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quarta-feira, 7 de agosto de 2024

A senhoria (XXXV/2024)


Ordínov, uma “criança” despertando para o mundo, mas que não discerne o mal, a manipulação alheia e nem seus próprios sentimentos e os dos outros. Ele está saindo de uma bolha e “nascendo” para o mundo a sua volta. Katierina, a “santa” profanada e profanadora. Uma jovem bela, mas atemorizante aos olhos apaixonados de Ordínov. Ela é submissa e controladora. Múrin, o “bruxo”. Certamente, a sombra do “velho bruxo” é que paira sobre os personagens de Ordínov e Katierina. Ele é a quem se refere o título do livro. Eis, portanto, os três personagens centrais da novela de Dostoiévski, “A senhoria”. 

Desta vez, quis dar uma descrição dos personagens principais, pois isso me ajudaria a falar de um texto tão denso, embora curto, que é este livro. Pensei também em começar já dizendo que gostei DEMAIS desta história. Há razões literárias, mas há também uma razão pessoal, para que eu goste tanto de uma novela que, na época de seu lançamento, foi tão criticada e mal recebida. Aliás, até agora, são três Dostoiévskis diferentes. “Gente pobre”, seu primeiro romance, caiu no gosto do público e da crítica por ser o que os russos estavam produzindo naquele momento, que eram os chamados romances de cunho social. “Gente pobre” é um romance epistolar, que me agradou muitíssimo. O segundo romance já foi muito mal visto pela crítica e pelo público, que foi “O duplo”. Contudo, eu amei! Um romance intrigante, fascinante e fantástico. Agora, “A senhoria” é um terceiro Dostoiévski, romântico, elaborado, rebuscado e profundamente mergulhado na psique confusa de seus personagens. Tanta gente critica este, mas, para mim, um dos melhores livros que já li. Por quê? Vamos lá!

Primeiramente, os personagens são muito bem construídos. A narrativa é sufocante e onírica. A história é contada em terceira pessoa, mas nos é dada apenas uma única perspectiva, que é a de Ordínov, sendo, então, uma narrativa de terceira pessoa cujo narrador é onisciente de um único personagem. Só os pensamentos dele nos são revelados, assim, os demais vão nos envolvendo numa imensa incógnita. E pior: será que o que recebemos de Ordínov é aquilo mesmo? Mas quem é Ordínov? Um personagem recluso por toda infância e adolescência e que, agora, sai do seu casulo estudantil e, portanto, conhece quase nada da vida e dos relacionamentos humanos. Por isso, a interpretação do personagem em relação ao que está acontecendo a sua volta pode estar equivocada. Mas como saber?

Depois, a jovem Katierina é ambígua e oscilante. Em determinado momento da leitura, eu pensei, “ela é louca”! Mas é nessa personagem que reside a razão pessoal para que eu tenha gostado tanto da história. Ela me lembra alguém. Toda aquela narrativa, todo aquele delírio, lembrou-me alguém do meu passado. Alguém com quem eu tive diálogos muito, mas muito parecidos mesmo com os que ela e Ordínov têm um com o outro. E a loucura e o sonhos, as alucinações, enfim, tudo o que não nos deixa discernir bem o que de fato ocorreu (quem matou quem? Quem é Múrin? Qual a natureza daquela relação? O que é verdade e o que é mentira ali? O que seria, talvez, apenas confusão de um jovem doente e imaturo emocionalmente?), tudo isso pode ser uma linguagem propositadamente oblíqua, velada, para se esconder um fato do qual não queremos enfrentar. Quando algo chocante ocorre, quando ultrapassamos os limites do “civilizado”, do aceitável, quando a loucura se instaura na vida real, tendemos a usar a linguagem como um instrumento de obliteração. Fugimos de “dar nomes aos bois”, uma vez que nomear é trazer à existência e trazer à tona pode ser doloroso e absurdo demais. Ninguém quer ver a própria feiura pecaminosa. E eu e essa pessoa de um passado longínquo tínhamos diálogos assim, exatamente por ser doloroso, tenebroso e terrível para ela tratar de seu trauma de maneira clara. Essa pessoa conversava comigo, contava sua história e o que ocorria, porém, sempre recorrendo a metáforas. E é isso o que vemos em Katierina. Mas, assim como essa pessoa, a personagem de Katierina é doente.

