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terça-feira, 23 de abril de 2024

Articulando em segurança (XIII/2024)


“…quando as instituições falham e as transgressões se instauram, o restabelecimento do respeito não se alcança diretamente, é preciso passar pelo estágio do temor. É necessário que quem infringe uma norma tenha em si incutido o receio das consequências em seus atos.
Não se trata, obviamente, de substituir a ação punitiva estatal pela reação. Legítima defesa não se confunde com justiçamento e não tem o objetivo de punir o agressor, mas de preservar a vítima. Ao viabilizá-la, o fundamental é criar o receio, ainda que em tese, de que o ataque seja resistido. Um equilíbrio pelo temor, diante do respeito perdido” (p. 181–182).

3º livro sobre a temática do desarmamento. O primeiro foi o “Armas de fogo” e o segundo, “Hitler e o desarmamento”. Os dois livros renderam, cada qual, o seu filme. O primeiro levou-me a assistir ao documentário “Desarmados” e o segundo, ao filme “Sophie Scholl”. Agora, Fabricio Rebelo, jurista, pesquisador em segurança pública e jornalista, apresenta um livro com muitos ensaios, nos quais vai contra-argumentando as falácias apresentadas na imprensa nacional sobre uma cobertura incorreta e maliciosa dos eventos que ela apresenta ao público.

Logo no primeiro artigo, ficamos sabendo da ideia ensandecida da ONU de criar um exército internacional dela, uma vez que ela pretendia desarmar todos os países. Gente! Parece coisa de fim de mundo, mas são ensaios sobre o que foi parar na imprensa nacional e mundial. Uma hora, essas ideias ensandecidas colam.

As ideologias que transformam as vítimas em culpadas, enquanto se comemora o afastamento dos bandidos das cadeias favorece a quem? Os direitos humanos não tratam as vítimas como humanas! Esta e tantas outras questões deste Brasil absurdo são discutidas neste livro, que revela um país de contradições e incoerências, como, por exemplo, o fato do Brasil ter rejeitado no referendo o desarmamento civil, mas a ideologia venceu e não se fez valer o desejo nacional. O país mais armado das Américas, os Estados Unidos, é o país com menor taxa de homicídios, enquanto o Brasil, com forte política desarmamentista, é o que possui mais de 50 mil homicídios ao ano e com taxa de solução de apenas 8% desses homicídios até a época da publicação dos ensaios do livro de Fabricio Rebelo. Países Europeus e os Estados Unidos têm índice de solução de seus homicídios na casa dos 70–80%, nosso índice de crimes não resolvidos é de 92%. Gente, isso é um caos! Destaque para o “ladrão da enxada”, que nos revela o quão nossa sociedade é medrosa.

A inversão dos valores e das soluções não acontecem somente aqui. Lá fora, o desastre de se responsabilizar a vítima também causa danos irreparáveis aos cidadãos de bem. Uma polícia casa vez mais despreparada tem sido um dos frutos amargos que temos colhido mundo afora.

O autor vai tratando de fatos nos momentos em que eles ocorrem, no Brasil e no mundo. São muitos contrapontos e a certeza que fica é que o Governo tem sua própria agenda ideológica, a despeito da vontade popular e, nisso tudo, a imprensa presta um imenso desserviço ao cidadão. Fabricio segue destruindo mitos e falácias, como, por exemplo, o mito que não devemos reagir ao assalto, pois é isso o que levaria o assaltante a matar (veja, a culpa é sempre da vítima). Os dados que mostram que a queda na venda de armas é proporcional ao aumento da violência também é tratado.

Duas indagações foram suscitadas pela leitura: 1ª) como é possível que, diante de números e fatos, não prevaleça o bom senso e o óbvio? 2ª) como está, atualmente, o mapa da violência? Este é citado diversas vezes e será muito interessante que continuássemos a acompanhar estes dados que trazem sempre uma triste e absurda realidade enfrentada pelo Brasil. Não são apenas os grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, que são dominados pelo crime organizado, enquanto o cidadão comum se vê cada vez mais refém desse terrorismo diário, mas o interior do Brasil com seus “novos cangaceiros”, as regiões de fronteira e o tráfico de drogas, além da bandidagem de grupos como o PCC e do Comando Vermelho, que seguem aliciando crianças para seu trabalho Brasil afora, compõem o retrato de um país cujas leis aprisionam o cidadão de bem e compensam o bandido.

Um dos tópicos trazidos é o da impunidade. O Brasil peca profundamente nesse quesito e isso dá aquela coragem necessária ao banditismo (e essa ousadia gerada pela impunidade anima aos bandidos em todas as esferas da nossa sociedade). Além disso, os dados mostram o fracasso do Estatuto do Desarmamento, que, desde sua implementação em 2004, só assiste ao crescimento do número de homicídios. Em outras palavras, estamos numa situação pior do que estávamos antes do Estatuto, então, por que não revogá-lo?

Em um dos ensaios, agora à parte de tudo o que tratei até aqui, o autor discute sobre a chacina ocorrida em Aurora, num cinema, nos Estados Unidos. Na hora, lembrei-me de uma reportagem publicada na época desses crimes e que deixarei aqui. A reportagem (site Terra, o link para a reportagem está no título abaixo) fala de jovens namorados que morreram protegendo com seus corpos suas namoradas durante o tiroteio.

            Fábio Ribas


Jovens deram a vida para salvar namoradas no massacre de Aurora

“Em meio à tragédia no massacre que tirou a vida de 12 pessoas no Colorado, emergem histórias de heroísmo. Três mulheres que assistiam à estreia de Batman — O Cavaleiro das Trevas Ressurge em um cinema em Aurora, no Estado americano do Colorado, tiveram suas vidas salvas graças à proteção de seus namorados — que morreram no local.

“Jansen Young, Samantha Yowler e Amanda Lindgren sobreviveram ao ataque da última sexta-feira porque seus namorados deram a vida para salvá-las. Quando perceberam os tiros disparados por James Holmes, que entrou pela porta traseira do cinema Century 16 com dois revólveres, uma espingarda e um fuzil, os três homens reagiram instintivamente jogando os corpos sobre elas de encontro ao chão, para protegê-las.

“Ele é um herói, e nunca será esquecido”, disse, às lágrimas, a namorada de Jon Blunk. “Ele levou um tiro por mim.” Blunk, um ex-militar de 26 anos, teve interrompido o sonho de um dia integrar os Navy Seals — principal força de operações especiais da Marinha dos Estados Unidos. Jansen Young, 21 anos, foi levada pelo namorado à estreia de Batman para comemorar sua formatura em Veterinária.

“A história do casal Matt McQuinn e Samantha Yowler teve um fim parecido. A primeira reação que Matt, 27 anos, teve quando o tiroteio foi deflagrado foi mergulhar sobre a sua namorada para protegê-la. Ela levou um tiro no joelho e passa bem; ele morreu no local.

“Perdemos uma grande pessoa e ainda não conseguimos acreditar que ele se foi”, afirmou um ex-colega de Matt, que trabalhava em uma loja da Target, onde ele conheceu Samantha.

“O ato de coragem foi repetido por Alex Teves, que morreu salvando a vida da namorada, Amanda Lindgren. Após a confirmação de sua morte, uma amiga identificada como Caitlin postou no Twitter: “Um dos melhores homens que eu conheci na minha vida. O mundo já não é um lugar tão bom sem ele”.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

O sagrado nosso de cada dia (ou "O símbolo negligenciado) - última parte


 

Quero aqui ampliar os conceitos de “sincretismo” e “esquerdismo”. 
Assim como “sincretismo” pode ser um termo usado para expressar tanto a promiscuidade entre ideias religiosas como não religiosas, não deve passar despercebido que o que fundamenta o esquerdismo é uma estrutura religiosa ateia e anticristã também.

