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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Minha esposa é minha cúmplice!

   


Um post para celebrar o nosso aniversário de casamento.


    Sempre que penso em nós dois, em mim e na Lu, vem à mente a palavra cumplicidade. Esta palavra, escandalosa para algumas pessoas, traz consigo um forte aspecto cultural de ilegalidade, criminalidade, “formação de quadrilha”. Todavia, essa é apenas uma de algumas acepções possíveis.

    Certamente, a primeira definição que o Houaiss nos apresenta vem do ambiente do direito penal: fala-se de alguém “...que contribui de forma secundária para a realização de crime de outrem”.

    Ora, mas se o casamento entre um homem e uma mulher, esta instituição chamada família tradicional, tem sido uma pedra de tropeço para muitos que têm lutado pelo new establishment, então, evidencia-se o crime que cometemos aos olhos deles: insistir que o matrimônio é uma instituição divina, que foi planejada originalmente para firmar a aliança entre um homem e uma mulher para a glória de Deus.

    Por extensão, Houaiss indica que a palavra cumplicidade pode ser aplicada, tão simplesmente, àquela pessoa que “colabora na realização de alguma coisa; sócio, parceiro”. A partir daqui, fica menos espinhoso o uso do verbete, pois é fácil perceber que o casamento visa a co-laboração, o trabalho, o labor dos dois em prol de um mesmo objetivo. Nestes termos, não há casamento sem sociedade, sem parceria.

    A família é uma equipe, a sua melhor equipe! Sempre digo às minhas filhas: “Olha! Somos uma equipe, vocês fazem parte da equipe do papai”! Não podemos nos abandonar, nos dividir, pois até o diabo sabe que um reino dividido contra si mesmo cai e vai à bancarrota.

    A família é um time, em que todos somos verdadeiramente responsáveis pelo sucesso dessa maravilhosa empreitada de glorificar a Deus tanto nos nossos sucessos, quanto nas nossas derrotas; tanto na saúde, quanto na doença; tanto no amor, quanto na dor; tanto na alegria, quanto na tristeza.

    Este foi o pacto, esta é a aliança. Casamento é um pacto e surpreendo-me quando vejo que o diabo e seus anjos conseguem compreender isso muito melhor do que a própria Igreja de Jesus. O diabo entende de pactos; muitas vezes, a Igreja não.

    Há outra acepção da palavra cúmplice, segundo Houaiss, há um sentido figurado “que apresenta intenção repreensível, maliciosa ou sugestiva”. Verdade. Essa malícia ocorre toda vez que os olhares se postarem, indevidamente, para fora dos limites do matrimônio. Entretanto, quando nossos olhos se voltam sempre sobre o nosso cônjuge, veja a ironia da linguagem, podemos muito bem sugerir ideias deliciosamente calientes um ao outro e, indubitavelmente, nada disso será repreensível por parte de Deus.

    Minha esposa é minha cúmplice! Porque, ainda segundo as acepções de Houaiss, ela possibilita, favorece, concorre em favor da realização do meu ministério. Quero, portanto, respondê-la em amor: fazer sempre o mesmo por ela. Quando eu ainda estava noivo da Lu, a minha oração a Deus mais frequente era: “Senhor, faz de mim um homem de verdade para ela”.

    Todos sabemos que, infelizmente, muitos casamentos são acéfalos por estarem destituídos de homens que assumam suas devidas responsabilidades como homem, marido, pai. Como dizem, não basta estar casado, tem que participar: participar da vida do cônjuge!

    Enfim, na história dessa palavra cumplicidade, há lições que deveríamos trazer para dentro do nosso casamento. Veja: cumplicidade e complexidade andam juntas, como que por um charme da língua portuguesa. É necessária a complexidade dessa união ou, dizendo de outra maneira, é preciso esse estar junto na cumplicidade complexamente. Vamos brincar um pouco mais com as palavras?

    Cumplicidade, complexidade, complicar... Por que não? Mas só no bom sentido dessa com-plica-ção, que é “estar junto, dobrado na mesma pele, enroscado sobre a mesma dobra”.


    Então, estejamos assim bem juntinhos, bem complicadinhos, para nunca descomplicar esse cordão de três dobras e podermos curtir essa benção maravilhosa de estar casado.


Fábio Ribas

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    Originalmente, este texto foi publicado em 12 de março de 2015. E nem era aniversário de nosso casamento! E este texto vinha ainda acompanhado de um vídeo que fizera em homenagem à minha esposa. Segue abaixo:




sábado, 25 de novembro de 2023

Uma nova visão (XII/2023)

     


    O livro "Uma nova visão", de David Powlison, lançado pela Editora Cultura Cristã, é uma obra que busca esclarecer os principais erros tanto do Aconselhamento como, também, das teorias da psicologia e biopsiquiatria atuais. David Powlison (PhD) é editor de The Journal of Biblical Counseling, é professor no Christian Counseling and Educational Foundation (CCEF) e no Westminster Theological Seminary. Autor de "Confrontos de Poder" e "Falando a verdade em amor", da Cultura Cristã. Devo ressaltar que, realmente, preferia uma tradução de título mais próxima do original, que é "Seeing with New Eyes". Jamais leria um livro com este título em português: "nova visão". Ele me passa uma série de impressões erradas, tanto espirituais como ideológicas. Já um título como "Vendo com novos olhos" contribui com uma ideia totalmente diferente do que o título em português tende a passar. Então, por que eu o li? Porque li o artigo "Crítica aos integracionistas atuais", do Powlison, por causa de uma disciplina de Mestrado, e só posso dizer que foi um artigo que eu gostei demais!

    A Bíblia é suficiente para responder e tratar todos os nossos problemas? Ou haveria aspectos que Deus estaria "do lado de fora" de nossas vidas? Pois é disso que o livro está falando. A Igreja precisa fazer com que as pessoas vejam Deus no contexto de seus problemas. Antes de tudo, é um livro para apresentar o conceito de "Aconselhamento". Logo no início do prefácio, ele faz uma explicação simples, mas que achei sensacional do que seria "aconselhamento": "conversas que têm a intenção de ajudar". Todavia, ele demonstra que há conversas que partem de uma perspectiva humanista e outras que podem partir sob a perspectiva de ver Deus.

    O autor escreveu esse livro com o propósito de escrever mais outros dois livros. O segundo abordaria a metodologia e o terceiro seria apologético. Queremos ver a vida como um todo, vendo-a com o olhar de Deus - o Aconselhamento bíblico é capaz de conduzir as pessoas a essa "nova visão", ou, ainda melhor, o Aconselhamento bíblico pode levar as pessoas a verem com novos olhos suas próprias vidas e as circunstâncias que as cercam. Na verdade, como o próprio autor nos diz: "Deus tem a visão real das coisas. E Deus nos ensina seu olhar".

    O autor foi muito ousado, na minha opinião, mostrando o que Paulo fazia com as Escrituras e indicando que façamos o mesmo. Na verdade, ele mostra que já fazemos o mesmo que Paulo também fazia. Para isso, ele está usando como base a carta de Paulo aos Efésios, que eu também amo muito. Se os três livros que mais oferecem deleite para Powlison são Efésios, Salmos e Lucas, para mim, os quatro livros que me oferecem o mais profundo deleite são: Jó, João, Efésios e Hebreus. Assim, que maravilha ler a seção sobre Efésios, que, da maneira como vejo, tem uma importância missiológica central no trabalho transcultural. Interessante é esta pergunta: "Por onde devo começar?", porque nunca pensei em começar por Efésios. Sempre começo pelo Evangelho de João. Por isso, foi ainda mais interessante ler Efésios a partir de uma perspectiva muito diferente da que estou acostumado. Concordo que é uma carta de teologia prática, só que eu praticava na área missionária e não de aconselhamento. O mais impressionante foi ver Powlison fazer um tipo de leitura, mostrando que Paulo fazia "links" com o Antigo Testamento o tempo todo. E é exatamente isso que eu também chamo a atenção das pessoas quando leio o Evangelho de Jesus segundo João. Este também está em plena comunicação com o AT o tempo todo.

