. O objetivo do autor já é tratado de maneira clara: o foco do seu interesse é com a microética, isto é, como cruzar as Escrituras com as situações particulares da vida da pessoa.

    O primeiro capítulo funcionou para me deixar mais tranquilo, pois mostrou que a ligação de textos bíblicos com situações da vida contemporânea não é tão simples. Isto foi muito bom, uma vez que, desde que me aproximei do “Aconselhamento bíblico”, eu me sinto um ignorante em usar a Bíblia nessas “conversas cruzadas”. Agora sei que não estou sozinho nessa ignorância. A questão do Aconselhamento não é simplesmente saber uma série de versos decorados para desembainhar toda vez que nos deparamos com demandas da vida. É preciso atenção e paciência para “ler” a vida do outro, assim como atenção e paciência são necessárias para ler a Bíblia com responsabilidade. Não podemos sucumbir ao simplismo de usarmos as Escrituras como textos fora de contextos, numa espécie de “caixinha de aconselhamentos” (uma versão para a já danosa “caixinha de promessas”). Daí, o autor demonstrar o “fenômeno vala versus o fenômeno desfiladeiro”, para que possamos compreender que umas conexões são mais óbvias e tranquilas do que outras, quando nos dispomos a apresentar a Bíblia aos nossos aconselhados. Algumas passagens e narrativas bíblicas respondem de imediato a algumas questões, mas há muitas outras passagens que exigirão de nós esforço, um verdadeiro trabalho de exegeta e tradutor da Palavra de Deus. Portanto, inesperadamente, deparei-me com um livro que é um livro de “hermenêutica aplicada”. Emlet se preocupa em mostrar que a Bíblia está culturalmente distante de nós por mais de 1000 anos! Então, como ter certeza de que a estamos compreendendo corretamente e aplicando-a à vida do aconselhado, respeitando a intenção original do autor do texto?

    Particularmente, como missionário transcultural e alguém que já trabalhou com tradução do texto bíblico e com cosmovisões contrárias à da Palavra, ver um autor que não tem medo de trazer à mesa da discussão a palavra “intuição” foi muito importante para mim: “Procure aprofundar suas intuições conduzidas pelo Espírito…” (p.40). Neste ponto, lembrei de Naugle (“Cosmovisão — a história de um conceito”), que também enfrenta o pré-teórico. Aliás, é exatamente por isso que me vejo na área do Aconselhamento, que trata com o ser humano como um todo e não como um ser multifatiado.

    No segundo capítulo, “O que a Bíblia não é (primariamente)”, o autor ressalta que, embora nos aproximemos da Bíblia tendo nossos pressupostos, precisamos saber até que ponto esses pressupostos nos cegam impedindo-nos de lê-la corretamente. Os pressupostos precisam ser criticados à luz da Palavra. Se queremos ajudar o nosso próximo com a Palavra, precisamos saber que a Bíblia não se resume ou não se fecha num livro de “faça isso/não faça aquilo”; nem se resume a textos-prova para sustentar minhas doutrinas e nem é um livro de coleção biográfica de personagens para modelo de vida para mim. Eu e você precisamos ter claro o que a Bíblia não é. Então, mais uma vez, é confirmado que o cerne do livro se desenvolverá em duas direções: precisamos contextualizar o aconselhado, assim como devemos contextualizar o texto bíblico. Na direção da mensagem bíblica, ao compreendermos, estudarmos e interpretarmos a Bíblia, estamos certos de que a estamos usando “de uma maneira que maximiza a sua mensagem Cristocêntrica?”.

    O livro me desafia como missionário há tantos anos no campo trabalhando no ensino bíblico e como professor de Comunicação para a formação de outros missionários! Tenho vivido um momento ímpar no meu ministério, porque me sinto confirmado em tantas áreas que eu não entendia a razão de não me encaixar, mas que o Aconselhamento me trouxe uma autocompreensão! Uma frase como esta: “Se a comunicação tem sentido, é porque as nossas palavras são ditas em meio a contextos e concepções partilhadas entre o que fala e o que ouve” (p. 49) — é o centro de tudo o que tenho trabalhado há muitos anos. O que estou tentando dizer a mim mesmo é que o Aconselhamento é uma peça que deu paz às próprias crises que sempre vivi de “desencaixe” no campo missionário.