O sincretismo não vitima apenas o cristianismo romano com suas cruzes e crucifixos como vimos no episódio da “cruz comunista” (veja aqui). Na verdade, a maioria dos cristãos sente-se ofendida quando a simbologia de sua fé é deturpada. Um bom exemplo de sincretismo esquerdista é o relatado por Norma Braga em seu post “A ceia agridoce”. 

Como disse no ensaio anterior, o sagrado tem uma linguagem que precisa ser corretamente interpretada. As diferentes instâncias dessa linguagem (símbolo, mito, rito, dogma e dessacralização) possuem regras de hermenêutica próprias, assim como os diversos gêneros literários da Bíblia exigem também abordagens específicas.

Nossa hermenêutica do sagrado não pode se confundir, pois, do contrário, não apenas o sincretismo deturpará a mensagem evangélica, mas o paganismo, a idolatria, o nominalismo e o materialismo se assentarão no lugar onde não devem estar (Mc 13:14).

Gostaria de chamar a sua atenção para duas leituras possíveis sobre o símbolo do “Crucifixo comunista”, presente do Presidente Evo Morales ao Papa Francisco.

A primeira é a ironia de ser a cruz um instrumento do tribunal romano, logo um mecanismo da “justiça dos homens”, ao que Jesus prevaleceu contra tal mecanismo na ressurreição. A ironia está na profética “simbologia pela culatra”, ocorrida de maneira não intencional pelo artista que confeccionou o presente dado ao Papa, pois o crucificado na cruz da “justiça do marxismo” também irá prevalecer sobre o comunismo, assim como ocorreu com o Império Romano.

A segunda leitura é que, embora o protestantismo histórico e o movimento evangélico moderno tenham se apegado à imagem da cruz vazia como um contraponto à mensagem mórbida do crucifixo católico, “um Jesus derrotado”, a verdade é que a cruz vazia nada fala sobre o que ocorreu no terceiro dia.

Vazar a cruz ou deixá-la vazia (e agora respondo à pergunta feita no ensaio anterior) é apenas apontar para o fato de que o corpo de Jesus não está mais ali. A exposição somente de uma cruz vazia ou vazada é incompleta. Portanto, um símbolo incompleto.

Vazar a cruz ou deixá-la vazia é fazê-la sempre apontar numa direção equivocada, esvaziando-a da tragédia cósmica do sacrifício do cordeiro por causa dos nossos pecados. Para fugir à idolatria de uma imagem sobre a cruz e evitar a quebra do 2º mandamento, as cruzes vazias ou vazadas são, ainda assim, meramente iguais às cruzes dos bandidos que morreram ao lado de Jesus ou àquela usada na Parada Gay em São Paulo. Elas estão vazias (ou vazadas), sendo, então, passíveis de serem preenchidas por outros mitos, outras narrativas.

Nas palavras do próprio Cristo, a mensagem da cruz é validada, tão somente, por QUEM foi crucificado nela e não por ela mesma (Mt 23:16–22). É sempre Deus quem toma um elemento ordinário e o transforma em extraordinário. E sabemos disso! A nossa cultura judaico-cristã está sobrecarregada dessa mensagem e é por isso que mesmo descrentes se ofendem ou estranham quando veem a cruz sendo corrompida de seu significado original e histórico cristão. Em outras palavras, mesmo que não haja nada ali, nossa mente sabe que há um referente.

Assim, a cruz está sobrecarregadíssima da mensagem da paixão e da morte, pois essa é a mensagem de Deus que será sempre escândalo para os judeus e loucura para os gregos (I Cor 1:23). E na cruz, como símbolo, deve sobejar impetuosamente a morte, a dor, a morbidez, a tragédia, o abandono, a aparente falta de sentido, enfim, a agonia de Cristo em seu sacrifício por causa dos meus pecados, gritando: “Ó Deus, ó Deus, por que me desamparaste”! (Mt 27:46).

O que quero chamar sua atenção é que a mensagem evangélica total não será dada numa cruz vazia e nem vazada, mas no terceiro dia, num túmulo esvaziado sob o poder do Espírito Santo. É o túmulo esvaziado pelo poder do amor de Deus o que se levanta contra a cruz sobrecarregada não apenas pelos pecados dos homens, mas, principalmente, pela Ira divina.

O sepulcro, cuja pedra foi removida, é um símbolo que não pode (e não deve) ser substituído por uma cruz vazia e nem vazada, mas apresentado como a resposta divina às indagações suspensas no ar daquela tenebrosa sexta-feira.

Só o sepulcro vazio, ornado apenas pelos lençóis de linho que envolviam Jesus, é o símbolo que completa a mensagem evangélica, apresentando-se como um símbolo contra o outro, não para substituir a cruz, mas como a resposta retumbante e poderosa do Evangelho Total de Deus para o drama da história humana.

É assombroso refletir que o que está vazio, o que foi vazado para Deus e por Deus foi o túmulo daquele domingo e não a cruz daquela sexta-feira (não se esqueça que foram os homens que tiraram Jesus do madeiro). Não há nada ali naquele sepulcro, além de lençóis dobrados, e é essa ausência que se impõe repleta de significado de um plano arquitetado e decretado na eternidade pelo próprio Deus para a salvação da Igreja, a noiva do seu Filho.

            Fábio Ribas

Publicado em 27/10/2015

O sagrado nosso de cada dia - um estudo de caso (3ª parte)


Acharam o corpinho da criança de uns quatro anos de idade boiando no rio e agora a estavam enterrando no centro da aldeia, porque ela era a filha do cacique. Haviam feito um buraco vertical e circular de quase dois metros de profundidade. Mas, no fundo do buraco, havia uma câmara horizontal cavada para receber o corpo da criança.

Quando se olhava de fora do buraco, via-se a barriguinha pintada com desenhos, além de outros enfeites como a borduna e o arco e flecha. Os parentes cantavam, as mulheres choravam. E o luto tomava conta de todos.

Um a um, os parentes mais próximos desciam no buraco para tocar o corpo da criança ainda uma última vez, todavia, naquele momento, recebiam uma espécie de choque elétrico e era preciso que outros indígenas mais fortes os tirassem de dentro do buraco.

Eles saíam convulsionando seus corpos e isso se repetiu por horas naquela madrugada até que jogaram areia e taparam o buraco, colocando sobre o túmulo uma panelinha com caldo de mandioca. Outra pessoa mostrou para mim que havia cortado um pedaço de cabelo e um pedaço do dedo da criança.

O missionário transcultural é preparado por anos para fazer algumas perguntas diante de uma manifestação do sagrado como a descrita acima, por exemplo: Quais as ideias por trás dessas cenas? O que elas significam para os participantes? Quem fez o que em cada momento desse evento? Por que nem todos são enterrados no centro da aldeia? Para que cortaram um pedaço de cabelo e dedo da criancinha falecida? Quais as vias que me revelam por onde apresentar o Evangelho?

Tenho convivido há quase 20 anos com missionários transculturais que são excepcionais no discernimento e interpretação de outras culturas. Todavia, muitos desses missionários perdem a sensibilidade de analisar a manifestação do sagrado em sua própria cultura.

Mesmo em nossa sociedade é preciso que venhamos a discernir a linguagem do sagrado de forma correta para que possamos nos comunicar eficientemente com nossa geração. Mas qual a linguagem do sagrado? O sagrado se manifesta através do símbolo, do mito, do rito, do dogma e nos processos importantíssimos de dessacralização.

Como já mostrei no texto anterior, o próprio livro de Atos nos dá uma ótima demonstração do poder de um líder, Paulo, que se dedica a distinguir a linguagem do sagrado em meio à confusão do seu tempo.

O sagrado é a essência de tudo o que fazemos e pensamos, quer concordemos com isso ou não. Entre os tantos teólogos que já trataram desse tema na história, além do próprio Paulo (At 17:23b), temos Agostinho e João Calvino. Este chamava essa percepção de sagrado de “semente da religião” e “sentido da divindade”, e aquele se referia a uma “saudade de Deus”.