Múrin, no fim de tudo, é mesmo um bruxo. Um ilusionista das palavras, um manipulador de todas as pessoas a sua volta. E a pior coisa que pode acontecer com Ordínovs da vida (e com Katierinas também) é encontrarem com psicopatas assim. Os Múrins que nos assaltam são vampiros, monstros mesmo, que tiram toda nossa sanidade e, por fim, convencem suas vítimas de que a culpa é delas e elas são imperdoáveis pelos pecados que cometeram (e cometem). Katierinas e Ordínovs não sobrevivem diante de Múrins (“Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”, I João 5:21). E o pior é sairmos sendo vistos como vilões (nós, os que fomos usados, sugados e cuspidos), enquanto nossos Múrins são aplaudidos pela sociedade.

Enfim, que livro! Que história! Que mergulho na natureza humana totalmente depravada. Leitura imprescindível!

            Fábio Ribas

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Breve Manual de Aconselhamento Redentivo (XXXIV/2024)

 


“O aconselhamento redentivo é um modelo de aconselhamento bíblico pressuposicional, tanto no sentido de resgate de ideias e teorias sobre a natureza, movimentos internos e comportamentos humanos quanto no sentido de aplicação da redenção a problemas internos e situacionais da pessoa. Isto é, sua validade depende de pressupostos anteriores revelados na Escritura bíblica” — Rev Wadislau Gomes.

No Brasil, finalmente, há um grande desafio posto à mesa: prepararmos a igreja para que nela sejam forjados cristãos conselheiros uns dos outros, que, nada mais é, do que empreendermos o plano bíblico da mutualidade do serviço cristão na área do amor ao próximo. Para que alcancemos esse propósito, porém, há um longo caminho a ser percorrido. Um caminho que, indubitavelmente, passa por um autoexame crítico que cada igreja local deverá fazer. Oque nossos púlpitos têm ensinado? O que temos oferecido em nossas igrejas como modelo de discipulado? Até onde temos ido e com qual propósito no preparo de nossas lideranças no que se refere ao desafio de cuidarmos uns dos outros?

Pensando “dentro de casa”, o modelo de governança presbiteriana têm seus aspectos positivos e negativos, assim como quaisquer um dos outros modelos de governo eclesiástico. Cada modelo oferecerá seus próprios desafios para cada contexto local e denominacional também. Porém, como já disse, quero me ater a minha própria casa. O modelo representativo democrático, assim como vemos que ocorre no modelo do Governo do Brasil, tende a “terceirizar” nossas responsabilidades. Portanto, isso é um problema cultural. O povo vê o Governo Brasileiro como responsável por tudo, até mesmo por suas próprias responsabilidades. O Estado deve cuidar da vida de cada cidadão garantindo a saúde, educação, segurança etc. Este traço cultural é um ranço trazido para dentro de nossas igrejas locais. A “obrigação” do pastoreio, do cuidado espiritual é compreendida como exclusividade dos pastores e, quando muito, dos presbíteros também, afinal, “eles foram eleitos para isso”. Assim, o primeiro grande desafio para a instauração de um novo paradigma é a quebra de um paradigma anterior. Somente uma nova cultura poderá tomar o espaço de outra. 

Afinal, quem cuida de quem? Se dissermos que “todos” cuidam de todos, sabemos que essa é uma resposta que nos levará a um resultado “zero”. Toda igreja local precisa enfrentar a questão de que, antes de tudo, falamos de realidades espirituais e que essas se manifestam na maturidade de cada um dos nossos irmãos. Daí, as perguntas no primeiro parágrafo deste texto. Vou acrescentar mais uma: o que seria uma “igreja conselheira”? Como nos instiga o Rev Jônatas Abdias: “Afinal, do que o conselheiro bíblico fala, senão daquilo que se encontra na Bíblia?”. Óbvio? Contudo, o que talvez não esteja tão claro é que o autor do “Breve manual de Aconselhamento Redentivo” está mostrando ao seu leitor é que o aconselhamento é uma questão espiritual e não meramente de “formação acadêmica” ou “conhecimento de conteúdo”. Uma vez compreendido isso, podemos retornar ao enfrentamento do que caracteriza uma igreja conselheira (uma cultura de aconselhamento local). E o que é? Maturidade espiritual! Em outras palavras, a igreja carece de homens e mulheres maduros na caminhada cristã. Este, enfim, é o maior desafio quando nos engajamos na cultura bíblica do aconselhamento. Precisamos orar para que Deus nos dê líderes e irmãos maduros na fé, com os quais enfrentaremos nossa cultura individualista, negligenciadora e terceirizada.