    Quem é Deus para você? O conselheiro tem que ser alguém com uma fé verdadeira, viva e vital! É preciso que Deus seja a pessoa em quem você confia, pois você falará dEle a pessoas que estão como barquinhos se debatendo contra as ondas em meios às tempestades. Deus está transformando as pessoas nesse processo. Deus age em meio ao seu Povo. Para o aconselhado é fundamental saber quem é Deus e compreender que Deus só se faz conhecido por meio de Jesus Cristo. É por meio de Cristo que Deus realiza seus propósitos (gostei demais da analogia com o tapete a ponto de parar de ler, na hora, sair correndo e mostrar à minha filha Gisele a ideia de como vemos do lado de cá o tapete com remendos, rasuras e defeitos, mas, do lado certo, que é o lado de Deus, Ele vê a beleza que não vemos). Deus derrama graça sobre nós e essa graça revela que o pecado é o nosso problema mais profundo. Deus age na história e, mais do que isso, a leva a um maravilhoso clímax!

"A História humana trata do justo Rei e seus aliados que invadem o império das trevas. Cada um escolhe seu lado. Fingir neutralidade e agnosticismo é apenas encobrir as trevas. O Deus vivo e Cristo não são mera opção. A escolha é esta: vida ou morte, conheça-o ou morra. Sejamos perdoados pela maravilha do que Cristo fez por nós ou recebamos sobre a cabeça aquilo que merecemos" (p.52).

    A citação acima me faz lembrar que as tantas teorias que as pessoas inventam sobre Deus podem ser digeríveis a elas, mas nada, nenhuma filosofia, religião ou invencionice da cabeça dos homens irá alterar nada do Ser de Deus - e isso sempre me foi muito assombroso. É uma escolha de lados numa guerra e não um jogo para ver quem vence o concurso de melhor narrativa sobre Deus. E isto, essa consciência de que os homens estão perdendo tempo em vãs filosofias, sempre foi muito assustador para mim. Por fim, ainda no capítulo 02, volta o insistente tema que mais tem estado presente na minha vida: a união com Cristo. Eu tenho estudado muito sobre nossa união com Cristo. E depois de ter vivido tanta coisa no campo missionário, tantas coisas que eu não entendia, mas, nestes últimos meses de estudos no Andrew Jumper, eu encaixei peças que faltavam. Hoje, vejo "missões" conectada ao Aconselhamento, ao Pastorado e à União com Cristo. Claramente, consigo montar esse quadro no fim de tudo.

    Sempre trabalhei aconselhando pessoas que possuem vários papéis e funções diferentes em seus contextos na família, na igreja e no trabalho. Todos somos filhos ou pais; empregados ou patrões, liderança ou leigo. Enfim, somos todos o tempo todo chamados a nos tratar mutuamente com respeito e amor. Independente dos cargos e funções, chamados a nos relacionar com graça, perdoando-nos mutuamente. Contudo, como tem pessoas dentro da Igreja que a usam como esconderijo de suas carências e anseios de poder, machucando, pisando e manipulando "em nome de Jesus", colocando não só instituições, mas também suas biografias, acima de tudo, ainda que, para saírem ilesos e imaculados, precisem sacrificar inocentes no altar de seus egos. Ocapítulo 03 falou muito ao meu coração. "Reciprocidade" e "mutualidade", palavras tão caras e, ao mesmo tempo, tão raras!

    Saímos de Efésios e viemos para o Salmo 131 (e também o 130). Precisamos nos colocar neste salmo para entendê-lo, memorizando-o e aplicando-o em nosso coração. Sossego e paz, frutos de um coração que está no Senhor. Interessantíssimo o autor ressaltar as vozes que aparecem no Salmo 131. 

"A maior parte do barulho em nossa alma tem como causa a tentativa de controlar aquilo que não pode ser controlado. Agarramos o vento; nos enfurecemos; temos medo e, por fim, nos desesperamos" (p. 80).

     Descansa, ó alma! Porque tu foste chamada por teu Criador pelo teu próprio nome. Foste conclamada, ó alma, a esperar no Senhor. E chamada à esperança agora e eternamente! Trazer o Salmo 131 como tratamento ao nosso coração e ao coração do aconselhado é bênção sobremaneira e foi isso o que o autor fez . Eu quero memorizar o Salmo 131. Tornar suas palavras as minhas palavras e ministrá-las ao meu coração antes de aconselhar outros. Ajuda-me, Senhor!

    O salmo 10 é surpreendente. O capítulo 5 do livro de Powlison aborda esse salmo muito bem, fazendo, inclusive, um roteiro de aplicação na vida do sofredor a partir desse salmo. Como continuar a amar sem amargar? Na área de aconselhamento, muitos dos livros que li, até agora, dão sempre a ênfase na nossa responsabilidade diante do mal inevitável que tenhamos sofrido. Agora, há também uma abordagem em que, as pessoas que nos ferem, elas também precisam ser nomeadas: elas são pessoas nocivas. Elas são soberbas, voluntariosas, impiedosas e predadoras (Sl 10: 2–11). Precisamos resolver isso com graça, a graça de Deus, em nossos corações. O Senhor consertará os males cometidos! A ajuda, a verdadeira ajuda, vem do Senhor.

    Temos muitas razões por que nos preocuparmos, todavia, Jesus nos deu razões ainda mais poderosas para não sucumbirmos ao medo e à ansiedade. Nas páginas 116 e 117, o autor ainda nos passa seis recursos que devemos usar quando nos encontramos ansiosos e obcecados. Muito bom! Fim da primeira parte do livro.

    Na segunda parte do livro, o autor tratará de casos reais, temas sobre os quais ele se debruçou. Mas o capítulo 07 tem algo, logo no início, que é muito importante para mim: perguntas! Vivemos num tempo de ativismos e resultados e não paramos para refletir. Engolimos e não mastigamos e sequer damos tempo à digestão. Tudo isso é sempre muito irritante para mim. Todavia, no início do capítulo, ele já nos inunda com várias perguntas, pois elas é que nos ajudarão a ajudar o outro. Precisamos pensar nelas. Precisamos entendê-las. São perguntas "raio-X" para vermos não só o visível, mas também o invisível. É claro que aqui, mais uma vez, vou lançar meu olhar missionário e lembrar que talvez - quem saberá precisamente? - 80% d população da terra não responde às perguntas diretamente, ao contrário do que nossa escola nos ensina a fazer: sempre precisamos estar atentos às circunstâncias e às histórias, causos e mitos. Só assim, nessas respostas culturais indiretas é que conseguiremos pinçar as respostas às perguntas "raio-X". Só precisamos não nos esquecer disso.