A diferença do nosso tempo para os de Agostinho e João Calvino é que, por causa da decadência da nossa Modernidade e do enfastiamento com o Iluminismo, que é como defino a chamada “pós-modernidade”, a nossa geração está muito mais sensível a ter de novo uma percepção diária do sagrado.

A Cruz vazada, foto que ilustra este ensaio, foi erguida originalmente no gramado da Universidade Católica Gwynedd-Mercy, próxima a Filadélfia. Depois essa cruz foi copiada e fincada no CEM (Centro de Evangélico de Missões), em Viçosa-MG.

Como todo símbolo, a cruz vazada também quer apontar, indicar algo que não está nela mesma, mas o que ela transmite é arbitrário, é uma convenção, um acordo social e cultural. Por isso, mesmo que para você não haja nada de sagrado naquela cruz, para muitas pessoas, o sagrado é referido ali, porque aquela cruz manifesta verdades capitais para determinados segmentos do cristianismo.

E ainda que você relativize minimizando ou até anulando a quantidade de carga de informação religiosa presente numa cruz, a percepção do sagrado é tão forte que, dificilmente, um cristão não se ofenderia se visse crucificado ali um porco ou um bode, por exemplo. Portanto, não só a presença de um elemento estranho causa reação negativa, mas, também, a própria ausência (a cruz vazada) revela a presença de uma mensagem positiva.

E a manifestação do sagrado no símbolo, de modo algum, é idolatria. Todavia, a história do cristianismo é repleta dessa confusão na comunicação da Igreja com o mundo, mas isso eu abordarei no próximo texto.

Cabe aqui tão somente suscitar sua reflexão, convidando-o a olhar a ilustração deste post e responder: o que essa cruz vazada comunica a você? Qual a ideia por trás dela?

Publicado em 26/10/2015

                            Fábio Ribas

A Igreja sem parede do Evangelho Total

 

O madeiro em que Cristo foi pendurado formava-se de duas traves de madeira cruzadas uma sobre a outra e, obviamente, sem uma delas, jamais poderíamos dizer que aquilo fosse de fato uma cruz. Semelhantemente, o próprio Jesus resumiu toda a lei dos antigos em apenas duas — amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo — e não podemos dizer que há ensino completo se subtraímos qualquer um desses dois mandamentos. Quando Cristo morreu fora de Jerusalém, o véu que nos separava foi rasgado dentro do Templo, fazendo com que, finalmente, tivéssemos livre acesso ao Pai. Todavia, não apenas o véu, mas também a parede que separava judeus e gentios, parede em que havia inscritas ameaças de morte aos gentios que entrassem no Santo dos Santos, foi derrubada na Cruz de Cristo. Este é o Evangelho Total pregado por Paulo em sua carta aos efésios.

Deus havia levantado Abraão para abençoar todas as famílias da terra e não apenas as famílias israelitas. Israel recalcitrava em não compreender o ensino duplo de Deus: a nação de Israel havia sido escolhida para ser “luz para os gentios” e não somente para gozar a salvação gratuitamente oferecida na Aliança. E muitos cristãos do Novo Testamento — judeus convertidos — estavam repetindo o mesmo erro com os gentios agora trazidos ao Evangelho de Jesus. O ensino completo que Paulo expõe em sua carta é que, do mesmo modo que o véu foi rasgado para todos — judeus e não judeus — a parede da separação também fora derrubada naquela mesma cruz. Em Cristo Jesus, os que outrora eram dois povos agora foram feitos apenas um único povo. Este é o grande segredo revelado em Jesus. No Evangelho Total é que encontramos a glória de Deus, do contrário, “Missões” desintegra-se nas mãos de uma igreja claudicante. Infelizmente, a despeito da clareza desse duplo ensino, ao longo da sua história, a Igreja cristã errou muitas vezes.

A Igreja de Jesus deveria ser o lugar da comunhão dos santos, mas o que temos visto são alguns celeiros que reproduzem o discurso de ódio racial, de uma teologia sectária de gueto, de uma ojeriza ao estrangeiro, etc. Ensinos de homens e ensinos de demônios — ideologias espúrias ao Evangelho — ocupam o vácuo deixado por uma pregação que falhou em não apresentar o Evangelho Total, promovendo um sincretismo nefasto entre o puro e simples Evangelho com filosofias mundanas.

Os cristãos terminam por absorver o discurso de segregação promovido pelo Estado e, por isso, a resistência dentro de nossas igrejas ao trabalho missionário torna-se ainda maior, pois, onde o Evangelho Total deveria trazer reconciliação, a interferência impositiva do Estado promove a divisão. A Igreja de Jesus não pode cair na armadilha de não alcançar os povos indígenas do Brasil, “porque eles já são muito protegidos pela FUNAI”; “porque o índio é uma minoria privilegiada sob a tutela do Estado”; “porque é muita terra para pouco índio”; “porque eles cobram pedágio aos que passam de carro em suas terras”; “porque eles vendem nossas riquezas aos estrangeiros”, “porque índio é igual criança: já está salvo”, etc.

Estes são alguns dos argumentos, muitos desses fabricados levianamente, que tenho ouvido dentro das próprias igrejas cristãs e que impedem estas de obedecerem ao trabalho missionário entre os indígenas. Não é de surpreender que muito mais se faça pelos povos fora do Brasil do que o que tem sido feito no quintal de nossa própria casa. Entretanto, quero que você saiba: são 258 povos indígenas no Brasil e 195 línguas diferentes faladas por eles no nosso território e, envergonhemo-nos, 120 desses povos ainda não conhecem o Senhor Jesus! Dos 258 povos indígenas no Brasil, apenas 40 possuem o Novo Testamento em suas línguas e outros 5 possuem o Velho Testamento.

Além disso, enquanto nos últimos 13 anos o número de missionários transculturais trabalhando no exterior quintuplicou, passando de 400 para 2.000, houve um crescimento insignificante de brasileiros trabalhando com missões indígenas: em 13 anos, o número foi de 400 para apenas 600 missionários!

A parede que nos separava uns dos outros já foi derrubada, mas muitos líderes da Igreja Evangélica Brasileira desconhecem a realidade da existência de uma Igreja Indígena no Brasil. Uma igreja que precisa ser apoiada, discipulada, amada e receber o nosso investimento espiritual e financeiro. Se a Igreja Brasileira não abraçar e compreender a questão indígena, outros o farão. E, assim, condenaremos muitos desses povos a continuarem manipulados tanto pelo Estado como por outros grupos que, não apenas se alimentam das trevas em que esses povos se encontram, mas querem mantê-los nessas trevas para sempre.

Jesus é tudo para todos e nossas Igrejas precisam resplandecer essa verdade, esse ensino total. É na pregação do Evangelho Total que a paz deve ser instaurada em relação ao estrangeiro, ao gentio, ao outro. O Evangelho Total deve integrar a reconciliação de Deus com os homens e a comunhão entre todos os que têm vindo dos mais diferentes povos da terra, “pois foi Cristo quem nos trouxe a paz, tornando judeus e não judeus um só povo. Por meio do sacrifício do seu corpo, ele derrubou o muro da inimizade que separava judeus dos não judeus” (Ef 2.14).

                            Fábio Ribas

Originalmente, publicado em 01/03/2015

quinta-feira, 18 de abril de 2024

O sagrado nosso de cada dia — um estudo de caso (2ª parte)


O que o cristão deve saber (ainda que seja uma verdade bíblica, mas esquecida ou mal compreendida) é que tudo é religiosidade, tudo é espiritual (Ef 6).

Esta é a premissa da qual todo cristão deveria partir: o que subjaz às decisões econômicas, políticas, educacionais ou de qualquer outra esfera são ideias espirituais, religiosas.

