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sexta-feira, 5 de abril de 2024

A mulher grávida que pisou a cabeça da cobra - um estudo de caso*

 


*Texto que publiquei originalmente em dezembro de 2016, mas que resgatei para minhas aulas de Fenomenologia da Religião.

A gravura deste texto circulou nas redes sociais e foi fartamente distribuída por pastores, missionários, seminaristas e tantos outros evangélicos neste Natal.

Contudo, o que me chamou a atenção foram as palavras da minha filha de 10 anos ao olhar para esse desenho: “Nada a ver! Não foi Maria quem pisou na cabeça da cobra”! E não foi só minha filha de 10 anos de idade quem se pronunciou sobre o desenho em questão.

“Nós nem vimos a cobra”, disse-me um casal de evangélicos diante da gravura. O que poderia justificar e ser usado como desculpa numa “curtida desatenta” por parte de tantos evangélicos maravilhados com a mulher grávida que pisa a cobra.

“Ah! Que lindo! Tem uma imagem de Maria que também pisa na cobra igualzinha a essa aí. Tão bonito isso”, disse-me uma católica. E devo confessar que, sendo ex-romano, a primeira coisa que me veio à mente foi a pinacoteca das diversas imagens católicas de Maria pisando a cabeça da serpente, que sempre estiveram presentes por toda minha infância e adolescência.

Tirando os evangélicos que “curtiram” sem se dar conta de que a mulher grávida do desenho pisava uma cobra, o que dizem os evangélicos “conscientes”, os que postaram a gravura? “É a Igreja”, responderam.

A mulher é o símbolo da Igreja e a Igreja é quem pisa a cabeça da cobra, que é Satanás. “Pisa” por extensão, é bom frisar. Quem pisou a cabeça da cobra foi Jesus, portanto, sendo Jesus o Cabeça da Igreja, esta o pisa vitoriosamente.

A figura da mulher como imagem da Igreja é depreendida a partir do texto de Apocalipse 12. Porém, o que João faz é o contrário do que seus interpretantes fizeram posteriormente. João toma Maria como símbolo da Igreja (e do Povo de Deus no Antigo Testamento), e não o contrário: a Igreja não é símbolo de Maria.

Mas é exatamente isso o que os católicos romanos fazem. Tanto que eles, ao se depararem com o símbolo da Igreja na figura de Maria, concluem inversamente: “Os homens é que devem escolher em qual lado lutar. Do lado da serpente ou se do lado da semente da Mulher — Maria — Mãe de Jesus Cristo, mas também de cada um” (Padre Paulo Ricardo).

“A semente da Mulher — Maria — Mãe de Jesus Cristo…”. Ora, o romanismo compreende que Maria é mãe da Igreja, a igreja é “semente de Maria”. Por quê? Por extensão também. Se Maria gerou Jesus, que é o Cabeça da Igreja, sendo a igreja o corpo de Jesus, logo Maria é mãe da Igreja.

Por isto, tão imediatamente, numa cultura católica como a brasileira, a maioria das pessoas irá identificar aquela mulher grávida que pisa a cabeça da serpente no desenho em questão não com a Igreja vitoriosa, mas com a mãe da Igreja — a mulher Maria; ainda que o catolicismo oficial saiba muito bem que quem pisou a cabeça da cobra foi Jesus (veja aqui).

A mulher da gravura está grávida. E é na condição de grávida que ela pisa a cabeça da serpente — e não é nada disto o que encontramos em Apocalipse 12. A vitória sobre o diabo, por intermédio de Maria e sem a Cruz, pois Jesus está no ventre dela — protegido de todo mal, de toda dor, de todo sofrimento, enquanto é o pé dela que pisa a cabeça da cobra — esta é a mensagem posta pela gravura.

O parágrafo acima revela o espírito do nosso século representado na gravura: o advento do feminino, da deusa mulher, da superioridade da mulher sobre o homem, da assunção da maternidade sobre a paternidade.

Ainda que a mulher da gravura fosse a Igreja, o equívoco foi coloca-la grávida — mais do que um ruído, mais do que uma mera interferência, é um excesso de informação que desloca o interpretante do verdadeiro sentido do Natal para uma interpretação transbordada de sincretismo pagão da Nova Era.

Sem a encarnação completa, sem a vida de total obediência, sem a paixão e sem a morte substitutiva e a ressurreição vitoriosa que compõem o evangelho da nossa salvação, um Messias protegido no ventre de sua mãe enquanto esta resolve o problema criado pelo ser humano é a interpretação que sobra: Maria sem dar à luz é tão somente a eternização da esperança messiânica que nunca se completa, ou ainda, um messianismo que é apenas o do “povo sofredor”, representado pela mulher grávida.

Em outras palavras, é um outro evangelho o da gravura: “Porque, como, pela desobediência de uma só mulher, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de uma só mulher, muitos se tornarão justos”.

Este ensaio não comporta tudo o que poderíamos desenvolver sobre a importância de sabermos evangelizar nossa geração, compreendendo todas as nuances e complexidades do nosso multiculturalismo pós-moderno, ainda assim há duas regras simples que eu deixaria aqui.

A famosa regra de ouro diz que, em termos de comunicação, o importante é o que o outro entende e não o que você quis dizer. E evangelizar é comunicar as boas novas da salvação e o mais importante é sabermos o que o outro compreende e não o que eu penso sobre o que ele deveria ter entendido.

A segunda regra é que, como missionários, não basta trabalhar com pressupostos, mas antes com aquilo que está propriamente posto: é muito mais importante você compreender o que está posto diante do interpretante por essa imagem da mulher grávida do que esperar que esse interpretante consiga entender os pressupostos da própria imagem da mesma maneira que o seu gueto teológico os entende (“entendimento” este que pode também estar equivocado, conforme demonstrei aqui).

Acredito que é preciso comunicar melhor a mensagem do Evangelho, ainda mais quando a veiculamos nas redes sociais, ambiente que alcançará crentes e descrentes das mais diferentes formações, e essa é uma responsabilidade que cabe, indubitavelmente, aos líderes cristãos que se utilizam da internet.

                        Fábio Ribas

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