    "Nossos desejos são pecaminosos, porque são desordenados" - foi muito importante entender isso. Podemos ter maus desejos, mas até os bons desejos são pecaminosos, quando eles dominam a nós. O que você deseja? É uma pergunta que revela quem é o seu deus. A maneira como nossos desejos nos controlam e o modo como nos lançamos a eles para satisfazê-los, revelam nossas idolatrias. Podemos mudar? SIM. Não somos seres imutáveis e nem estamos condenados à escravidão eterna e ao fatalismo. Precisamos, então, entender que Deus é o que interpreta o nosso coração da maneira perfeita; e em Cristo encontramos a verdadeira satisfação; e no Espírito Santo, o poder regenerador e santificador para nossa mudança.

    O amor de Deus não é incondicional. Ele pode ser contracondicional. Isso significa que "Deus não me aceita como eu sou - Ele me ama apesar de ser como eu sou". Deus me ama o bastante para que eu dedique a minha vida toda a me tornar cada vez mais parecido com Cristo. Esta frase é uma verdadeira rebelião contra a cultura que nos cerca e estabelece uma quebra de paradigma. Poderíamos nos aprofundar mais nessa questão do "amor" pregado aí fora, mas deixarei para falar sobre o amor numa próxima postagem.

    Graças a Deus, eu já havia entendido que o fato de uma pessoa ter tido um mau pai, isso não dificulta entender Deus como Pai, pois é o contrário o que deve ocorrer: Deus é o pai perfeito! Ninguém na terra é perfeito, nem professores, pais, amigos etc, todavia, Deus é tudo isso perfeitamente para nós. Ele é o modelo de como ser um pai e não o contrário. Deus jamais será um pai igual ao que tivemos, porque nossos pais é que deveriam aprender o que é a paternidade a partir de Deus.

    O cristianismo é a terceira via. Nem propostas moralistas e nem propostas liberalizantes. O evangelho é capaz de oferecer o autoconhecimento verdadeiro e ir na fonte real de nossos problemas. O cristianismo tem a sólida base da Palavra de Deus, enquanto as propostas humanistas da psicologia só acabam cobrindo com maquiagem o coração doente do homem.

    Esta nossa ambiguidade nos leva a ser bênção e maldição. Precisamos realmente entender o que a Bíblia nos diz para não cedermos ao que ocorre com Pedro que, num momento, diz coisas maravilhosas, para, logo em seguida, ser boca de Satanás. Precisamos ir ao coração. Ali, realmente, está o âmago do que deve ser tratado. Como conselheiros, não oferecemos propostas mais profundas que o pecado, pois é o pecado o que há de mais profundo e que deve ser confrontado: "a mudança envolve deixar os desejos idólatras e vir para Jesus que morreu por pecadores, que vive para fazer-nos amantes de Deus e do próximo, e que voltará em glória e alegria". Na verdade, a ambiguidade também nos alerta para as soluções propostas, pois até mesmo bem intencionados conselheiros bíblicos podem, vez ou outra, por alguma razão, falharem numa leitura e ajuda.

    Vivemos numa sociedade regida pelos sentimentos ou, pelo menos, pelo que ela expressa no uso da palavra "sentir". Por trás do verbo "sentir", ocultam-se experiências, emoções, crenças e desejos. Se queremos conhecer as pessoas, precisamos ouvi-las, ouvi-las em suas experiências e emoções. Como elas reagem, o que elas sentem diante do passado, presente ou futuro, tudo isso é essencial ao conselheiro. Do mesmo modo, precisamos aprender a conversar com elas. Orientá-las.

    Definitivamente, temos chamado amor ao que não é amor. Temos rotulado de amor nossos pecados, cobiças e mais vis sentimentos e desejos e nada disso é amor! O capítulo mais sério, particularmente, é o que Powlison trata sobre as 5 linguagens do amor. Quantos de nós não já usamos e incentivamos estes livros? Chocado, pois, Powlison mostra que estamos investindo no pecado, pois não estamos curando relacionamentos, mas, sim, criando "cobradores de sentimentos", esperando que o outro me satisfaça. Enfim, este é um capítulo muitíssimo sério e que me abriu os olhos para algo que jamais enxerguei antes: há pessoas que querem aprender a linguagem do outro para a manipulação e o controle.

    Quero também cultivar isto: a certeza que a fé viva opera em amor inteligente e com propósito. Não é fácil. Verdade, não é fácil viver bem a própria vida e não é fácil pensar bem também. Enquanto lia este livro, o tempo todo passavam no meu coração milhares de pessoas que, por todos estes anos, trabalhei com elas. Eu consegui encaixá-las em várias partes do livro do Powlison e pensei o quanto este livro é importantíssimo para mim e para elas. Quando terminei a leitura de "Uma nova visão", assim que fechei a última página, um amigo liga para mim e diz que um outro amigo dele, um cristão muito sincero, compartilhou que quer fazer psicologia. Ele estava ligando para mim para perguntar o que eu achava, porque ele não se sentia bem em ver seu amigo tão cristão se enveredando por uma disciplina que ele sabia ser tão humanista. Ele me perguntou se havia algum livro que ele pudesse oferecer ao amigo dele. Advinha minha resposta? "Uma nova visão", de David Powlison.

sábado, 18 de novembro de 2023

O que é o amor (XI/2023)

 

    Logo no início de seu pequenino livro de pouco mais de 100 páginas, Betty Milan já confessa como é difícil falar do amor em português. Para ela, no português do Brasil, falar de amor é algo que parece ridículo. Com autores como Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa e Camões, juro que me surpreendi com as palavras dela. Contudo, para um livro cujo o título não vem seguido de um ponto de interrogação, esperava muito mais do que estaria por vir nessa leitura.

    "A paixão do amor" é o título da primeira parte do livro. O que animou Milan a seguir adiante num projeto que era um desejo seu, mas que temia fazê-lo em português? A resposta da autora é o filho que ela gestava em seu ventre naquele momento, por causa dele resolvera seguir adiante. Estaria se cumprindo na autora a condição estabelecida por Eros à Psique, para que o amor incondicional existisse? A condição de que Psique nunca mirasse o rosto dele por debaixo do véu? De modo semelhante, por debaixo de seu ventre, estava uma criança amada sem nunca antes ter sido vista! E, para a autora, realizava-se nela também o propósito do amor em ser UM? Ela estava gestando a criança fruto de seu amor, ela era UM com seu amado. Entretanto, até nessa abordagem, permanece uma dúvida: ela é UM com seu amado, mas esse amado seria seu filho ou o pai da criança? Não consegui discernir uma vez sequer a presença de uma terceira pessoa nesse projeto de unidade da autora. Mais adiante ela até irá esclarecer que o alvo do amor é que "dois sejam UM". Assim, ela e a criança em seu ventre são a experiência desse amor em dois sendo UM? Pois, como eu disse, durante toda a leitura do livro não consegui ver uma terceira pessoa nessa história (voltarei a essa questão no final).

    Milan nos leva a ver o amor como paixão e discorre não apenas sobre suas características, mas nos leva por um maravilhoso passeio literário, desde o mito de Narciso, passando por Alidor, Teresa de Jesus, Drummond, e indo até tantos outros autores como Ovídio, Camões e Platão. Mas, como vemos, as características do amor, para Milan, são as características da paixão - a paixão do amor. O amor é algo desconhecido, pois o que as pessoas descrevem e experimentam é essa "paixão pelo amor". Em outras palavras, eu amo amar você! Quais as características dessa paixão do amor? O amor nos escolhe e não nos pede licença para entrar; o amor é mistério; é sublime e cruel; é morrer de não morrer; o amor é narcísico e, por isso, não suporta a diferença; o amor incondicional impõe condição; o amor vive da falta e da fé do outro; o amor sem a morte não existe; o amor ama amar e, por isso, ele está acima de Deus e do amado; mas, imprescindível a tudo, o amor é palavra e não existe o amor sem saber dizer. E esta última característica nos levará ao próximo texto do livro.