A Igreja de Jesus é a única que detém, de fato, a possibilidade de traduzir e interpretar com exatidão muito maior a linguagem do sagrado. Quando a Igreja não consegue se compadecer e se ofender pela profanação ao “sagrado do outro”, ela perde uma oportunidade ímpar que o próprio Apóstolo Paulo jamais se deu ao luxo de perder.

Paulo se ofendeu terrivelmente com a idolatria, mas o que aquelas imagens e aqueles deuses tinham a ver com o cristianismo de Paulo a ponto do texto usar a palavra paroxunō, que significa revolta (At 17.16)?

Paulo sabia que ali estava ocorrendo uma corrupção, uma profanação diante do sagrado que se manifestara aos Atenienses. E embora “acidamente ofendido” pelo que estava vendo, Paulo não perde aquela geração, mas consegue identificar um ponto de contato com eles: “…em tudo vos vejo acentuadamente religiosos” (At 17.22)!

Cabe aqui um parêntese. Embora o termo grego para “religiosos” (deisidaimonesteros) também possua uma conotação para nós negativa de “supersticiosos”, e assim foi traduzido na versão ARC, entretanto, respeitando o contexto do discurso paulino aos atenienses, acertadamente, as versões ARA, NTLH e NVI traduziram o termo para o seu outro significado: a ideia correta de “mais religiosos do que outros”.

Terminada a digressão, um novo ponto importante dessa passagem de At 17 para a Igreja Missionária que quer se comunicar com este “novo mundo” é a postura de Paulo de “olhar cuidadosamente (theōreō) os objetos de culto dos atenienses”.

Isto nada mais é do que o que citei no último artigo sobre a missiologia que “volta atrás”, vai ao ponto da essência do que é sagrado para o outro, querendo, verdadeiramente, compreender as ideias que subjazem o que se manifesta diante dos nossos olhos (leia: “A obra de arte como acesso ao mundo do artista e ao artista-no-mundo (ou “Por que devemos comer com os pecadores?”)”).

Ironicamente, o espírito que dá forma às ideias que sustentam, por exemplo, um movimento como a Parada Gay do dia 07 de junho de 2015 em São Paulo é o mesmo enfrentado por Paulo em Atos 17: os epicureus ensinavam que o objetivo principal do ser humano era viver de maneira prazerosa e sem dores ou medos, e os estoicos ensinavam que deveríamos viver em harmonia com a natureza e pregavam um deus panteísta, que era a alma do mundo.

A missiologia de Paulo previa um profundo conhecimento acerca do “sagrado para o outro” a ponto dele citar poetas pagãos na explanação a pessoas que desconheciam o Deus do Antigo Testamento!

A verdade é que o sagrado sempre estará presente, com imagens ou sem imagens, com cruz ou sem cruz, como bem demonstra a ilustração deste post. Fifty é uma obra de escultura de Filipe Cortez que, a partir da temática da crucificação, pretende denunciar os 50 países em que há pena de morte.

Ainda que não haja uma cruz material, visível, a nossa cultura está impregnada de cristianismo e é a esse cristianismo, bem ou mal compreendido, ou já amalgamado a um sincretismo pós-moderno, mas é a essa cultura judaico-cristã que o espírito de nosso tempo reage.

Como Paulo, devemos compreender os porquês do sagrado incomodar; da cruz ofender e ser usada também para ofender; da mensagem da cruz ser esvaziada de seu sentido e redefinida para o uso deste “novo tempo”. Enfim, precisamos compreender que “tudo é religião”, pois tudo é espiritual.

Precisamos acertar o alvo de nossa comunicação missionária e termos, diante de Deus, a consciência tranquila de que o Evangelho foi rejeitado pelo que ele significa e não por uma falha em nosso esforço missionário de compreender a agonia do sagrado do mundo.

                                    Fábio Ribas

Publicado originalmente 25/10/2015

                            

quarta-feira, 17 de abril de 2024

O sagrado nosso de cada dia — um estudo de caso (1ª parte)

 


Nas últimas semanas, duas notícias chamaram a minha atenção. A 1ª foi com respeito ao auê das discussões sobre a Parada Gay. Contudo, não foi a Parada Gay em si o que me chamou a atenção, mas ver tantas pessoas de religiões diferentes e até mesmo ateus ofendendo-se com o desrespeito a elementos associados à cultura cristã.

A 2ª notícia foi o aval de D. Odilo Scherer para que uma escola de samba faça homenagem na avenida à Nossa Senhora Aparecida. Aparentemente, eu não tenho nada com isso, porque não sou católico. Todavia, surpreendeu-me ver no facebook evangélicos ofendidos com a atitude do líder católico, Arcebispo de São Paulo.

Esses dois fatos fizeram-me recordar também aquele grupinho de rock na Ufac queimando uma Bíblia no palco. Quem não se recorda também da proposta de retirada do “Deus seja louvado” das notas de dinheiro e a mudança dos nomes das cidades que fazem referência ao Cristianismo?

O que há em comum a todas essas notícias é que muitos dos que se colocaram como ofendidos diante dessas ações não eram, necessariamente, adeptos de grupos religiosos e nem pertencentes ao grupo atacado, manifestando, portanto, estarem ofendidos pela profanação daquilo que é sagrado para o outro. Por quê?

Muitas explicações podem ser dadas, mas a que mais me interessa aqui, por enquanto, e que não é consciente para a maioria das pessoas que se ofendem “pelo sagrado do outro”, é que o Sagrado é uma experiência universal.

Somos seres sedentos de Sagrado, porque fomos criados por Deus e, ainda que não aceitemos, a nossa vida diária é uma busca incessante pelo Sagrado, mesmo que essa busca não se reflita, necessariamente, numa busca pelo Deus verdadeiro (Rm 3.11b). Cientes desse anseio humano, a Ciência moderna, o Estado, ou mesmo a Filosofia e as Artes tentam apropriar-se do espaço do Sagrado.

Mas o que é o Sagrado e que força é essa que, mesmo numa sociedade secularizada, ainda é capaz de ofender tanta gente? O Sagrado é o que subjaz a toda experiência religiosa. E “se a religião gerou tudo o que existe de essencial na sociedade, é porque a ideia da sociedade é a alma da religião. As forças religiosas são, portanto, forças humanas, forças morais” (Durkheim).

Não há dúvida da importância do Sagrado à humanidade. O que eu aprendo com tudo isso? Que o Sagrado, para determinados segmentos cristãos, manifesta-se também por meio de uma cruz — um instrumento de morte que, ironicamente, foi “profanado” pelo próprio Sagrado a ponto de se transmutar em símbolo de vida.

Uma cruz que, conforme denuncia Salvador Dali no quadro “A crucificação” e que ilustra este texto, está parada, flutuando, desconectada da realidade de muitos que ainda olham para ela, mas que não a veem.

Eles intuem a cruz, mas o que muitos cristãos temos oferecido ao nosso tempo, como denuncia o quadro, é apenas uma sombra sobre a terra: é preciso, portanto, uma missiologia que “volte atrás”.

Para muito além de ofensores e ofendidos, há uma mensagem que resiste poderosamente e que, mais do que nunca, revelou-se ser escândalo e loucura (I Cor 1.23).

E é isso o que precisamos entender de maneira correta, pois, do contrário, enclausurados nas torres de marfim de nossas teologias exatas, perderemos esta geração para aqueles velhos inimigos de sempre: o paganismo, a idolatria, o nominalismo, o materialismo e o sincretismo.

A minha tese é que eventos como os que ocorreram e decorreram da Parada Gay em São Paulo, no dia 7 de junho de 2015 são oportunidades preciosas para acessarmos esse “novo mundo” ao qual a Igreja é direcionada pelo Espírito Santo a pregar.