“Aconselhar é, muitas vezes, ajudar a pessoa aconselhada a enxergar a vida por outro ângulo. Não podemos atuar sobre os olhos da pessoa, mas podemos apontar para a perspectiva que muda tudo: a perspectiva divina revelada na Palavra. Usamos as nossas palavras para esclarecer a Palavra de Deus e, assim, apontamos para o Redentor — sendo que dele vem a solução tão desejada. É isto que nos faz redentivos: habitarmos juntos na mesma compreensão, na mesma perspectiva”.

O apelo do aconselhamento é, antes de tudo, pastoral, mas, certamente, apologético também. Pois, como bem nos lembra o Rev Abdias: “Aconselhamento não é só confrontação, mas devemos estar preparados para trazer todo pensamento cativo à Jesus”. O que eu acho mais fascinante neste desafio da implementação de uma cultura de aconselhamento em nossas igrejas locais é que isso exigirá um esforço de crescimento espiritual e — no meu entendimento — isto terá consequências no campo missionário. Já escrevi sobre isso e deixo aqui: “Aconselhamento Intercultural e a Missão da Igreja”.

De maneira muito prática e desafiadora, o Rev Abdias nos oferece 5 princípios para guiarmos nossa conversa com nosso aconselhado lembrando que “mudar não é fácil. E pode realmente ser doloroso o processo da mudança, mas, enquanto mudamos, Deus nos consola. E somos consolados para consolar”.

Resgatar nossas igrejas da mentalidade mundana de “cada um por si e Deus por todos” será doloroso, pois perceberemos que, assim como ocorre com muitos que buscam uma “faculdade de psicologia”, o interesse daquele membro da igreja pode ter começado apenas para “se entender” e “resolver os próprios problemas e traumas vividos”. Em outras palavras, no atual modismo de “aconselhamento”, vemos muitas pessoas em busca de se resolverem a si mesmas e quase sem interesse em relação ao outro, ao próximo, ao irmão na fé. São desafios que todos nós precisamos ter em mente, para que, de fato, possamos caminhar com o propósito de levarmos a todos nós — Corpo de Cristo — a uma compreensão bíblica e mais acertada sobre os propósitos de Deus para sua igreja local. Estamos aqui, plantados pelo Senhor, para glorificarmos a Ele em meio a um mundo perdido em trevas densas e escuras.

Enfim,

“Há um dom para ser conselheiro? Certamente, não. Até porque todos os cristãos são chamados para se aconselharem mutuamente. Todavia, não é por isso que faríamos o trabalho do Senhor relaxadamente. Precisamos usar nossos dons a serviço do aconselhamento”.

O capítulo mais importante deste breve livro, para mim, foi o último. Pois nele o autor confirma a razão por que encontrei no “Aconselhamento bíblico” a peça que faltava na missiologia de campo. O último capítulo é sobre “comunicação” e o cuidado que temos que ter na maneira como servimos ao aconselhado a Palavra de Deus. Afinal, o que queremos? Queremos ser açougueiros ou cozinheiros? Sempre levei essa questão para o campo, que é a que tange a “contextualização da nossa comunicação”. Calvino costumava trabalhar com a metáfora da “babá”, para mostrar como que o Deus eterno se aproxima do ser humano dando-nos a sua Palavra da mesma forma como uma babá se aproxima de uma criança. Deus decretou nos falar em nossos termos! O último capítulo do livro do Rev Jônatas Abdias é sobre isso. Certamente, levo este capítulo final como leitura obrigatória para oferecer aos meus alunos de comunicação intercultural.