    "Dizeres" é o titulo do segundo texto do livro. E ela parte do ponto em que parou o texto anterior, em que ela mostra que só há o amor onde há palavra, dizeres. Na peça "Cyrano de Bergerac", de Edmond Rostand, o personagem de Cristian falha, quando se vê sozinho com Roxane, ao não conseguir repetir a eloquência de Cyrano. "Eu te amo", diz Cristian. Sim, mas isso Roxane já sabe e exige ouvir dele dizeres mais eloquentes. Se há amor, há palavras. E as palavras do amor superam quaisquer deficiências físicas é a tese de Rostand.

    Na vida de Milan, o bebê gestado durante a escrita do primeiro texto, agora já é nascido e gera uma nova reflexão sobre o "amor do amor". Uma vez desfeita a experiência da gestação, que a levou a cumprir o alvo do amor - o de dois serem UM -, a autora passa a experienciar uma outra característica desse amor narrado por ela: a perda do controle sobre o outro, quando perde-se a experiência do UM. Aqui, portanto, fica ainda mais claro que Betty Milan não estava falando em momento algum de que aquela gestação teria dado a ela a experiência da unidade com o marido, mas, de fato, os "dois" da história são ela e a criança. Porém, nem essa experiência é algo que ela possa reter, pois a criança foi dada à luz e, assim, está fora do controle da autora. O texto escrito após o nascimento de seu filho é um texto sobre o ciúme. E o que é o ciúme? O ciúme é que o amor que você sente pelo amor que você tem pelo outro exige um retorno, uma vez que o objeto responsável por esse sentimento não está mais à sua disposição, preso dentro de você, controlado por você no seu ventre! O ciúme é a exigência de que os seus dizeres ao amado tenham um retorno - será que o outro sente amor pelo amor que ele sente por mim? Haverá um amor no outro pelo amor que eu digo sentir por ele? Enfim, eu preciso que o outro expresse em palavras, porque não o tenho mais dentro de mim! O sentimento de angústia aqui é patente e o amor do qual a Betty Milan trata é, indubitavelmente, um amor platônico no melhor entendimento dessa expressão. Um amor que ama o amor que eu sinto ama uma sombra e não uma realidade - esta é uma experiência impossível aos seres humanos na terra. O amor, este ao qual a autora se refere, está no mundo das formas. E a origem da angústia dessa experiência está narrada no livro "O banquete", de Platão, em que o homem e a mulher eram originalmente UM só. Todavia, desmembrados um do outro, buscam sua completude perdida. Mas isso é angústia e não amor! E a angústia é fruto do ciúme. O ciúme nasce da dúvida sobre a quem, afinal, o amado ama: ela ou o outro? Há um outro que diga melhor o que eu digo, um outro mais eloquente? No momento em que você está fora de mim, eu não posso dominar o amor que você possa sentir pelo amor de outros e isso, enfim, gera o ódio do amor.

    Queremos a espera pelo encontro mais do que o encontro! O que queremos na frase "eu te quero" é querer o querer - eis o enigma da paixão.

    A arte de amar é hoje a de gozar, e o saber dos sexólogos nos governa. O mito do amor eterno foi substituído pelo mito do orgasmo genital perfeito  -  Betty Milan.

    "A paixão de brincar" é um texto que me deixou muito triste, muito para baixo mesmo. Um texto que fala desse fatalismo do brasileiro ser isso: o país do carnaval. Milan escreve isso como sendo nossa vocação mesmo. Ela nega (ou renega?) toda a nossa herança europeia sobre o amor. Para ela, o brasileiro quer é fazer graça com tudo isso, usar as máscaras, ser de todo mundo, enfim, um país ladino. Talvez, o que mais tenha me deixado triste neste texto é que eu havia lido um texto da Milan, um texto talvez de 2011, sobre fidelidade, mas não encontrei nada daquele texto em lugar nenhum deste livro que se propunha a falar sobre o amor. Ou ela mudou ou ela acreditava naquele primeiro momento e depois desacreditou… Sei lá! Da minha parte, o brasil macunaíma é tudo o que eu não quero.

    Tentando dar uma resposta à violência do machismo, ela cai no vazio do feminismo. Um feminismo que eu não quero para nenhuma das minhas filhas. Que texto triste… Um livro sem amor.

        Fábio Ribas

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Há um lugar de vitória para sua família, creia!

 E aconteceu no caminho, numa estalagem, que o SENHOR o encontrou, e o quis matar. Então Zípora tomou uma pedra aguda, e circuncidou o prepúcio de seu filho, e lançou-o a seus pés, e disse: Certamente me és um esposo sanguinário. E desviou-se dele. Então ela disse: Esposo sanguinário, por causa da circuncisão (Êxodo 4. 24-26; Fiel).

    O texto acima parece cair de pára-quedas e ficar meio que sem ligação com o resto que passou e a história que ainda segue. Moisés havia tido um encontro maravilhoso com Deus na sarça ardente e, depois de muita relutância, Deus o impele ao Egito para libertar os hebreus da escravidão. Nada mais estranho, nada mais contraditório do que ver Deus, repentinamente, ir ao encontro de Moisés no caminho do deserto para colocar todo o seu acordo com ele a perder, intentando matá-lo!


Mas creia que o deserto pode ser um lugar de encontro

preparado por Deus para toda a sua família!


    Foi no deserto que Deus estabeleceu uma aliança com Hagar e seu filho, socorrendo eles na sua aflição e morte certa!

    No deserto do Sinai, Deus sela a aliança com o povo liberto do Egito!

    É no deserto que Deus levanta a serpente de bronze que livrou da morte o povo de Israel.

    No deserto de Em-Gedi, Deus entrega nas mãos de Davi Saul, o seu perseguidor!

    Em Isaías 43.19, o povo escravizado pela Babilônia, é neste deserto que Deus promete colocar um caminho de libertação!

    É no deserto que a voz de João Batista deveria clamar para preparar o caminho do Senhor!

    Foi no deserto que Jesus travou batalha contra Satanás e suas tentações e saiu vitorioso!

    É no deserto que Deus prepara para a igreja um lugar de proteção contra Satanás (Ap12.6)!


Deus mesmo preparou um lugar de encontro

no deserto para nos convidar a uma Aliança eterna com a nossa família!


    Nesse deserto, Deus poderá nos chamar para uma aliança com as nossas famílias. Essa aliança contém duas exigências:


    1ª) A Aliança de Deus exige a santidade!

    Deus matará Moisés, se este não for vaso santo em suas mãos. Será que Moisés não era circuncidado? Pois, assim que nascera, havia sido mantido escondido por sua família das vistas dos egípcios e depois foi criado na corte do faraó. E seu filho Géferson, já haveria sido circuncidado? Neste momento específico, na noite daquela estalagem, o que aquela pequena família sabia acerca do ensino bíblico, que , desde Gn 3:21, nos ensina que sem derramamento de sangue não podemos nos aproximar de Deus?

    Creio que Moisés tardava em fazer a circuncisão, Moisés era negligente em marcar seu filho com o sinal visível da aliança. E Deus mostra que a sua Santidade não permitirá que mesmo Moisés sobreviva sem o sinal da separação. Ser santo é ser separado para Deus. O Deus de Moisés quer separá-los para que eles sejam obedientes em todas as coisas.