Então é preciso que nos esforcemos, como Igreja Missionária, a um trabalho mais profundo de conhecimento desse espírito do nosso tempo — o Zeitgeist, como se aprende em teologia. E este será o assunto dos nossos próximos textos.

            Fábio Ribas

Publicado em 24/10/2015

terça-feira, 16 de abril de 2024

Spock e as justificativas de nossos crimes culturais — uma reflexão para tempos de corona vírus


Photo by Nick Bolton on Unsplash

Trabalho com culturas que praticam o infanticídio — o assassinato de crianças logo após seu nascimento.

As justificativas são as mais variadas para tal prática: 1) o medo dos espíritos (pois, quando gêmeos, crê-se que um deles pode ser um espírito maligno, e por não saberem qual, então, enterram vivos os dois); 2) o peso do machismo que irá fazer da mãe solteira, que insistir em preservar sua criança, uma “mulher de todo mundo” naquela sociedade; 3) evitar também o estigma daquela criança sem pai de ser um pária na tribo e ser tratado como um pulha por todos ao seu redor; 4) livrar-se do estorvo de criar uma criança com deficiência física ou mental, etc.

O mais surpreendente, porém, é que as justificativas apresentadas no parágrafo acima são quase as mesmas para aqueles que justificam o aborto na nossa sociedade dita “civilizada”.

Ontem, junto com minhas filhas, assisti a um antigo episódio da família Dinossauro em que se comemorava “o dia do lançamento” — um ritual no qual os idosos eram lançados no poço de piche ao completarem 72 anos de idade. A justificativa daquela prática, que já durava milhares de anos, era que os idosos atrasavam a manada quando essa precisava fugir dos seus predadores.

Contudo, o jovem neto, cuja avó iria ser arremessada, questionou essa prática: “Mas hoje somos urbanos! Não vivemos mais na mata, fugindo e se escondendo de predadores… Então, porque ainda temos que matar nossos idosos?”!

Surpreendi-me novamente pois algumas culturas indígenas também abandonam seus idosos, ou na mata ou dentro de uma casa sozinho, sem comida e sem água até que, obviamente, morram. Qual a justificativa? Antigamente, estes povos indígenas eram nômades e seus idosos eram um peso para eles, contudo, hoje, além desses povos já serem sedentários, há a presença de um profissional da saúde muito próximo, senão, até mesmo dentro da própria aldeia.

O Governo tenta esconder, mas nós também abandonamos nossos idosos (e eu não estou referindo-me aos asilos). Nossos hospitais públicos, as políticas mercenárias dos planos de saúde e a escandalosa realidade do SUS demonstram que há uma cultura de eliminação do idoso acobertada pelo Estado. O idoso em nossa sociedade também é um estorvo, ele custa aos cofres públicos uma grande quantia de dinheiro e o Brasil precisa eliminar suas despesas desnecessárias.

O Brasil está envelhecendo e daqui 40 anos 30% da população será composta de idosos. E esses idosos, que serão “aposentados improdutivos”, estarão também vivendo mais — e o Estado sabe disso. Aqui, os “teóricos da conspiração” nos colocam a questão de uma pandemia planejada, controlada e arquitetada para um controle populacional, uma reengenharia social.

Ou você ainda acha que o interesse estatal em temas como aborto, eutanásia e a negação do caos da falta de infraestrutura da saúde pública se devem simplesmente à incompetência e corrupção? Ledo engano, meu caro cidadão. Um dia vão jogar você e a mim no poço de piche como já o fazem com tantos milhares de idosos Brasil afora.

Aborto, eutanásia, limpezas étnicas, etárias e socioculturais continuam a fazer parte do plano de governo de vários países e, muitas vezes, tudo está sendo incentivado por politicas públicas que colocam o valor coletivo, “cultural”, acima do indivíduo.

Aqui chegamos à questão ética que envolve nossa sociedade Star Trek. Afinal, “a necessidade de muitos sobrepõe a de poucos ou mesmo de um só” (posição defendida pelo personagem Spock — que se sacrifica pelo bem de todos) ou “a necessidade de um, às vezes, supera a necessidade de muitos” (posição defendida pelo personagem do capitão Kirk — que sacrifica a tudo e a todos para salvar Spock)*?

A primeira posição apresenta-se mais como uma lei geral e é dita pela boca de um personagem alienígena preso à lógica de seu universo. A segunda apresenta-se como a humanização daquela lógica extraterrestre, quando intuímos pela experiência da vida diária que nada é, tão claramente e só, “preto ou branco”, nada pode ser reduzido a um simplismo dualista. “Às vezes” é uma expressão que também faz parte do discurso conservador.

Em outras palavras, não somos apenas a lógica cartesiana, mas nossos sentimentos — tanto os inatos quanto aqueles que a vida ensina a cada um — auxiliam nossa razão a escolher o melhor caminho que, naquele momento, precisamos trilhar. E Spock aprendeu esta lição tão humana.

Depois destes anos todos trabalhando com o outro, aprendi a trazê-lo para perto de mim e desfiz esse mito da antropologia do observador distante e o troquei por uma “antropologia do muito próximo” e passei a tratá-lo como “tu”. O “outro” é uma criação da ciência social cientificista que influenciou a sociologia, a antropologia e a até mesmo a religião. Não é à toa que muitos teólogos do século XX se acostumaram a tratar Deus como “O Outro”, “O totalmente Outro” (Karl Barth). Todavia, o outro ou o Outro são entidades, criações, caricaturas para livros, para teses, mestrados e doutorados de pessoas que são lógicas demais. E a lógica, desculpe-me Descartes, não abarca tudo e, principalmente, não vê aquilo que é essencial (Saint-Exupéry).

Portanto, a vida vai ensinando-nos a tratar o outro por tu e, caminhando juntos um pouco mais, vemos que o tu será um você, um amigo, um irmão, dependendo do nosso esforço e interesse para que isso ocorra de fato. Assim como aprendi também a chamar “o totalmente Outro” de Aba Pai, paizinho — porque essa é que deve ser a caminhada espiritual de cada um de nós.

    *Estou tendo em mente os antigos episódios II, III e o Star Trek — Além da escuridão, nos quais encontramos essas frases.

    Link para o episódio da “Família dinossauro”: https://www.dailymotion.com/video/x26i2pf

            Link para a morte de Spock: https://www.youtube.com/watch?v=hJHcIUbiKfo

        Fábio Ribas

Eu e minha mãe fomos adotados


O texto abaixo foi publicado em 13 de março de 2023

Hoje pela manhã, a Lu foi buscar-me na casa de mamãe e, enquanto eu me arrumava para ir embora, mamãe disse para ela: “Ontem, fizemos um culto juntos”! Depois, a Lu contou-me isso dizendo que ela viu que foi muito importante para mamãe esse momento que eu e ela tivemos. Contei em detalhes, então, para a Lu o que agora também compartilho aqui com vocês.

“Mãe, hoje é o Dia do Senhor, vamos fazer um Culto juntos?”, ao que ela respondeu que sim. Abri a Bíblia no meu celular e, para minha surpresa, na minha leitura diária dos salmos, a leitura do dia era o Salmo 71, cujo título inesperado era “Súplicas de um ancião”. Li todo salmo e, depois, verso a verso, fui comentando e pregando.

Sempre que estamos juntos, surgem oportunidades de pregar o evangelho para mamãe, mas nunca tive um momento em que pudesse pregar sobre a salvação em Jesus de forma tão clara e direta como ontem. O que havia de diferente? Eu pude mostrar e aplicar ao coração dela a mensagem que eu estava lendo no Salmo: falei das feridas e das injustiças que as pessoas fazem contra nós; disse que deveríamos entregar essas pessoas à justiça de Deus; fiz paralelos com a vida de Jesus, mostrando que Ele cumprira a justiça de Deus e que os homens jamais poderão fazer algo parecido; por fim, disse que Jesus morreu na cruz por causa dos nossos pecados e que era idolatria se confiássemos em qualquer outra proposta de salvação e santificação.