    E “o que a Bíblia é?” O AT é a expectativa da vinda do Reino e seu Messias. O NT é a proclamação de que esse Reino já veio e tem Rei. Ambas as histórias se inserem numa narrativa maior. A Bíblia é o enredo da história gloriosa de Deus sobre nossas pequenas histórias! E a chave para se entender tudo isso é Jesus: o fim do princípio e o princípio do fim! Tomamos a Bíblia no seu contexto de relato, na sua estrutura narrativa! Veja! Nossa luta como missionários trabalhando com povos indígenas sempre foi não apresentar a Bíblia recortada, picotada, mas, ao contrário, apresentar a Bíblia como “one story”. Aqui, então, mais uma vez, surpreendo-me por estar lendo um livro que julgava muito específico, mas que vai ao encontro de tudo o que sempre foi “transculturalmente” importantíssimo a mim. O autor nos ajuda, porque sabemos que podemos tomar essa história única de diversas perspectivas diferentes (Aliança, por exemplo, é uma delas e talvez a mais importante), mas o autor toma a Bíblia perpassada pelo tema do Reino. Há uma identidade aqui e isso nos ajuda a como abordá-la e aplicá-la à vida humana. “Essa identidade está unida a uma missão: proclamar o reino do nosso Rei e ajudar na restauração de vidas, em conformidade com o seu amor e governo de verdade” (p. 72). Emlet insiste nessa organização narrativa e temática — tendo a Cristo no centro de tudo — mostrando que isso funcionará como bússola para não nos perdermos e nem esquecermos da nossa própria identidade e propósito como cidadãos do reino sempre diante de nós. Ainda no capítulo sobre este tema, que ressalta a centralidade de Jesus, entendermos como se deu a forma de relato bíblico a nós será essencial para a própria abordagem de nossa interpretação do texto. Por exemplo, “o sofrimento precede a glória” (p.75), “a morte precede a ressurreição. A graça para o seu povo veio ao preço da sua vida” (p.75). Daí, Emlet evidencia-nos: “Esse caminho para a cruz continua sendo o modelo para a nossa vida, até que Jesus retorne e ponha um fim ao pecado e ao sofrimento (…) Nós seguimos nas pegadas abnegadas do nosso Salvador” (p. 75). O que isso tudo significa para o Aconselhamento? Tendo a narrativa correta, na sua apresentação bíblica correta, poderemos nos orientar corretamente toda vez que “somos tentados a achar que a vida em Cristo diz respeito à nossa realização pessoal e felicidade” (p. 75). Sendo assim, mais adiante, o autor diz que devemos entender a Bíblia não apenas como uma história, mas como uma história que exige de nós uma resposta (p.80).

    Por tudo o que foi visto até agora, a pergunta mais trabalhada e que, por isso mesmo, mostra-se como fundamental para o trabalho de aconselhamento é: “Sabemos ler a Bíblia?”. Se a lermos sem o mínimo de regras de compreensão e interpretação, acabaremos usando-a para fins distorcidos ou fora de sua intenção maior. Mas qual a intenção maior da Bíblia? A Bíblia apresenta a missão redentora de Deus por meio de Jesus Cristo ao seu Povo. E essa missão terá vitória no final — isto está na Bíblia! Por isso, devemos ler a Bíblia “de trás para frente”, sabendo que o seu desfecho lança luz e reordena todos os livros anteriores. E quando a lermos “do início para o final”, precisamos ler sabendo que o que se anunciava já está realizado. Embora isso seja muito claro, infelizmente, no meio missionário tem muita gente lendo “da frente para trás”, insistindo em ler textos do AT como se esses estivessem desencaixados de uma narrativa maior.

    Lemos o AT sabendo que a vitória do Reino já está garantida! Há quem lê os mandatos criacionais, por exemplo, sem essa perspectiva e conexão. Qual a consequência? Parece que algo saiu dos trilhos e a igreja é quem vai colocar tudo no lugar. E isso não é verdade! A igreja não foi chamada para cumprir os mandatos criacionais como se nunca houvera pecado ou cruz e ressurreição. Assim, a imposição religiosa da igreja sobre outros por meio da lei é um entrave e um fracasso sem a cruz e a ressurreição. Não é a igreja que está sendo chamada a ajeitar o estrago do pecado por meio de uma nova legislação e mera imitação de Cristo, mas Cristo já fez tudo e convida a igreja a anunciar a chegada desse reino. A leitura no sentido correto muda tudo! A perspectiva é clara: antes de ser a minha história, a Bíblia é a história de Deus e a história do Povo de Deus (p.95).