    Perceba a cena: estamos falando de um povo de escravos, distanciados de seu pacto com Deus, que fora firmado com Abraão, há mais de 400 anos; escravos acostumados à pluralidade dos vários deuses egípcios e suas frouxidões morais, agora, porém, esses mesmos escravos confrontam-se com um Deus moral. Um Deus moral que estava chamando para o pacto aquele povo de escravos que viviam no meio da imoralidade pagã. Um Deus santo e puro, um Deus moral que não pouparia o próprio servo escolhido se esse não obedecesse aos estatutos da sua lei.

    Leia Gen. 17. 1. “Anda na minha presença e seja perfeito”, diz Deus a Abraão na instauração da circuncisão. Leia, ainda, Gen 17. 10. "Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti: Que todo o homem entre vós será circuncidado". Há um selo da aliança com Deus.

    É importantíssimo lembrar que, durante o fato histórico dessa noite no deserto, noite dramática para a família de Moisés, sequer o livro de Gênesis havia sido escrito e que Moisés está há mais de 4 séculos distante da aliança revelada ao patriarca Abraão! Há quase 400 anos o povo de Abraão está escravizado. O que é essa aliança para o povo, senão uma distante história da tradição oral de seus antepassados? Mas Deus intervirá nessa situação e mostrará quem é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó! É preciso que o povo saiba quem é esse Deus, mas, antes, é preciso que o próprio Moisés e sua família tenham um encontro com o Deus vivo.

    Leia Gen 17.14. "E o homem incircunciso, cuja carne do prepúcio não estiver circuncidada, aquela alma será extirpada do seu povo; quebrou a minha aliança". Sim, Deus matará o seu eleito se esse não cumprir com a sua responsabilidade espiritual dentro da sua casa! Compare com os versos 21-23. "A minha aliança, porém, estabelecerei com Isaque, o qual Sara dará à luz neste tempo determinado, no ano seguinte. Ao acabar de falar com Abraão, subiu Deus de diante dele. Então tomou Abraão a seu filho Ismael, e a todos os nascidos na sua casa, e a todos os comprados por seu dinheiro, todo o homem entre os da casa de Abraão; e circuncidou a carne do seu prepúcio, naquele mesmo dia, como Deus falara com ele".

    Moisés é um incircunciso e também seu filho. A circuncisão é o selo visível da santidade do povo de Deus; o selo que sinalizava a separação daquele povo para o serviço do Deus de Abraão, Isaac e Jacó!

    Qual é a responsabilidade espiritual que você não tem cumprido dentro da sua casa, com a sua família? Como Moisés, será que nós estamos tratando a Palavra de Deus como histórias distantes, muito longe das nossas realidades? Será que nós acreditamos na Palavra de Deus e a pregamos aos nossos filhos e às nossas esposas? Temos vivido diariamente em santidade como manda a Palavra de Deus dentro de nossas casas? Temos desejado de coração andar na presença de Deus e alcançar a perfeição? E o mais importante, há em nossa casa, a marca dessa circuncisão, este derramamento de sangue que nos permitirá nos aproximarmos de Deus?

    Mas, essa aliança tem uma segunda exigência:


    2ª) A Aliança de Deus exige uma fé que obra!

    “Noivo de sangue ou noivo sanguinário”. Estranho texto, no qual, no hebraico, o nome de Moisés não aparece, sendo designado apenas por referência. Os únicos nomes próprios são de Deus e de “Tsiporá”. Estes, assim, saltam como personagens principais dessa passagem, na qual Deus intenta matar Moisés.

    E, como vimos, em Gn 17. 14, o incircunciso seria eliminado do povo. Não se pode ser negligente com os mandamentos do Senhor e, provavelmente por negligência, Moisés, que já não era circunciso, também não circuncidara seu filho.

    O que vemos na cena de Ex. 4 é a circuncisão do filho de Moisés, mas, também, a circuncisão figurada do próprio Moisés, quando “Tsiporá” encosta nos genitais do seu marido o sangue da circuncisão do seu filho. Sim, no texto hebraico, o termo usado designa os órgãos genitais de Moisés (רגל, regel, reh'-gel), mas na tradução, preferiu-se o eufemismo de “pés”, assim como provavelmente teria ocorrido em outras narrativas bíblicas como na história de Rute e Boaz na eira ou, ainda, na visão de Isaías dos Querubins.

    Zípora, uma pagã, filha de um sacerdote pagão, finalmente vê-se num encontro face a face com Deus, o Deus verdadeiro, o Deus do seu esposo. Veja que situação dramática: Moisés sendo flagelado por Deus por causa de sua negligência, por causa de sua fé vacilante, por frouxidão moral, e sua esposa, uma desconhecedora desse Deus, diante da crise de perder o marido, converte-se e, numa atitude de fé, faz o que Moisés até então procrastinara: circuncidar o próprio filho! Zípora, ao lado de Jó, passou a conhecer Deus, não por ouvir falar, mas porque este a visitou naquela terrível noite na hospedaria do deserto.

    Deus usa a fé vacilante de Moisés para mostrar à jovem Zípora a realidade e singularidade do Deus de Abraão, Isaac e Jacó.

    Ao iniciarem viagem deserto adentro, havia um homem de fé titubeante, uma mulher pagã e um filho incircunciso. Todavia, o que chegou ao Egito, saído do deserto, foi uma família completamente separada para o que viria a ser uma das maiores histórias de todos os tempos!

    Deus é Santo. Logo antes de estabelecer o selo da aliança com Abraão, Deus exige que seu servo seja nada menos e nada mais que perfeito (Gn 17.1).

    Aquele povo de escravos e “Tsiporá” estavam acostumados à promiscuidade dos deuses pagãos, estavam com suas mentes moldadas por aquelas culturas diabólicas, contudo, nós também nos encontrávamos outrora escravizados neste mundo pagão. E fomos libertados. Mas Deus ainda exige de nós, como o fez com Abraão e Moisés, que andemos com Ele e tenhamos nova postura de vida e que esta vida seja marcada por um sinal externo, a nossa circuncisão batismal. A circuncisão do coração que se renova a cada dia! Deus não nos poupará se não tivermos fé e se não formos santos, se não crermos e se não estivermos, verdadeiramente, separados para Ele. Mas seria essa separação possível de nós mesmos fazermos? Sinceramente, eu creio que as duas exigências para podermos participar (fé e santidade) da Aliança de Deus são IMPOSSÍVEIS de eu mesmo gerá-las na minha vida.


Mas a boa-nova é que

tanto a fé como a santidade são obras exclusivas do Espírito Santo,

assim, o que é impossível aos homens é possível para Deus. Aleluias!!!


    O caminho para participarmos da aliança de Deus tem que passar pela fé (Zípora) e pela santidade (Moisés). E esta experiência de conversão só será possível pelo derramamento de sangue – não mais o derramar do sangue do prepúcio – o derramar do sangue do cordeiro na cruz do calvário.

    Deus quer levar você e sua família para Sua aliança, mas o deserto pode ser o lugar preparado para esse encontro. O deserto é doloroso, é árido, repleto de desafios… Mas o deserto pode ser um lugar de vitória para a sua família!

        Fábio Ribas

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Diálogo ou dueto? (O casamento à luz de Cantares)

 


(Ela)  -  Enquanto o rei está assentado à sua mesa, o meu nardo exala o seu perfume. O meu amado é para mim como um ramalhete de mirra, posto entre os meus seios. Como um ramalhete de hena nas vinhas de Engedi é para mim o meu amado.