Um livro precioso e de um tema fundamental para plantadores de igreja, uma vez que, como ouvi de alguém certa vez, aquilo que fizermos no processo de plantação de uma igreja será o que ficará no DNA dela. Assim, se queremos “igrejas conselheiras”, precisamos levar aos nossos missionários espalhados mundo afora a mensagem deste livro. 

                    Fábio Ribas


Para um maior aprofundamento sobre o tema do Aconselhamento, deixo abaixo minhas resenhas sobre:

1) Descrições e prescrições;

2) A culpa é do cérebro;

3) Uma nova visão;

4) Conversa cruzada.


 

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Aconselhamento Intercultural e a Missão da Igreja*



Tenho acompanhado o crescente interesse da Igreja Evangélica Brasileira quanto ao tema do Ministério de Aconselhamento. Isso é perceptível no número cada vez maior de obras traduzidas e publicadas oferecidas ao público brasileiro. Todavia, um amadurecimento e engajamento das igrejas locais numa “cultura de aconselhamento” ainda está muito longe de ocorrer. Ainda que, até mesmo, o “Aconselhamento” já esteja surgindo na grade curricular de alguns Seminários Teológicos, isso não significa que tenhamos um “Centro de Aconselhamento” a partir da difusão da filosofia bíblica do “uns aos outros” nos nossos púlpitos. Assim, esse quadro geral aponta muito mais para os atuais desafios do que para o que poderíamos ter de substancial em nossas igrejas.

Se o quadro geral revela o trabalho que temos adiante na formação de uma “Igreja cuidadora”, imagine o desafio ampliado para o campo missionário em meio aos mais diversos povos da terra. No trabalho missionário brasileiro presente nas mais diferente etnias, tanto no Brasil como no mundo, sabemos que a tendência dos missionários no campo é a de estarem sintonizados com aquilo que a Igreja enviadora está fazendo e pensando no âmbito local. Portanto, não podemos esperar que estejamos vendo coisa muito diferente sendo feita pelos missionários em seus campos de trabalho, quanto ao tema de Aconselhamento. Os desafios transculturais do Ministério de Aconselhamento também são enormes e apenas muito recentemente estão sendo pensados pela área da Missiologia.

Não podemos descartar a realidade complexa de um campo missionário, que sempre tende a multiplicar os desafios apresentados num contexto urbano ou mesmo rural, mesmo aqui em território nacional. Afirmo isso não só por saber que os contextos nacionais não são mais simples do que os trabalhos com diversas culturas, mas, pelo fato, muitas vezes, da liderança das igrejas no Brasil não perceberem a complexidade cultural que suas próprias congregações e obreiros têm enfrentado logo ali no “bairro adjacente”. O que eu quero dizer é que a complexidade cultural no Brasil também é um campo de grandes desafios para a Igreja Nacional, todavia, a formação teológica de nossas lideranças, em muitos Seminários, carece de ferramentas que ajudariam numa leitura e atuação mais precisas da realidade multicultural que cerca nossas igrejas locais.

Com os inúmeros processos migratórios que têm ocorrido nas últimas décadas, o Brasil têm recebido etnias das mais diferentes partes da terra. Soma-se a isso a presença já histórica dos imigrantes na composição de nosso caldo cultural. São japoneses, chineses, coreanos, árabes etc. Enfim, durante muito tempo, no Brasil, pensou-se “missões transculturais” como um movimento para fora de nossas fronteiras geográficas. Dentro de nossa Denominação — a IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil)-, isso se reflete na própria história recente dela. Antes do ano 2000, a IPB contava com a JMN (Junta de Missões Nacionais) e com a JME (Junta de Missões Estrangeiras) como suas frentes missionárias. Todavia, essa bifurcação representa uma filosofia de uma época que não olhava para a nossa realidade multicultural: os diversos povos que já se encontravam em solo brasileiro. Tendo a JMN atuando na plantação de Igrejas nos mais diversos municípios brasileiros, a JME, por sua vez, atuava em tudo aquilo que não fosse “Brasil”. O que uma estrutura assim representa? Que o entendimento do desafio transcultural era algo para missionários que saíssem ao estrangeiro! Mas e os povos residentes no Brasil? Quem trabalharia com eles? Culturas diversas que se encontravam nas grandes e nas pequenas cidades brasileiras, e que não eram levadas em conta nem pela JMN e nem pela JME, pois faltavam estratégias e formação específica necessárias. A criação da APMT, por volta do ano 2000, marca essa mudança de paradigma no entendimento missionário da própria IPB. Assim, seja fora ou seja dentro do Brasil, a nossa Agência Presbiteriana de Missões Transculturais (APMT) abraça todos os trabalhos de plantação de igreja no ambiente missionário.