    O melhor capítulo foi, sem dúvida, na sequência desses, o quinto capítulo! Se é que se pode dizer isso num livro todo muito bom. Entretanto, algumas coisas muito importantes estão sendo ditas ali. Não apenas sobre o enredo que escolhemos para que a vida da gente ganhe sentido, mas, principalmente, aquele olhar que devemos ter uns sobre os outros de que somos santos, sofredores e pecadores. Se queremos ajudar as pessoas, precisamos equilibrar esses 3 pontos. O que Emlet disse sobre nos conectar com a dor do outro foi tudo o que eu precisava ouvir para me entender ainda mais nesse mar de gente desconectada. A pessoa chega quebrada diante de nós e, então, precisamos desenvolver a habilidade de juntar as peças e ver a narrativa da vida dela — um início, meio e fim! Aqui há um roteiro que, para mim, é muitíssimo importante para me guiar no tratamento com o aconselhado:

    Uma das habilidades que os médicos devem ter envolve “tirar a história” do paciente. Isso compreende entrevistar o paciente de maneira intensiva e extensiva levando em consideração várias coisas: (1) os sintomas que o trouxeram ao médico ou hospital (“histórico da doença atual”); (2) seu histórico médico passado; (3) sua história familiar; (4) sua história social, incluindo o uso de tabaco, álcool ou drogas; (5) os remédios que ele está tomando; e (6) a “revisão de sistemas”, uma longa lista de perguntas acerca dos outros sistemas do corpo além do(s) sistema(s) envolvido(s) na história da doença atual. Essa entrevista estruturada é seguida de um exame físico e talvez de vários exames diagnósticos (p. 101–102).

    Esse roteiro acima, que Emlet oferece, é sensacional! Dá uma segurança enorme. Aliás, devo dizer aqui que já o estou usando. Tive oportunidade de aconselhar algumas pessoas usando várias coisas deste livro. Por isso, vejo-o como o melhor que li até agora na área de Aconselhamento. Li e estou lendo muitos livros, mas este é muito prático, desde a leitura bíblica até a leitura do seu aconselhado. Outra questão que vem ao encontro do que já trabalho na antropologia missionária é o entendimento que “dar ouvidos ao modo como as pessoas compreendem os detalhes da própria vida dá uma ideia da história (ou histórias), global que guia a sua existência diária” (p.103). Ouvirmos o outro com atenção é nos atentarmos à sua cosmovisão: “todos são criadores de sentido com categorias que deem um significado à vida” (p. 104). Esta frase, que acabei de citar do Emlet, foi muito importante para mim. Dou aula para a formação missionária e, de repente, num livro de aconselhamento, estou vendo todas as verdades que creio à disposição como nunca as vi em livros de missiologia antes! Acertar a vida das pessoas, que estão enfrentando dilemas e problemas, ao enredo redentor da Palavra de Deus é fantástico! Esta é a proposta do livro!

    Agora, além das perguntas para conhecermos as pessoas nos 3 aspectos do capítulo anterior (santas, sofredoras e pecadoras), precisamos também conhecer profundamente a Palavra de Deus e, então, há as perguntas que nos ajudam a ler melhor a Palavra de Deus. Precisamos realmente conhecer o aconselhado e a Palavra, para que possamos conectá-los. O tema da identidade transborda aqui e separa aqueles que são obedientes dos que são resmungões: “somos definidos pelo nosso relacionamento com Ele (p. 115). Veja agora que genial é o que Emlet faz: ele vinha trabalhando sobre compreender o esqueleto narrativo bíblico, sobre entendermos a narrativa totalizante da Palavra de Deus, e, assim, ele faz a mesma coisa sobre a importância de olharmos a vida do aconselhado não como um mar de fragmentos, mas buscando o que une: “Se não levarmos em consideração as histórias que moldam a vida das pessoas, ofereceremos aconselhamento focado em soluções, sem que talvez consigamos ver as raízes do problema” (p.120). Outro ponto sensacional: “Eu os apanho fazendo algo errado, mas será que os apanho fazendo algo certo?” (p.120). Olha que maravilhoso isso! Os fariseus só focavam nos erros, fracassos e na culpa dos pecadores, mas o convite aqui é, antes de tudo, não pisar na chama que ainda fumega: “reconheço onde vejo o Espírito em ação na vida deles?”. Se as pessoas estão procurando ajuda é porque estão sofrendo e precisam de esperança, lembra-nos Emlet.