(Ele)  -  Eis que és formosa, ó meu amor, eis que és formosa; os teus olhos são como os das pombas.

(Ela)  -  Eis que és formoso, ó amado meu, e também amável; o nosso leito é verde.

(Ele)  -  As traves da nossa casa são de cedro, as nossas varandas de cipreste.

(Ela)  -  Eu sou a rosa de Sarom, o lírio dos vales.

(Ele)  -  Qual o lírio entre os espinhos, tal é meu amor entre as filhas.

(Ela) - Qual a macieira entre as árvores do bosque, tal é o meu amado entre os filhos; desejo muito a sua sombra, e debaixo dela me assento; e o seu fruto é doce ao meu paladar. Levou-me à casa do banquete, e o seu estandarte sobre mim era o amor. Sustentai-me com passas, confortai-me com maçãs, porque desfaleço de amor. A sua mão esquerda esteja debaixo da minha cabeça, e a sua mão direita me abrace.

(1:12- 2:6; Fiel)

    O amor é mais do que simples diálogos. E compreender isso é o ponto central do livro de Cantares: o livro é um canto, uma ardente música, uma obra a dois  -  os cantos, os elogios, as juras de amor, a cumplicidade entre o noivo e a noiva de Cantares conseguem exceder o diálogo e transcendê-lo até sua forma mais apropriada ao amor: o dueto!

    O diálogo já nasce comprometido por causa da sua própria natureza desafiante. O diálogo foi o instrumento dos filósofos, dos grandes retóricos, dos sofistas, que souberam muito bem usá-lo com o fim de convencer seus oponentes. Diálogos correm o sério risco de ser mal interpretados, mal compreendidos. Não deve ser essa a postura que enlaça os cônjuges.

    O dueto  -  ao contrário do que possa ocorrer com o diálogo  -  é uma composição para que dois a possam executar. Talvez o dueto seja o diálogo despido de suas possibilidades de imposição, manipulação e mascaração diante do outro! Enquanto o diálogo possa se transmutar em sermão, em monólogo, em confrontação, sem o empenho positivo e favorável de uma das partes jamais haverá o dueto.

    Dueto é cooperação. Uma partitura composta pelo Maestro ou uma coreografia elaborada pelo Artista para que seja cantada ou dançada a dois. Para que tudo dê certo, é necessário que haja o acordo: que alguém se deixe levar, enquanto o outro o guia segurando-lhe pela cintura. É imprescindível que haja ensaio: a partitura ou a coreografia já estão totalmente prontas, mas os dois  -  o marido e a esposa  -  são bailarinos que precisam se conhecer, são intérpretes dessa mesma vida e, por isso, há de se saber de suas possibilidades e limitações individuais, conhecer, afinal, o que os trouxe até ali. Precisam, também, fazer o dever de casa: estudar juntos todos os detalhes dessa partitura ou coreografia, conhecer verdadeiramente seu Autor. Tristes são os que exigem que o amor venha como um espetáculo consumado… O amor é a arte do ensaio!

    No casamento, portanto, é preciso acertar o passo, esperar pelo outro, estar atento à deixa, improvisar quando o cônjuge esquecer a própria fala. É preciso aprender a parar, recomeçar, transpirar, chorar, sangrar como sangram os pés dos melhores bailarinos! Casamento  -  vejam!  -  também é disciplina. O dueto é duas pessoas envolvidas e empenhadas, esforçando-se e entregando o melhor de si pela glória do resultado final!

    Enfim, o matrimônio é a obra genial do Artífice e, por isso mesmo, precisamos dar o melhor de nós mesmos para que esse espetáculo seja digno do Seu criador! O dueto pode ser um encontro inusitado de dois instrumentos numa interpretação maravilhosa e criativa. Como ilustração de tudo o que foi escrito aqui, deixo a belíssima obra "nightclub 1960" interpretada pelo dueto inusitado e festivo entre uma flauta de pã e um violão, que cooperam para nos revelar toda a beleza dessa peça do mestre Astor Piazolla. 

    O convite de Cantares é que nossos casamentos expressem toda a beleza do Deus que nos uniu  -  um dueto entre um homem e uma mulher para celebrar a Glória dAquele que compôs a obra da nossa aliança.



sábado, 11 de novembro de 2023

A família que devorou seus homens (X/2023)

 



"Minha mãe tem medo de perder a memória, e eu tenho medo da loucura".

    Eu preciso de memórias! São elas que me dão identidade. As memórias não apenas me dão uma identidade pessoal, mas também elas me unem com quem tem as mesmas memórias que eu tenho. Uma família tem memórias comuns. Quando os indígenas se reúnem em suas casas, eles ouvem os mais velhos contarem as histórias dos antigos. Memórias de tempos imemoriais. Porém, é isso o que nos une a todos: histórias que nós mesmos vivemos; histórias que vivemos com outros; histórias de outros que viveram com pessoas que nunca vimos; enfim, uma memória social e coletiva que passa a ser nossa história também.

    Mas as memórias podem também ser um fardo. Lembro-me que, certa vez, assisti a um programa médico sobre doenças do cérebro e havia dois casos opostos: um paciente, assim que acordava, nada se lembrava do seu dia anterior, da sua identidade, de sua vida; já o outro não conseguia esquecer nada. Este, então, depois de tudo, enlouquece, porque suas memórias são um fardo ininterrupto que lhe entulha a mente sem tréguas. O esquecimento - assim como o medo  -  são benéficos quando em certa medida (ou seja, na medida certa). O medo nos protege. Quando ultrapassa o limite, o medo se torna uma fobia que nos escraviza. O esquecimento também nos protege. Há dores, mágoas, lembranças que, caso não sejam jamais superadas, tratadas e curadas, ficariam ali nos martelando ininterruptamente: memórias que nos aterrorizariam e nos paralisariam eternamente. Sim, as memórias  -  assim como o medo, a culpa e a vergonha  -  podem nos aniquilar aos poucos até nos levar à morte  -  seja esta espiritual, psíquica, emocional ou, até mesmo, física. Esquecemos, pois há dores que não conseguimos tratar. Todavia, o esquecimento parece ser uma tênue camada de polimento que, diante do calor de algum evento inesperado, pode trazer do fundo de cada um de nós uma sacola de memórias esquecidas, cuja força incontrolável mais se parece com um vulcão em erupção. As memórias, tê-las escondidas num mar de esquecimento pode ser inesperadamente fatal. Já assistiu à minissérie "amor e traição"? Assista e você entenderá melhor o que estou falando. Este texto não é sobre essa maravilhosa série, mas deixo aqui a dica. Uma série sobre memória, esquecimento e os lapsos de nossas incongruências.


    Hoje, meu texto é sobre o encantador livro "A família que devorou seus homens". Dima Wannus presenteia o leitor brasileiro com sua narrativa de memórias. Mãe e filha reunidas nas fugas, nas saídas, nas retiradas, nas trajetórias para longe da revolução na Síria, que se apresenta como uma verdadeira loucura de interesses envolvendo pelo menos três grupos que disputam o poder, além das intervenções americanas e russas. Difícil discernir os mocinhos dos bandidos nessa tragédia que originou uma imensa diáspora e uma terrível crise humanitária. Os estudiosos desse mapa geopolítico chamam a atenção para quem seriam, então, os refugiados sírios. Como o pobre não tem como fugir do país, não tem como financiar uma fuga até um lugar seguro e, muito menos, manter-se em uma nova terra e se reestabelecer e começar tudo de novo, a maior parte dos refugiados sírios são, portanto, classe média e classe média alta. A autora de "A família que devorou seus homens" mora hoje na Inglaterra. Conheci um sírio em São Paulo, motorista de Uber, e seus familiares todos se espalharam pela Europa, enquanto somente sua mãe permaneceu na Síria. É um dado muito diferente do que estamos acostumados a pensar sobre os refugiados.