Tudo o que relatei até aqui é apenas com o intuito de nos prepararmos para a dimensão da obra que aguarda o Ministério de Aconselhamento nas próximas décadas, pois temos conseguido ver que o mundo como um todo está cada vez mais interligado e sem fronteiras “intransponíveis”. A televisão e a internet estão dando a cada um de nós essa consciência global de que a casa da gente é bem maior que o bairro em que a minha residência está construída. Povos têm se encontrado uns com os outros e trocado informações, compartilhando sua visão de mundo numa velocidade e numa escala global nunca antes vista na história da humanidade. Assim, tudo isso trouxe à Igreja a compreensão de que vivemos em sociedades cada vez mais complexas e que, dessa maneira, os problemas transculturais e interculturais, narrados por missionários antes tão distantes e trabalhando em campos tão exóticos, hoje se apresentam a quaisquer igrejas locais onde estejamos nos reunindo no Brasil. Isso tem sido uma mudança drástica! Veja, a própria organização tradicional das sociedades internas em idade e gênero da IPB (UPH, SAF, UCP e UMP) está longe de ir ao encontro da nova realidade geracional que temos. Algumas igrejas locais têm tentado oferecer um novo ambiente para que nossas igrejas estejam mais coerentes com o que as famílias têm enfrentado nos tempos atuais. A estratégia dos “pequenos grupos” (PG’s), que tem a elasticidade de se apresentarem como “grupos de afinidade”, em que, ao invés do tradicional agrupamento por idade ou gênero, possibilita o encontro entre os sexos e a congregação entre pessoas que percebem ter mais pontos em comum e áreas de interesse semelhantes umas com as outras. Isto tudo facilita, indubitavelmente, o estudo e a aplicação da Palavra de Deus num recorte mais vívido e coerente. Se o recorte das gerações anteriores proporcionava agrupamentos mais gerais entre os membros de uma igreja local, atualmente, as tentativas são de pequenos grupos de interesses comuns. Contudo, isso é apenas um exemplo de como nossas igrejas são desafiadas pelo novo contexto que se aproxima delas e como elas têm respondido à geração a que fomos chamados para pregar. E não há como passar desapercebido que uma igreja local de pequenos grupos se torna muito mais propícia a desenvolver com maior sucesso uma filosofia de aconselhamento mútuo, pois as afinidades e interesses são mais comuns, aumentando a compreensão dos problemas que o outro está passando.

Se muitas igrejas locais ainda estão distantes de um modelo que atenda de alguma forma os desafios de comunhão e congregação da sociedade que a cerca, some a isso a realidade cultural complexa que hoje encontramos nos atuais centros urbanos (e certamente nas pequenas cidades do interior do Brasil também). Atente, neste momento da sua leitura, para o fato de que sequer ainda estou falando de outras etnias. Ainda não cheguei lá. Estou me referindo a uma complexidade outra — ainda não étnica — que vem de pequenos outros grupos que poderiam ser melhor alcançados por nossas igrejas. Estou me referindo aos grupos de motoqueiros, caminhoneiros, jovens jogadores de videogame, empresários de um mesmo ramo de negócios afim, comerciantes, professores de universidade etc. São categorias socioculturais! Agora sim, quero acrescentar mais um elemento: as diversas etnias presentes na cidade. Tudo isso nos dá, mais uma vez, o quadro geral enfrentado por nossas igrejas locais e que, dificilmente, vemos nossas lideranças preparadas adequadamente nos Seminários e institutos para darem conta desse caldo multicultural. Daí, mais acima, eu ter trazido à baila o fato incontestável de que os desafios missionários transculturais estão bem à porta de nossas igrejas, mas, infelizmente, a formação acadêmica de nossas lideranças ainda passa longe de ajudá-los no enfrentamento antropológico disso tudo.