    Até aqui, vimos o autor nos mostrar como devemos aprender a ler a vida das pessoas e ler a Bíblia. Agora, ele conectará essas duas realidades. No sexto capítulo, Emlet vai elencar algumas diretrizes gerais para isto, a saber: 1) todas as passagens bíblicas nos fornecem a lente correta para tratarmos quaisquer questões, contudo, obviamente, umas passagens são mais claramente melhores do que outras; 2) na ministração aos outros, nos movemos da vida para a passagem bíblica e da passagem bíblica para a vida; 3) nas situações ministeriais, algumas passagens são usadas com mais facilidade do que outras; 4) prestar atenção às conexões que surgem da passagem como um todo, não tanto às expressões isoladas; 5) lembre-se de que todas as passagens estão de alguma maneira ligadas a Jesus Cristo e à sua obra redentora. Observando essas diretrizes, vemos que elas são a consequência natural do que vimos nos primeiros cinco capítulos. São diretrizes de aplicação de toda a teoria que discutimos até agora.

    O diagrama de abordagem é um diagrama visual do que mais repetimos aqui: a hermenêutica da bíblia e a hermenêutica da pessoa. Na passagem, temos o contexto original e o contexto aplicado, enquanto no aconselhado temos sua pessoa sofredora, santa e pecadora. Em outras palavras, estou diante de duas linhas narrativas. Mas como sabemos que houve a “conexão” entre essas duas narrativas? “A aplicação se dá quando as pessoas “habitam” a visão de mundo da passagem de tal modo que obtêm clareza , centrada no evangelho, e direção para a própria situação — e as põe em prática” (p. 135). Mas qual o objetivo de conectar a vida com a Escritura? “O objetivo de conectar a Escritura com a vida é nada menos do que ter vidas modificadas, uma comunidade modificada e um mundo modificado, na medida em que as pessoas ouvem o Deus que fala verdade e amor. Isto é Conversa Cruzada” (p. 135–136).

    No sétimo capítulo, o autor anuncia que fornecerá algumas perguntas que podemos usar tanto sobre o texto bíblico como sobre a pessoa que ajudamos, com vistas a estimular essas conexões redentoras. Para ajudar, ele apresenta três metáforas: musical, atlética e culinária. Na primeira, ele pensa na Escritura como um acordeom, que num momento o comprimimos ao máximo e noutros o abrimos ao máximo, a música nasce dessa expansão e contração. Precisamos aproveitar as oportunidades no tempo que temos. Às vezes, temos só 5 minutos, às vezes serão vários encontros. Na metáfora do atleta, precisamos entender que o resultado num jogo de campeonato dependeu do trabalho duro que não vemos no treino entre um jogo e outro. Na metáfora culinária, parecida com a música, precisamos aprender a degustar o que podemos, às vezes um sanduiche, às vezes um banquete. Assim, o que precisamos é estar prontos para toda e qualquer situação de ministração, por isso as perguntas nos ajudam a tirar o melhor proveito possível. O autor, então, separa perguntas para tratarmos com pessoas santas (ver o que Deus está fazendo nelas), sofredoras (ter uma ideia das circunstâncias em que essas pessoas se encontram) e pecadoras (ver o que essas pessoas têm como histórias, valores e crenças).Em suma, usamos a Bíblia para 1) confirmar a identidade do santo; 2) consolar o sofredor e 3) confrontar o pecador. Quanto ao contexto bíblico, precisamos compreender o texto original; como que esse texto se insere na história da redenção; e, finalmente, como aplicar o texto à vida do aconselhado. Veja: é um caminho hermenêutico. Neste ponto, não sei se ficou claro em algum momento até aqui, mas a ação é do Espírito Santo. São perguntas, sondagens, tanto da pessoa como da Bíblia, mas a cura, a transformação, a mudança só pode vir do Espírito Santo. O conselheiro precisa estar convencido disto. No fim deste capítulo, ele trará a pergunta que mais ouvimos as pessoas nos fazerem: “podemos aconselhar incrédulos?”.