“Mãe, Jesus é suficiente! A senhora acredita nisso que eu estou dizendo?”, perguntei. “Sim, acredito”! “Mãe, o ancião deste salmo é a senhora. Ele foi ferido e magoado por pessoas em quem ele confiava, mas ele reconhece que Deus cuidava dele desde o ventre da sua mãe. Ele sabe que os pecados dele o separam de Deus e, então, arrependido, ele confia na justiça de Deus e não na justiça dos homens. Você acredita que Jesus é a sua justiça, mãe, e que nEle eu e você somos adotados pelo Pai?”. Minha mãe foi respondendo afirmativamente a todas as perguntas que eu fazia. No fim, oramos. E oramos a Jesus somente!

À noite, depois do jantar, eu e minha mãe fizemos mais uma devocional à mesa. Era sobre Barrabás e, mais uma vez, pude explicar para minha mãe que Jesus trocou de lugar conosco, do mesmo modo que o fez com Barrabás. “Mãe, você conversa com Deus?”, perguntei. Ela me disse que toda noite, antes de dormir, ela coloca todos nós diante de Deus pedindo que Ele cuide da gente. “Mãe, a partir de hoje, você também irá fazer igual o salmista, a senhora vai agradecer a Deus pela sua salvação e santificação em Jesus, amém?”. E ela respondeu: “Amém”!

Disse à minha mãe que ela precisava ler/ouvir a Palavra de Deus todos os dias, porque a fé cresce e se fortalece por meio da Palavra.

Mas eu sei que até nisso ela precisa de ajuda, por causa da audição precária… Há muitos anos que mamãe não gosta de sair de cadeira de rodas para a rua. Acho que ela tem vergonha… “Mãe, sair um pouco de dentro deste apartamento, ficar lá fora, tomar um sol e respirar ar fresco, posso vir te pegar?”. E ela concordou! Assim, combinei que três vezes por semana irei pegá-la para descermos na cadeira de rodas dela e, debaixo do prédio, a gente continuaria essas devocionais sobre a cruz de Cristo. Ainda conversei sobre muitas coisas com mamãe, coisas sobre a fé em Cristo.

Orem por minha mãe! A salvação pertence ao Senhor, diz a Bíblia. Contando tudo isso que compartilhei com vocês às minhas filhas, Ana Lissa me disse: “Tenho fé que encontrarei vovó no Céu”!🥰

PS — Hoje, relendo esse texto escrito há quase um ano, vi que nunca consegui “essas descidas de cadeira de rodas com ela”, mas nunca deixei de estar com ela sempre conversando sobre Jesus, a Bíblia e o amor e o perdão que só são possíveis em Cristo Jesus”! Obrigado, Jesus, pela minha mãe.

Mamãe faleceu dia 08 de março de 2024!

                Fábio Ribas

sábado, 13 de abril de 2024

No Reino de Zindorff (XII/2024)

 


Embora esteja lendo muitos livros prazerosos, todos são muito técnicos. Certamente, isso levou-me a ter sede de uma leitura mais literária. Neste momento, recordei-me do livro “No Reino de Zindorff”. Devo ter lido há uns três ou quatro anos, convidado pela autora para prefaciar seu livro. Livros, bons livros, revelam-se melhores e mais instigantes quando lidos de novo. E foi exatamente isso o que ocorreu com o livro de Elizabeth Rodrigues.

Relendo com sede de boa literatura, vejo que, logo na sua apresentação, a autora nos comunica qual a função da boa ficção: "Quem sabe essa literatura o fará refletir sobre algum episódio da sua vida real? Garanto que, assim, voltará à realidade após cada capitulo, porque "No Reino de Zindorff" enfrentam-se conflitos e situações semelhantes aos nossos, simples mortais, e talvez possamos aprender como alguns reagiram diante de cada demanda". Releio este livro num momento bem diferente da minha vida daquele quando o li pela primeira vez. Encantando-me, agora, mais ainda com sua qualidade editorial e também com a escrita elegante da autora, mas também com as belas ilustrações de Joaquim Ivanil, seu esposo. Estamos no Reino de Zindorff.

Por tudo isso, é uma delícia estar novamente no Reino de Zindorff. Melhor ainda é caminhar com mais calma pelas belas frases da autora e pelo Reino de reis e rainhas cristãos. Acompanhando a trajetória do Rei Rui, vemos como um Rei cristão enfrenta suas enormes batalhas, superando as dificuldades e, sendo renovado espiritualmente, não abre mão de trazer uma nova era ao Reino de Zindorff. Contudo, em meio a tantas bênçãos de reavivamento, em que até missionários do Reino são enviado a outros campos, há uma semente de discórdia sendo semeada nas terras de Zindorff. Heresias estão sendo transmitidas às crianças. Um soberano preocupado, antes de tudo, com a vida espiritual de seus súditos é um tempo que passou para nós, mas que ansiamos que retorne, um dia, na sua plenitude na instauração do Reino perfeito e eterno de Jesus Cristo.

Gente, que livro gostoso! Que delícia de capítulos! Muito envolventes os capítulos que descrevem a vinda da médica Hannah Betsy. Impossível não se apaixonar e torcer para que tudo dê certo! Helene se prepara para a liderança do Reino; Thyfany estuda em Londres; Mirna enfrenta as agruras de sua adolescência. Porém, a autora conseguiu deixar-me frustrado em meus sentimentos e expectativas com o sumiço de Hannah Betsy. Aonde ela anda? Como que Elizabeth consegue nos carregar pela sua narrativa e nos oferecer tantos sentimentos com seus personagens? Parabéns! Ela nos encanta com o fluxo de sua história!

Um livro que merece ser lido pelas nossas jovens e por nossos jovens cristãos que, infelizmente, têm recebido como ofertas literárias tantas obras carregadas de valores iníquos, imoralidades e anticristianismo. A fantasia de Elizabeth Rodrigues cumpre o seu papel como literatura de ótima qualidade. Zindorff torna-se um Reino cristão abençoado, enquanto abençoa outros ao seu redor; um Rei zeloso de sua conduta espiritual, mesmo quando enfrenta tragédias em sua vida; e o retorno do amor cortês, do príncipe esperado, o salvador aguardado e que não teme pela própria morte ao defender sua amada. O bem triunfa sobre o mal.

        Fábio Ribas

terça-feira, 9 de abril de 2024

A mitologia grega (XI/2024)

O mito, portanto, vai dizer Aristóteles na Poética, é “o princípio e como que a alma da tragédia”. “Mythos” é usado pelo filósofo em dois sentidos: 1) a narrativa, a história, o enredo bem engendrado, conectado, construído; e 2) no sentido da coleção de histórias, lendas e folclores deixados pela tradição e trabalhados artisticamente pelo poeta como fonte das tragédias e epopeias.  Assim, nada mais fascinante do que lermos o livro do historiador Pierre Grimal amarrando as narrativas da mitologia, apresentando-as conectadas e desenvolvidas numa ordem para o prazer da nossa leitura e compreensão desses mitos.

  E uma das tantas qualidades desse pequeno livro é o de demarcar a diferença e semelhança, o fluxo e o refluxo dessa linguagem: o mytho e o logos. Nessa delimitação, cresce, diante dos nossos olhos, a beleza do Cristianismo, enquanto logos, e a beleza das narrativas gregas, enquanto mytho. “O mito se opõe ao logos como a fantasia à razão, como a palavra que narra à palavra que demonstra. Logos e mythos são as duas metades da linguagem, duas funções igualmente fundamentais da vida do espírito”, diz Grimal.