    Assisti a uma entrevista online de uma jornalista brasileira com a Dima Wannus e, durante as perguntas, e entristeceu-me profundamente, na verdade eu fiquei foi com vergonha alheia da jornalista, que, além de fazer uma leitura tão ideologizada do livro, faz o pior comentário possível com a Dima Wannus. A jornalista diz à autora que o fato de o livro ser o retrato de uma família de mulheres sem a presença dos homens, que ela, a jornalista, via nisso a semelhança com muitas famílias brasileiras, cujas mulheres levavam suas famílias sozinhas. Uma percepção infeliz, que resultou num comentário necessário da autora que não via que a situação seria a mesma, pois a falta dos homens no livro dela era resultado da guerra civil e não de abandono do lar ou de suas responsabilidades. Muito triste a situação de quem insiste em encaixar o mundo na sua teoria ideológica. A autora, que estava bem cansada durante a entrevista por causa da diferença do fuso horário entre o Brasil e a Inglaterra, chega mesmo, nesse ponto, a pedir que pulassem para outra pergunta.

    Se eu gostei do livro de Dima Wannus? Amei! Um livro de mulheres. Um livro que mostra uma família de pessoas com religiões diferentes. Um livro de memórias, mas não são apenas nossas memórias que nos unem como família, nossas casas também. Veja como construímos nossas identidades coletivas e familiares: são nossas memórias, nossas casas, a terra e os perfumes também: todos estes elementos estão presentes no livro. As casas que nos abrigam e nos reúnem. Volta e meia, penso nas casas da minha infância, as casas em que nossa família se reunia: a casa da praia, a casa de Niterói, a casa do Rio (na Tijuca e em Grajaú), a casa de tia Cecília, em São Paulo. Casas também nos reúnem, as casas por que passamos e vivemos tantas experiências, tantas vivências juntos. Minha família era espalhada. Nós em Brasília, outros em São Paulo, outros no Rio de Janeiro, havia ainda quem estivesse no Espírito Santo e no Acre. E o que nos unia? Casamentos e velórios (muito mais do que aniversários). Houve um tempo, em que começou a haver mais velórios que casamentos. Eram encontros recheados de muitas e muitas lembranças.

    Há capítulos maravilhosos, reflexões maravilhosas sobre as memórias no livro de Dima Wannus. Contudo, um dia, tudo se desfaz. Num gesto, numa atitude, numa decisão rápida e tudo o que registramos em nossa câmera também se perde, virando apenas memória. As memórias são grãos de areia se perdendo entre nossos dedos na passagem do nosso tempo. Todavia, se a câmera se vai com todas as nossas imagens, fica-nos o registro da palavra escrita. Estaria a autora dizendo que, nesta era da imagem, o que realmente prevalecerá é a palavra sobre a imagem?

    A vida em trânsito devora homens e mulheres. No fim de tudo, num olhar mais amplo, a chamada primavera árabe se tornou, para muitos países do Oriente Médio, um longo e tenebroso inverno. Eu queria não esquecer disso, apesar de correr o risco da loucura.

Fábio Ribas

sábado, 4 de novembro de 2023

Palavra por palavra (IX/2023)

 

    Este livro não estava sequer na lista de desejados para 2023. Um livro que só fiquei sabendo da existência, porque fora citado em outro livro (este, sim, o livro do Powlison, um livro que estava na lista dos que TINHA que ler). Agora, feliz e infelizmente (rsrsrs), o livro de Anne Lamott está posto: por que fui atrás de satisfazer essa curiosidade adâmica em querer experimentar o que me fora apenas sugerido? Aliás, acredito que Powlison estava falando mal da Anne Lamott. Ou melhor, Powlison a usou para dizer que ela era "menos ruim" do que o Gary Chapman, das "5 linguagens do amor". Como eu já havia lido o livro do Chapman, fui fisgado a ler essa tal de Anne Lamott. Parece, dentre algumas informações que acabaram vindo à tona na minha pesquisa, que ela é também uma espécie de "líder espiritual" para alguns, uma espécie de "paulo coelho gospel" e também pareceu ter uma teologia bem flácida ao gosto dos tempos atuais que temos vivido. Foi assim que cheguei a este livro dela sem a menor pretensão sobre o que, de fato, encontraria. E qual não foi a surpresa? Havia lido apenas três páginas e elas já foram o suficiente para que eu me pegasse pensando: "Ferrou! Agora, fui fisgado! Como que alguém escreve assim?".

    Minha vida parece dividida entre livros que quero ler e livros que tenho que ler. Contudo, vez em quando, sou surpreendido por livros como o da Anne, que compõem uma terceira e toda maravilhosa lista: a dos livros que insistem em ler a mim, enquanto os leio! E aqui a autora também confidencia ter tido semelhante experiência a essa que acabei de narrar. Ela diz que a leitura do "Apanhador no campo de centeio" fez também isso com ela, de ver num livro os sentimentos que estão no nosso coração, mas que não sabemos bem como expressar. Várias reflexões que ela faz sobre a escrita e a leitura também as faço. Portanto, entendo bem quando ela diz que "escrever nos motiva a olhar a vida mais de perto". O escritor é alguém que, antes de tudo, tem que ter sua atenção aguçada ao que está a sua volta. E eu sou tão concentrado naquilo que estou lendo, que me vejo totalmente desconcentrado ao que está no meu universo periférico. Mas isso não acontece só enquanto estou lendo. O mundo pode estar despencando sobre a minha cabeça, mas eu continuo atento ao que você está me dizendo ou à paisagem que estou admirando. A gente foca nos detalhes. Por isso, como diz Lamott, a gente vira escritor, pois a alternativa seria nos tornarmos criminosos!

    Não há como negar que a literatura é uma busca (e a escrita também) de vermos o mundo de um modo criativo, espiritual e estético. "Passei a acreditar que, com um lápis na mão, talvez pudesse fazer algo mágico acontecer", confessa a autora, que se empenhou mesmo nisto de ser uma escritora profissional, a ponto de largar os estudos e se dedicar à tarefa! O pai de Lamott era um escritor também e a descoberta do mundo da leitura e da escrita se dá com ele. E a partir do enfrentamento do câncer, ela começa a escrever como foi a doença na vida do pai para sua família.

    Você quer escrever? Então, pare agora o que vc está fazendo e leia este livro! Comece dando pequenos passos, realizando pequenas tarefas, nada de escalar o Everest. Faça esboços ruins, mas faça! E jogue fora o perfeccionismo. Ele é um limitador da sua criatividade. E não duvide: fumaça e bagunça são fundamentais. Uma das razões que mais gostei desse livro é que ele é uma "oficina de escrita". A autora compartilha conosco o que ela compartilha com seus alunos em sala de aula sobre escrever.

    Um livro leve, cheio de citações, que me deu grandes ideias e me desafiou a pensar a escrever algo maior, talvez um romance. Anne Lamott escreve deliciosamente. Cheia de bom humor! Destaco a parte sobre termos pessoas junto a nós, andarmos juntamente com amigos escritores, para lermos os textos uns dos outros e nos ajudar quando os nós do desânimo, da falta de criatividade e do bloqueio mental chegarem. Também achei muito boa e engraçada toda a explicação que ela dá sobre difamação e como podemos evitá-la. Pois, afinal, escrevemos para contar a verdade, mas como fazer isso sem sermos condenados por difamação? Pois bem, ela dará ótimas dicas sobre como proceder (uma das dicas é inusitada e engraçadíssima).