Mas e o Aconselhamento? O Aconselhamento é um movimento recente de resgate de uma tarefa que foi terceirizada pela própria Igreja. E se, nos últimos anos, o Aconselhamento possui pelo menos algumas frentes de atuação já conflitantes entre si, o mesmo ocorre com “missões”. Na área do Aconselhamento, podemos identificar pelo menos três escolas e propostas diferentes: o integracionismo, o bíblico e o redentivo — todos se apresentando como cristãos. Interessante notar que o âmago daquilo que as separa é exatamente aquilo que diverge diversos missionários nas áreas de suas atuações antropológicas, a saber: a relação com a cultura. Abraçaremos a cultura sem restrições? Rejeitaremos a cultura por completo? Ou negociaremos com ela? E se negociarmos, quais os limites? Essas três perguntas resumem de maneira simples o que move o debate tanto na Missiologia como no Aconselhamento nas últimas décadas.

Semelhantemente às questões postas acima, vejo o Aconselhamento trilhando um caminho muito semelhante à missiologia, mas com o ponto positivo de dar uma resposta mais adequada, trazendo equilíbrio à antropologia missionária de campo. Refiro-me à tensão “coletivo-indivíduo”, que nas discussões missiológicas sempre tendem muito mais ao coletivo e quase mesmo ignorando o indivíduo. Tudo isso é fruto de uma base missiológica que se estabeleceu sobre as ciências humanas (antropologia, sociologia, filosofia etc). Infelizmente, essas ciências humanas são humanistas, antropocêntricas e marxicizadas em si mesmas, trazendo muito o viés de uma leitura sempre do todo, do grupo, da sociedade, da cultura. Mesmo a psicologia, que poderia tratar o indivíduo, trata-o, antes de tudo, de modo massificado e sempre como resultado de um grupo (do que outros fizeram com ele). Neste ponto, o Aconselhamento bíblico se mostra muito mais justo, pois, ao se posicionar contra a psicologização de nosso tempo, acaba por arrancar o indivíduo de suas interpretações massificantes e oferece uma leitura muito mais pessoal, humanizando-o a partir da sua “imago Dei” — nosso Criador nos chama pelo nosso nome! Por tudo isso, encontro no Aconselhamento, não só nos seus conceitos, mas também no seu método e em sua apologética, “Deus no cenário”, tratando o ser humano numa perspectiva muito melhor do que as ciências sociais têm oferecido no campo para tantos missionários. Enfim, se tivermos uma boa teologia reformada em mãos, que nos forneça uma antropologia bíblica, o aconselhamento fecha o conteúdo no ambiente em que o missionário se encontra, a saber, diante do outro, com quem ele se comunica, evangeliza e discipula. Acrescentaria aqui apenas mais uma disciplina, “a união com Cristo”, que se apresenta como a liga que dá a unidade e a direção a tudo o que podemos fazer no campo intercultural.

Há muito, eu venho comentando com meus alunos, nas diversas formações que dou aos missionários, sobre o que chamo de “culturolatria”. Tristemente, vemos no campo missionário uma ação muito mais engajada de “salvar” a cultura do que o anseio pelo compromisso de salvação das pessoas. Não somente no campo de uma teologia liberal, mas, até mesmo, numa seara que se diz conservadora, mas tem um projeto de cristandade, que se se origina no romanismo católico, e se revela em nosso meio protestante num discurso de “redimir a cultura”. Para mim, tudo isso é muito perigoso e desvia o foco da Missão que a Igreja recebeu de Jesus Cristo.