   Assim, no ambiente do mito, este é atraído por aquela parcela do irracional (ou atrai a ela) e é aparentado de toda arte, em todas as suas criações. Daí, para Aristóteles, o poeta (e todo artista) ser um imitador e um imitador das ações e daí a tragédia erguer-se como aquele veículo da mimese por excelência, em que o poeta ensinará ao público as virtudes reveladas pelo seu trabalho artístico com o mito. E teremos prazer em aprender com os poetas, porque aprender dá prazer, mas aprender com poetas melhores as virtudes que eles nos ensinam em sua arte é prazer maior ainda.

     Após traçar um encadeamento dos mitos gregos, na parte final de seu livro, Grimal irá questionar a maneira que durante a história tentaram se aproximar dessa mitologia. Desde uma abordagem “desmitológica” nos séculos XVIII e XIX, em que se retira todo o maravilhoso para tentar encontrar apenas o que de fato ocorreu, até um agrupamento por meio de um “método comparativo”, pelo qual se tenta agrupar mitos do mundo todo a partir de seus temas comuns. Mesmo nas perspectivas mais recentes em que se sociologiza ou se psicologiza os mitos, até nisso Grimal vê uma abordagem incompleta, infeliz e que retira dos mitos aquilo que eles têm de mais específico.

      A conclusão particular a que chego após um encontro tão prazeroso com o livro de Grimal é que os mitos, enfim, mais do que suportes para esquemas de uma sociologia ou psicologia coletivas, revelam-se receptáculos de nossas próprias e inefáveis experiências individuais. Este é o segredo e a chave do mito.  

A mitologia Grega – resenha

     “O mito não se limita a seus termos. Esboça uma imagem, um símbolo, se se quiser, de uma realidade que, de outro modo, seria inefável”, diz Grimal. Portanto, o mito como símbolo é o que interessa ao nosso estudo em nossa bibliotheca.

      Cabe aqui lembrar, porém, a origem da palavra “aristocracia”, que vem de aristoi, que são aqueles que possuem a areté, que é a virtude.  Mas o que era a virtude para Homero já é diferente do que entende Aristóteles. Na Poética, Aristóteles ensina que o poeta é um imitador e que a tragédia (e a epopeia) são imitações das ações e estas nos revelariam o caráter do herói, suas virtudes. O problema é que “virtude” (areté) para Homero é a característica de um alto ideal cavalheiresco aliado a uma conduta cortesã e ao heroísmo guerreiro. Não é de se espantar, então, que Alexandre e César oferecerão libações no túmulo de Aquiles, pois este é uma fonte de inspiração. Grimal chama a atenção de que é somente na era dos filósofos sofistas que a noção de virtude irá ser questionada, uma vez que, em Homero, Ulisses, por exemplo, não tem questionados as suas mentiras e falhas de caráter. Já em Aristóteles, “os heróis lendários são submetidos a uma crítica moral” (e espiritual). Os mitos, diz Grimal, irão se tornar uma imensa reserva de exemplos de virtudes e vícios, que deverão ser escolhidos por cada um de nós.

    “O mito – em sua forma de relatos épicos – torna-se o instrumento da educação moral. Nas escolas da Grécia clássica, as crianças – desde a mais tenra idade – aprendem de cor os poemas homéricos, e o professor extrai dos mesmos máximas e preceitos de conduta. Para muitas gerações, Homero foi o educador por excelência”, recorda-nos Grimal.

        E a aristocracia é aquele grupo de pessoas ligadas aos antigos heróis, que guardam as suas virtudes e com elas se identificam geneticamente, assim, os mitos também tem essa característica de colorir a história e servir “como título de nobreza para cidades e famílias” (para ver melhor a imagem abaixo, basta clicar sobre ela e expandi-la).


         Para facilitar a apresentação dos mitos, Grimal os organiza a partir de “ciclos”: 1) os mitos teogônicos; 2) os mitos olimpianos; e 3) os mitos heroicos. Para a grande gênese dos deuses apresentada por Grimal, ler aqui. Nos mitos teogônicos, podemos acompanhar o início de tudo e o surgimento do deus caçula, Zeus, que irá ser o responsável pela disputa de poder até que ele possa se assentar no trono dos deuses e dar início ao ciclo dos deuses olimpianos. No último ciclo, o dos heróis, somos apresentados a seis ciclos: a expedição dos argonautas, o ciclo tebano, o ciclo dos átridas, o de Hércules, o de Teseu e, finalmente, as aventuras de Ulisses.

        Poderemos descobrir a origem da palavra “areópago”; a maldição contra a relação homossexual que deu origem a tragédia de Édipo; o papel das mulheres que traíram seus próprios pais e seus países por amores que não foram correspondidos, entre muitas outras narrativas que ainda marcam nossa imaginação. Na verdade, após a leitura tanto da “Poética” de Aristóteles como a “mitologia grega” de Grimal, é impossível resistir ao desejo de reencontrarmos todas essas histórias e as relermos com fascínio redobrado por tudo o que, na verdade, elas simbolizam para cada um de nós. 

                                Fábio Ribas  

 

Semiótica em Platão


                  (clique sobre as imagens para aumentá-las)

        Como aborda Winfried Noth (o 3º slide deste texto é feito a partir de seu resumo do signo em Platão), há uma “história etimológica e institucional” da semiótica. Entretanto, quero tratar da semiótica em Platão a partir de uma história da teoria dos signos “implícita e explicita”, que se constitui de um estudo avant la lettre da doutrina dos signos verbais e não verbais. Como podemos relembrar a partir do slide acima, em Crátilo, Platão apresenta um modelo do signo de estrutura triádica – o nome (ónoma, nómos), a noção ou ideia (eidos, logos, dianoéma) e a coisa (prágma, ousia), que é aquilo a que o signo se refere.


         Quando tratarmos do signo na história, perceberemos que vários autores deram nomes diferentes aos mesmos conteúdos (já abordei esta questão aqui), então, para facilitar essa comparação bibliográfica, procurei associar no slide acima outras nomenclaturas de outros autores) para aquelas usadas por Platão. Assim, para o “nome”, outros autores trataram de “Símbolo”; para “a coisa à qual o signo se refere”, outros autores denominaram de “referente”; e, no caso de “noção ou ideia", você poderá encontrar uma nomenclatura diferente dependendo do autor: “referência”, “conceito”, “imagem mental”, “a informação que o nome transmite ao ouvinte”, “significado”.


         O slide acima procurou representar a discussão tratada em "Crátilo" (que foi, como o próprio subtítulo dessa obra demonstra, sobre “a justeza dos nomes”). Veja que no slide há uma ligação entre o “nome” e a “noção ou ideia”, assim como há uma ligação entre a “coisa à qual o signo se refere” e a “noção ou ideia”, porém o que não parece haver – e esta é a discussão em Crátilo – é a ligação entre o “nome” e a “a coisa à qual o signo se refere” (daí o ponto de interrogação no slide).


           
         

        Neste segundo slide, exatamente para refletir as discussões em Crátilo, pequenas modificações foram feitas em relação ao primeiro: 1) a ligação entre o “nome” e “a coisa à qual o signo se refere” é natural ou é uma convenção? 2) É a “ideia” (ou Forma) o que une o “nome” à “coisa à qual o signo se refere”? e 3) “a coisa à qual o signo se refere” parece estar em certa união natural com a “Ideia”, assim como parece haver uma ligação natural do “nome” com a “Ideia”. Além disso, chamei a atenção para não confundir o conteúdo platônico da “coisa à qual o signo se refere” (ou o “referente”) com o que para Saussure é chamado de “significante”, pois para Platão o modelo de signo é triádico, isto é, há uma ligação com o mundo fora da mente do indivíduo, enquanto que, para Saussure, o signo é diádico, isto é, o “significante” é apenas mental.