    É verdade que a categoria de “santos” não se aplica aos não cristãos. Nesse caso, é melhor pensar nos termos de uma categoria mais ampla: “portadores da imagem”. Essa pessoa, apesar de caída, é portadora da imagem de Deus mesmo assim. Isso quer dizer que me aproximo dela com dignidade e compaixão. Eu posso ressaltar as marcas da “graça comum” de Deus na vida dela, mesmo instando-a a submeter a sua vida inteira ao Único, Criador e Redentor. Eu uso uma lente moldada por Deus para enquadrar o bem na sua vida como evidência da “bondade, e tolerância, e longanimidade” de Deus que deve levar ao arrependimento (Rm 2.4). É evidente que essas conversas evoluem com o passar do tempo, na proporção em que você constrói o relacionamento (p. 155–156).

    O capítulo em que são apresentados os dois casos, o de Tom e o de Nathalie, e eles são analisados a partir da tríade de identidade — santo, sofredor e pecador- é muitíssimo esclarecedor. Um dos melhores livros que li até agora sobre o assunto, pois, com esses estudos de caso, podemos ver como é possível atuar no Aconselhamento. Ao apresentar os casos: “Onde estão as marcas da graça na sua vida? Em que ponto a pessoa está vivendo de maneira verdadeira, consoante a sua identidade de Filho de Deus vivo?” (santo); “que circunstâncias impactam a luta da pessoa?” (sofredor); e “que desejos, pensamentos, emoções e ações não estão em harmonia com os valores do Reino e, portanto, em “conflito” com a história bíblica?” (pecador). Estas perguntas nos ajudam a delinear a situação em que os aconselhados se encontram, e, no capítulo seguinte, após essa hermenêutica da vida deles, precisaremos considerar as passagens bíblicas para suas situações. 

    Assim, no nono capítulo, o autor nos apresenta passagens do Antigo Testamento. Na verdade, ele nos apresentará Ageu 2. 1–9, uma passagem que, para muitos de nós, não seria escolhida, mas ele mostrará como que o tema do templo se conecta à dor do caso específico que ele nos apresentou: o templo destruído-restaurado — o templo que somos em Cristo! Sensacional! Agora, em determinado momento do capítulo, o autor diz algo que sempre esteve em minha mente. Ele diz que, esse texto de Ageu, Deus já o usara em uma luta do autor com uma situação de pecado. O que quer dizer isso? Sempre penso que é de nossa vida devocional diária que temos intimidade com Deus e com a Palavra e é de nossas devocionais que vêm a maioria desses textos que, um dia, aplicaremos. Em outras palavras, estamos vivendo com Deus e Deus nos está levando a viver na vida machucada e ferida de outros. Chego ao fim do capítulo com a certeza ainda maior de que Aconselhamento é tudo isso, mas é a lida diária, a maturidade, a disciplina e o treino que nos prepararão cada vez melhor para esse trabalho. No capítulo seguinte, o autor nos levará ao mesmo exercício, mas conectando agora os casos com textos do Novo Testamento.

    Do último capítulo, as duas ideias que mais me chamaram a atenção e que tem a ver como o que tenho conversado com amigos pastores é: 1) a total dependência do Espírito Santo; e 2) o valor da igreja como comunidade e família no apoio ao aconselhado. Tenho lido e visto vários “aconselhamentos”, mas o do Emlet tem algo diferente. Se eu pudesse trazer duas palavras seriam: realista e misericordioso. Realista, pois não vende algo que o produto não dará. Há muito aconselhamento aí fora prometendo o que não pode dar. E isso está ligado ao fato de que é um “método” que depende do Espírito Santo agir durante todo o processo de aconselhamento. As perguntas são essenciais, mas se o ES não agir não será a força do meu braço e nem a minha inteligência que farão o que só Deus pode fazer. E nas conversas que ando tendo com outros pastores sobre tudo isso que estou lendo, ouvi muitos falarem também que o aconselhamento se dá na “igreja”, na comunidade da fé, na família de Cristo. É também participando dos batismos, ceias e ouvindo as pregações; orando junto com os irmãos e uns pelos outros etc. Tudo isso ajunta-se ao processo de tratamento. Enfim, os meios de graça estão aí e foram entregues por Deus à Igreja para que fossemos curados. Portanto, não negligenciemos os meios de graça!

Fábio Ribas

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)

Carlos Nejar é um poeta recém-descoberto. Todavia, ele publica vasta e variada literatura desde 1960. O currículo a seguir, retirado de uma ...