Acompanho alguns indígenas, aconselhando-os. No Brasil, o trabalho missionário com indígenas é um capítulo à parte, cercado de proibições e perseguições tanto da parte do Governo como de ONG’s e Universidades. Trabalhei num campo, por exemplo, em que os líderes indígenas eram direcionados para um tratamento com psicólogos, até que um deles me procurou falando que o psicólogo que trabalhava para a Missão Evangélica nesse atendimento estava colocando-os para duvidarem da própria fé cristã. É por essas e outras que sempre estive atento e buscando assumir esse cuidado, evitando, ao máximo, que isso não se repetisse. Contudo, é a falta de uma filosofia de Aconselhamento bíblico no campo missionário que continuará a levar isso adiante, até que possamos formar uma geração missionária com “uma nova visão”.

Quando falo em “culturolatria”, quero relatar um caso. Estava atendendo um casal de líderes indígenas de determinado povo, pois ambos vinham passando sérias dificuldades de relacionamento conjugal, até que houve um caso de adultério por parte do marido. Culturalmente, o acesso à voz da esposa era muito difícil, pois ele controlava todas as entrevistas. Pedi, então, que a minha esposa pudesse conversar, no intuito de que pudéssemos ouvir o coração dela e não apenas o marido o tempo todo falando. Sim, é uma cultura muito marcada pelo machismo. Na primeira entrevista, logo após o caso de adultério, os dois apareceram para conversar, mas, o meu desejo mesmo era ouvi-los em separado. Não esperava que a esposa estivesse junto, pois era o primeiro encontro após o adultério e eu precisava sondar mais e entender as raízes do coração que levaram o marido a isso. Houve esse primeiro encontro e, depois, conversando com um pastor indígena da mesma etnia desse casal, ele me disse que, culturalmente, ele via com muito gosto que ambos tivessem aparecido, pois, quando isso acontecia, era o homem dizendo que, a partir dali, ele diria só a verdade e não esconderia mais nada da sua esposa. Tudo bem. Alegrei-me com isso, mas, logo nas horas seguintes, ele foi atrás repetir o adultério. A verdade é que não sabemos ler nossa própria cultura, assim como o peixe não consegue ver que ele está preso dentro de um aquário. A cultura nos ajuda numa primeira leitura em que identificamos pontos de contato e pontos de divergência com o Evangelho, mas ela também é usada para esconder, escamotear e ocultar.

Embora eu esteja acompanhando alguns casais indígenas, acredito que o melhor a ser feito para a Igreja Indígena (e demais etnias no Brasil e no mundo) é preparar as próprias lideranças nativas, para que eles assumam o aconselhamento bíblico dos seus povos. Temos pastores, presbíteros e diáconos, mas não é só isso. Culturalmente, podemos nos beneficiar da característica dos povos orais, oriundos de uma cosmovisão animista, de serem eles muito mais recíprocos do que somos na nossa cultura. O que quero dizer é que há povos indígenas (e de outras culturas) que receberiam muito bem o Aconselhamento bíblico do leigo com o leigo. Há muitas “conversas com a intenção de ajudar”, mas elas precisam ser intencionais e bíblicas. Portanto, no meu caso, como missionário transcultural, a aplicação que melhor vejo é trabalhar na formação das lideranças étnicas e nas pessoas em geral das igrejas em que os nossos missionários estão envolvidos, para que eles possam desenvolver uma cultura de Aconselhamento bíblico e, assim, apoiá-los nesse desenvolvimento. Tenho tido oportunidades na formação de missionários brasileiros, indígenas e africanos, principalmente, e tenho compartilhado a importância de levarmos o Aconselhamento bíblico para as novas igrejas que têm sido plantadas nessas culturas. Assim, a minha melhor aplicação para a minha realidade missionária transcultural é semear nos cursos que ofereço e nas grades curriculares, quando sou chamado a participar das confecções de suas grades curriculares, a importância de formarmos conselheiros bíblicos que trabalhem em seus contextos culturais. Um desafio maravilhoso que pretendo dar seguimento. E sei que quaisquer missionários, onde estiverem, podem abençoar ainda mais o campo em que estão fazendo o mesmo.

                Fábio Ribas

*Publicado originalmente em 15 de junho de 2023

O caminho da servidão (XXXVII/2024)

“O que sempre fez do estado um verdadeiro inferno foram justamente as tentativas de torná-lo um paraíso”. — F. Hoelderlin Quando cedemos a q...