         Didaticamente, cabe aqui relembrar que toda a teoria do signo discutida em Crátilo parte de duas doutrinas de Heráclito, a saber: 1) a doutrina do fluxo de todas as coisas, que é representada por Protágoras e Hermógenes, que conclui ser impossível às palavras (nomes) revelarem algo da essência das coisas, daí toda ligação entre o nome e as coisas ser arbitrário – “convencionalismo”; 2) Heráclito também pregava a doutrina da emanação, que é representada por Górgias e Crátilo, que, a partir dessa doutrina heráclita, concluem o oposto, a saber, embora haja o fluxo ininterrupto de todas as coisas, estas “emanam” algo de sua essência que é captado pelos nossos sentidos, daí toda ligação entre o nome e as coisas ser natural – “naturalismo”. Veja que o naturalismo de Górgias não era uma identificação com o Ser das coisas, mas uma “captação”


         Ainda em “Crátilo”, a saída proposta não é nem a do convencionalismo e nem a do naturalismo, antes, o “nome” é uma imagem. Assim como uma pintura é uma imagem de alguma coisa, o “nome” (substantivo, verbo, advérbio, etc) também é cópia de uma realidade em si. Contudo, mesmo essa ideia do nome como imagem vai falir toda a discussão no livro. Portanto, qual o melhor caminho? Aprender da imagem (nome) sobre a verdade que ela espelha ou aprender da própria verdade? A resposta final do livro é que o melhor é entrarmos em contato direto com a verdade, que, num primeiro momento, pareceriam ser as coisas. Entretanto, as coisas são também imagens. Assim, no Timeu, a imagem (não do nome, mas das coisas - estas são imagens das Formas, das Ideias) será a solução platônica que garante a inteligibilidade do mundo. Veja abaixo:



         

        O que se pode concluir? É que o modelo triádico platônico, na verdade, deságua numa concepção quase diádica, uma vez que “a coisa à qual o signo se refere” é apenas uma cópia da Ideia e, relembrando toda a discussão de Sócrates tanto em Crátilo como em Fédon de que o melhor é a busca da Ideia do que da cópia da Ideia, a Filosofia irá, então, afastar-se da realidade material do mundo e se dedicar ao que o pensamento e a reflexão são capazes de oferecer: a realidade da metafísica, um caminho “mais excelente”. Perceba, as ideias têm consequências: esse "descaso" com a realidade concreta das coisas em si marcará tragicamente um cristianismo místico, que nascerá de um casamento com o neoplatonismo, assim como, posteriormente, ocorrerá tanto com Descartes como com Saussure, que defenderão uma concepção mentalista do signo. Mas, para Platão, a realidade, o referente, “a coisa à qual o signo se refere” é, tão somente, uma cópia, que deverá nos remeter à verdadeira realidade que é o original no mundo das Formas (ora, aqui, podemos, exatamente, ver o prenuncio da filosofia de Kant). 


                                            Fábio Ribas

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Símbolo - uma palavra "overloaded"

 


“Uma palavra ou uma imagem é simbólica quando representa algo mais que o seu significado imediato e óbvio. Tem um aspecto ‘inconsciente’ que nunca será definido com precisão ou completamente explicado...”
C. Jung

Em Semiótica, há muitas palavras que são “overloaded”. São palavras carregadas de significados e usadas nas mais diversas situações. E isso dificulta muito iniciar o estudo na área, pois, dependendo do autor e das escolas, palavras e expressões como “signo”, “signo linguístico”, “ícone”, “índice”, “símbolo”, “sinais” e afins precisam ser estudadas no contexto da obra em que se encontram. 

A simples palavra “signo” em Peirce, Morris, Schaff, Cassirer, Wittgenstein, Gadamer e Umberto Eco assume conteúdos diferentes para cada um deles. Se isso já não fosse suficiente para causar certa confusão, o inverso também ocorre: há conteúdos semelhantes, mas que recebem nomenclatura diversa em cada um desses autores! E o que dizer de palavras que mudam de conteúdo no correr da vida de um mesmo autor? Não é surpresa, portanto, termos coisas como “o 1º Kierkegaard, o 2º Kierkegaard” ou “Chomsky da 1ª fase, o da 2ª fase, etc” e assim por diante. Isso tudo sem esquecer que uma mesma nomenclatura recebe conteúdos diversos e até significados opostos no correr da história!

         Assim, neste texto, quero chamar sua atenção para a necessidade de obras de referência e dicionários especializados. Quais eu mais uso? Por enquanto, até essa fase da nossa Bibliotheca, uso muito os dicionários de Filosofia do Ferrato Moura e do Abbagnanoo ótimo dicionário eletrônico Houaiss, além do dicionário de linguística da Editora Cultrix e o vasto dicionário de semiótica do Greimas e Courtés. Acredito que estas obras são um material mínimo para se ter à mão.

         Aproveitando essa perspectiva, gostaria de tomar como estudo de caso a nomenclatura "símbolo" para, além do que já vimos até aqui, agregar novas informações também.

         Comecemos pelo Houaiss (você pode clicar sobre a imagem para aumentá-la):

         Como podemos ver, o dicionário consegue trazer à tona 7 acepções diferentes. Todavia, se observarmos com atenção, perceberemos uma característica comum às acepções ali expostas: todas são arbitrárias. Podemos, ao menos, tirar uma conclusão, que, segundo o dicionário Houaiss, o símbolo é arbitrário, é uma convenção, um acordo estabelecido dentro de algum ambiente. Este pode ser social, político, acadêmico ou cultural, por exemplo.

         Vamos retornar ao que havia escrito logo no início e vejamos alguns outros conteúdos para esta palavra “símbolo”. Para Morris, símbolo é “um signo produzido por seu intérprete e que age como substituto de outro signo”; para Schaff, “são objetos materiais que representam noções abstratas”; para Saussure, o símbolo “nunca é completamente arbitrário. Há um rudimento de vínculo natural entre significante e significado”; para Cassirer, “os símbolos pertencem ao mundo humano de sentido” (lembremo-nos de sua tese de que o homem é um animal simbólico); para Wittgenstein, “para reconhecer o símbolo no signo é necessário considerar seu uso significativo”; para Gadamer, “a essência do símbolo é substituir ou estar no lugar de outra coisa”. Cabe salientar que, para Peirce, Morris, Schaff e Wittgenstein, os símbolos são subunidades do signo, enquanto que, para Saussure, Gadamer e Cassirer, os símbolos se opõem aos signos. Com este parágrafo, compreendemos bem a observação de Peirce: “... a palavra símbolo já tem tantos significados que seria uma ofensa adicionar-lhe mais um...”.

         Então, para compreendermos o universo do símbolo, alguns outros conceitos precisam ser abordados daqui para frente: signo e sentido, por exemplo (além dos conceitos filosóficos de “forma”, “substância” e “matéria”, aos quais já havia me referido em textos anteriores).

         Outro importante ponto que o Houaiss explicita é o de que, ao tratarmos do símbolo, devemos compreender que esse se utiliza da alegoria, da metáfora, da metonímia, da parábola, da hipérbole, etc. Todos esses conceitos deverão ser tratados aqui em nossa biblioteca, caso queiramos realmente compreender a natureza do símbolo.

         É por causa do símbolo que nossa biblioteca procura ter uma vastidão enciclopédica, pois o símbolo está presente na cultura, na religião, na história das civilizações, na linguística, na antropologia cultural, na arte, na psicologia, etc.

         Esta sensibilidade quanto à natureza imaginativa do símbolo é fundamental para todo aquele que deseja compreender o outro, comunicar-se bem e se contextualizar no universo ao qual se pretende pregar o Evangelho. É uma viagem que, se Deus quiser, estamos apenas começando.       

Fábio Ribas

Todas as fontes estão em Ti (XXIII/2024)

Carlos Nejar é um poeta recém-descoberto. Todavia, ele publica vasta e variada literatura desde 1960. O currículo a seguir, retirado de uma ...