    Escrevo para contar a minha versão da história. Aprendi isso com minha mãe. E sobre isso, certa vez escrevi:

    Aprendi com minha mãe, a Filósofa urbana, que a vida de cada um de nós é feita de verdades privadas e versões públicas. E aquele que não traz do privado ao público a sua própria verdade estará condenado a ver seus inimigos contarem sobre você as narrativas deles! Toda omissão é uma concessão à versão alheia. A verdade só virá a público se falarmos o que pensamos e o que vemos. O nome disso? Liberdade de expressão!

    É impressionante como a versão que prevalece é a de quem tem poder e amigos poderosos, infelizmente. Contudo, escrever e contar a sua versão talvez dê esperança a quem também já sofreu, foi traído e se viu numa situação de injustiça. O mundo é mau e os seres humanos somos pecadores! Sempre há o amigo íntimo que levanta o calcanhar contra a gente, ainda que tenhamos alimentado esse "amigo" na mesa da nossa casa e com o pão de nossa intimidade, como nos diz o salmista.

    É inevitável que haja tribulações no percurso, mas, quando escrevo, estou dizendo ao outro que ele não está sozinho e que é possível superar e perdoar, assim como é necessário aprendermos a nos proteger de vampiros emocionais e psicopatas (sim, eles existem e já os encontrei no meu caminho mais do que poderia imaginar!). Com o tempo, a gente vai descobrindo que há muitas pessoas aí fora que foram magoadas e se tornaram vingativas e que não querem se sentir magoadas sozinhas. Elas insistem em puxar outros para dentro de seus buracos-negros de solidão e miséria espiritual. E elas conseguem, porque muitas usam do poder que outros  -  ou nós mesmos   - deram a elas. Acredito que há muito de inveja por aí mundo afora, por isso é que certa vez eu brinquei (seriamente) dizendo: "Sim! É claro que eu perdoo. Não quero carregar mágoas e nem deixar que criem em meu coração raiz de amargura. Contudo, embora eu perdoe, eu não esqueço, pois todo escritor precisa de matéria prima para compor os vilões de suas histórias"! Deixo abaixo as palavras acertadas de Anne Lamott:

    Acho que este é nosso objetivo como escritores: ajudar os outros a ter essa sensação de deslumbramento, uma nova visão das coisas que podem nos pegar de surpresa, que invadem nosso mundo pequeno e isolado. Quando isso acontece, tudo parece mais espaçoso. Tente passear com uma criança que fica dizendo: "Uau! Olha aquele cachorro sujo! Olha aquela casa incendiada! Olha aquele céu vermelho!" A criança aponta e você olha, enxerga e começa a dizer: "Uau! Olha aquele jardim grande e maluco! Olha aquele bebezinho tão pequenininho! Olha aquela nuvem escura e assustadora!" Acho que é assim que deveríamos viver no mundo - presentes e perplexos.

    Minha oração de todo dia: "Deus, que eu nunca perca esse deslumbramento que o Senhor me deu"!

Fábio Ribas

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O tempo é a imagem de algo


Aión, um dos deuses do tempo


    “Quando fores me visitar, eu já terei viajado”. Estou me dirigindo num discurso no tempo presente a alguém, que, eu sei, no futuro, irá visitar-me. Contudo, ao visitar-me naquele futuro, este tempo será lá, assim, um tempo presente e guardará também em si um tempo passado, que será o fato da minha ausência agora anunciada, do nosso desencontro num momento ainda por vir: um passado que, assim como o futuro, ainda não ocorreu e quem sabe se ocorrerá ou não?

  Outras nuances entre o tempo e a linguagem, entre o tempo e a língua portuguesa, especificamente, são as riquezas, que a educação moderna sonega aos nossos alunos, dos pretéritos mais que perfeitos, do futuro do pretérito e do pretérito do subjuntivo. Um pretérito mais que perfeito que nos revela que todo passado pode ocultar um tempo ainda mais anterior (ou interior). Um futuro do passado que pode expressar essa frustração humana diante de um tempo que jamais se realizará. E, enfim, um tempo em que o passado é um desejo que aponta para um futuro incerto, o pretérito do subjuntivo. Tudo isso reflete o texto de Gênesis 1: 28, que é o mandato divino para que dominássemos sobre toda a natureza. E o tempo faz parte da natureza criada. O homem luta contra o tempo para dominá-lo por meio da linguagem também. Assim como Deus ordenou a organização do caos pelo poder da sua Palavra, a criatura humana reflete esse mesmo modelo. O tempo deve ser dominado pela palavra humana. É possível?

    Poderíamos criar uma geração de filósofos e teólogos se existissem mais professores verdadeiramente preparados na arte da Filosofia da Gramática. Outros casos que me ocorrem é o do famigerado gerundismo que parece tentar esticar ad infinitum o tempo presente, para que o futuro nunca chegue na maioria dos departamentos públicos. O que demonstra que professores bem treinados poderiam usar do ensino da gramática para explorar as doenças mais profundas da falta de caráter da depravada alma brasileira expressada pela nossa língua, propondo um tratamento pelo uso saudável da correta locução verbal em tempo não esquivo. 

    E se quisermos ampliar esse rol de divertimentos linguísticos veremos que tempo e espaço acabam sendo moldados pela cosmovisão e a língua revela/domina essa realidade para nós. É o que ocorre com as palavras machar e temol, que, em hebraico, respectivamente, significam “futuro” e “passado”. O lúdico linguístico, porém, está no fato de que machar significa também “atrás” e temol, por sua vez, significa “à frente”. Portanto, o futuro está “atrás” e o passado “à frente”, porque o passado está claro diante dos nossos olhos, mas o futuro oculta-se em algum lugar ou, de alguma maneira, está atrás de algo que nos impede de discerni-lo. Ainda na língua hebraica, quem não se lembra da repetição do sábado e do ano do jubileu? O tempo é cíclico. O tempo está sempre retornando (diferente da nossa cosmovisão de tempo linear). É o shanah hebraico. Mas é uma repetição singular, única, jamais igual ao que já houvera, um “eterno retorno do irrepetível”. Quem sabe não seria por uma característica como essa que Mircea Eliade afirmou existirem línguas em que o tempo futuro não existe? 

    De qualquer maneira, o tempo e a sua relação com a linguagem não poderia escapar dos estudos da nossa Bibliotheca, uma vez que, para Platão (em o Timeu), o tempo é a imagem móvel da eternidade. Na definição platônica, estas três palavras precisam de uma atenção especial: “tempo”, “imagem” e “eternidade”. Pois, como vimos no meu texto “O mundo é a imagem de algo”, aqui também Platão nos surpreende com o tempo sendo uma imagem de algo, a saber, da eternidade. Todavia, nada pode ser tão rapidamente apresentado, pois os conceitos originais estão em grego e as palavras nos revelarão segredos: O tempo (cronos) é a imagem (mimesis) da eternidade (aión). É preciso tempo para fazer como Krónos, devorando nossos filhos, que são nossas palavras, até que elas façam parte de nós e, depois de serem vomitadas, possam herdar a vida eterna. 

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)

Carlos Nejar é um poeta recém-descoberto. Todavia, ele publica vasta e variada literatura desde 1960. O currículo a seguir, retirado de uma ...